Novo arcabouço deve ser mecanismo para gerir trade-off entre sustentabilidade fiscal e racionalidade tributária

Luiz Guilherme Schymura, pesquisador do FGV IBRE e doutor em Economia pela FGV EPGE

Nos próximos meses, e até o início do ano que vem, o novo arcabouço fiscal (NAF) passará pelo seu primeiro grande teste. Na visão de muitos economistas e de boa parte do mercado financeiro, a questão crucial no momento é a de saber se o governo manterá e cumprirá a ambiciosa meta fiscal de zerar o resultado primário em 2024. Porém, do ponto de vista do NAF, o mais importante é entender como a busca da meta fiscal no âmbito das novas regras vai atender aos objetivos tanto de sinalizar contas públicas sustentáveis quanto de dar qualidade e racionalidade ao processo orçamentário, respeitando os objetivos do governo.

Como se sabe, o NAF combina uma regra de despesa, definida pela Lei Complementar (LC) no 200/2023, com a meta de resultado primário, estabelecida anualmente na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). A regra de despesa – que exclui alguns gastos, como transferências constitucionais para estados e municípios, créditos extraordinários, precatórios, gasto da Justiça eleitoral com eleições etc. – determina correção pelo IPCA de meio de ano acrescida de um fator que equivale a 70% do crescimento real das receitas (descontando-se itens voláteis como concessões, dividendos e receitas não recorrentes).

A meta de resultado primário na LDO passa a ter uma banda de 0,25% do PIB para baixo e para cima, para acomodar situações imprevistas. Caso o resultado primário seja positivo e se situe acima do limite superior da banda, o governo fica autorizado a usar até 70% do excedente para ampliar investimentos. Mas se o piso inferior da meta for descumprido, o aumento real da despesa para o próximo exercício cai de 70% para 50% do avanço da receita, e uma primeira bateria de gatilhos previstos na Constituição deve entrar em vigor no exercício seguinte, restringindo a criação de cargos e vantagens salariais, subsídios, despesa obrigatória, renúncia tributária etc. Se o descumprimento da meta de primário se repetir por dois anos consecutivos, o governo não pode nem contratar nem dar aumento nominal aos servidores, além das demais medidas já citadas.

Como aponta o economista Manoel Pires, pesquisador associado do FGV IBRE e responsável pelas análises e informações mencionadas nesta Carta, a taxa de crescimento real da despesa para 2024, derivada da nova regra, é de 1,7% (acima da inflação apurada no IPCA até junho de 2023, que foi apenas de 3,16%). O percentual de 1,7% corresponde a 70% dos 2,43% de aumento real da receita no mesmo período. Somando a inflação ao aumento real de 1,7%, tem-se um ajuste nominal da despesa para 2024 ligeiramente inferior a 5%.

Uma dificuldade na largada do NAF, segundo Pires, é que a inflação acumulada no ano fechado de 2023 será bem maior (4,85% segundo a última projeção da Fazenda) do que os 3,16% até junho. Assim, boa parte do gasto obrigatório federal (o grosso da despesa primária, com rubricas como Previdência e benefícios sociais) irá crescer, apenas pelo efeito da inflação, quase todo o espaço de 5% permitido pela regra. Na verdade, aumentará bem mais que isso se forem acrescentados o crescimento vegetativo do número de benefícios ou o aumento real do salário mínimo que indexa grande porção desses gastos. Se uma parte majoritária da despesa, sobretudo obrigatória, cresce acima do todo, a outra parte minoritária, especialmente discricionária, terá que ficar abaixo, e de forma mais que proporcional.

Para lidar com esse problema, com uma regra que vale apenas para 2024 e depois deixa de existir, o NAF abriu uma possibilidade de o governo aumentar a despesa, elevando o ajuste pela inflação da base de cálculo pela exata diferença entre o IPCA acumulado em 12 meses até dezembro e até junho de 2023. Supondo que a projeção oficial de 4,85% para o ano fechado de 2023 esteja correta, isso significa 1,64 ponto percentual (p.p.) a mais do que os 3,16% até junho, que inicialmente corrigiram a inflação da despesa. Do orçamento já constam despesas “condicionadas” à ocorrência efetiva dessa diferença entre a inflação até junho e a do ano de 2023 completo.

De forma sintética, pelas regras do NAF, a despesa submetida à regra tem, como base de 2023, o valor de R$ 1,964 trilhão, e sobe R$ 129 bilhões, para R$ 2,093 trilhões, em 2024. Esse salto se subdivide em
R$ 62 bilhões da correção da inflação até junho (de 3,16%), R$ 34 bilhões correspondentes ao 1,7% de aumento real já mencionado, e mais R$ 32 bilhões das despesas “condicionadas” referentes à diferença (de 1,64%) entre a inflação até junho e a projetada para 2023 fechado. Incluindo as despesas que não compõem a regra, o total no orçamento chega a R$ 2,188 trilhões para 2024.

Esse “espaço fiscal” adicional de R$ 129 bilhões, pelo lado da despesa, será distribuído na forma de mais R$ 51 bilhões em benefícios previdenciários, R$ 26 bilhões em benefícios sociais e seguro-desemprego,
R$ 23 bilhões nas chamadas “despesas obrigatórias com controle de fluxo” (como saúde, educação e Bolsa Família), R$ 14 bilhões para pessoal e encargos sociais, R$ 9 bilhões para emendas parlamentares e apenas R$ 9 bilhões para despesas discricionárias do Poder Executivo.

O Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) de 2024 prevê que a receita total da União no próximo ano seja de 23,7% do PIB, o que é um salto considerável, de 1,6 p.p. do PIB, em relação à arrecadação federal prevista para 2023, de 22,1% do PIB.

“Isso é mais do que foi realizado em 2022 [23,3% do PIB], o ano do boom de commodities; para qualquer padrão histórico que se observe no Brasil, é uma arrecadação bastante alta”, analisa Pires.

O economista aponta que, no PLOA, esse ganho de arrecadação em relação a 2023 provém principalmente do Imposto de Renda (+0,6 p.p. do PIB, indo para 7,1% do PIB) e da Cofins (+0,5 p.p., para 3,3% do PIB). Também está previsto um aumento de 0,3 p.p. do PIB em concessões e permissões (para 0,4% do PIB, indo de R$ 9,25 bilhões em 2023 para R$ 44,4 bilhões em 2024). Essa última projeção tem sido alvo de críticas pela falta até agora de projetos do governo nessa área que sustentem um salto de tal monta.

Pires ressalta que o pacote do governo para obter o ganho de arrecadação de 1,6 p.p. do PIB entre 2023 e 2024 é intensivo em medidas que afetam o Imposto de Renda (IR), como se verá adiante. A implicação disso é que o quinhão a ser direcionado a estados e municípios via transferências constitucionais – e, como tal, sem contribuição para fechar as contas da União – é substancial. Assim, em termos líquidos, a receita da União em 2024 será de 19,2% do PIB. A diferença em relação a 2023 (17,8% do PIB) é de 1,4 p.p. de PIB, ou seja, 0,2 p.p. do PIB menor que a diferença entre as receitas brutas de um ano e outro (1,6 p.p.). De forma congruente, as transferências constitucionais aumentam 0,2 p.p. do PIB, de 4,3% em 2023 para 4,5% do PIB em 2024.

Pelo lado da despesa, Pires nota que o orçamento de 2024 é muito parecido com o de 2023, com o gasto previsto se repetindo em exatos 19,2% do PIB. A distribuição entre as diversas rubricas, como Previdência, pessoal, outras despesas obrigatórias e gasto discricionário também é bem parecida.

Em outras palavras, como diz Pires, “o ajuste está todo pelo lado da receita”.

O aumento de receita de cerca de R$ 165 bilhões está praticamente todo contido num pacote de medidas do governo que inclui três projetos de lei (PL) e três medidas provisórias (MP). Desse conjunto de medidas, só está aprovado em caráter definitivo até agora o PL 2.384/2023, sobre o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e o mecanismo chamado de “transações tributárias”, sobre procedimentos da Receita para negociar com contribuintes inadimplentes.

No caso do voto de qualidade, trata-se de garantir, a um conselheiro nomeado pelo governo, o voto de Minerva no CARF, o que deve trazer mais ganhos de causa para a União do que a situação anterior em que essa vantagem não existia. No caso da transação tributária, o PL 2.384 flexibilizou ainda mais os procedimentos de renegociação de dívida tributária pela Receita, para facilitar acordos e, portanto, receitas.

De acordo com os números do governo, o PL 2.384 deve render receitas adicionais em 2024 de R$ 96,8 bilhões, divididas em R$ 54,7 bilhões para o voto de qualidade no CARF e R$ 42,1 bilhões relativos ao mecanismo de transações tributárias. Pires nota de início que, entre todas as medidas do pacote fiscal do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, os efeitos do PL 2.384 são os mais complicados de estimar, porque dependem da reação do contribuinte. No caso do voto de qualidade, com a possibilidade de recorrer à Justiça se perder no CARF; nas transações tributárias, com a decisão de fechar ou não um acordo.

“Uma coisa é a Receita estimar quanto perde não tributando fundos fechados, o que é uma medida impositiva; outra é estimar o quanto de litígio fiscal vai ser resolvido em caráter definitivo com as medidas do PL 2.384”, pondera Pires.

Se o PL 2.384 tem a vantagem de estar aprovado e a desvantagem de ser de difícil estimação, o contrário ocorre com quase todas as demais medidas do pacote: suas projeções de ganho de receita são mais confiáveis (embora uma delas, a MP 1.185, também tenha estimação imprecisa dos efeitos), mas não só ainda não estão aprovadas, como algumas delas passam por percalços sérios nesse caminho. A principal delas em volume pretendido de receita adicional (R$ 35,3 bilhões) é justamente a MP 1.185, que regula o imbróglio relativo à inclusão ou exclusão de incentivos estaduais de ICMS na base de cálculo do IRPJ federal. As empresas faziam esse abatimento de forma generalizada, mas recente decisão do STJ determinou que só incentivos estaduais utilizados para investimento (mas não para custeio) podem ser descontados da base do IRPJ.

No entanto, a MP 1.185 avança algumas casas em termos de vantagem para o governo (e desvantagem para as empresas), ao, nas palavras de Pires, “inverter a sistemática dessa tributação”. Antes, a empresa deduzia o incentivo da base de cálculo do imposto, cabendo à Receita a posteriori fiscalizar. Naturalmente, a Receita não consegue cobrir todo o universo de empresas contribuintes. Com a MP, os papéis se invertem. A empresa não pode deduzir nada, paga o IRPJ cheio, mas pode se cadastrar na Receita num sistema em que informa os incentivos relacionados aos investimentos que recebe. Apenas depois que o pleito é analisado e aprovado (pode não ser) pela Receita, a empresa recebe o crédito fiscal. Esse modelo impacta negativamente o fluxo de caixa da empresa.

“A medida tem impacto relevante sobre o fluxo de caixa das empresas e aumenta o custo de capital; se os valores estimados forem próximos da realidade, possivelmente, entre as medidas adotadas, é a que deve ser mais contracionista, apesar de meritória”, avalia o economista.

Dessa forma, a aprovação definitiva da MP 1.185 no Congresso, onde o empresariado sabe se fazer ouvir, pode se tornar mais complicada. Outra medida cuja tramitação sofre trepidações é o fim da dedução dos juros sobre o capital próprio (JCP) no IRPJ, pela mesma razão óbvia de pesar no bolso das empresas. Com estimativa de render R$ 10 bilhões adicionais em 2024, o PL 4.258/2023, que trata do tema, entrou no Congresso com requerimento de urgência, mas este foi retirado pelo governo, que já sinalizou que não conta com a aprovação rápida do dispositivo.

Já a tributação dos fundos offshore (PL 4.173, com estimativa de render R$ 7,05 bilhões adicionais em 2024) e dos fundos fechados (MP 1.184, R$ 13,3 bilhões) parece contar com mais boa vontade do Congresso, segundo Pires. Mas deve haver alguma diluição no ganho esperado, por acordos alinhavados com parlamentares. No caso dos fundos fechados, para isentar ganhos em reais com a depreciação cambial. Nos fundos fechados, no sentido de a medida valer de forma integral apenas para fluxos novos, com alíquota reduzida para o estoque passado, como incentivo à quitação do imposto. Finalmente, a regularização das apostas esportivas em sites (MP 1.182), já aprovada na Câmara, tem previsão de receita adicional de apenas R$ 700 milhões.

Analisando o conjunto das medidas de aumento de receita, Pires considera que, seja por projeções demasiadamente otimistas, seja por possível não aprovação ou diluição, “o potencial de frustração é muito alto”.

Ele observa que tudo o que se refere a ganhos no IRPJ – que, como já mostrado, é parcela grande do conjunto e tem o problema da divisão com estados e municípios – inclui o risco adicional causado pelo imperativo de aprovação este ano, para que possa valer para 2024.

Existem, por outro lado, alguns fatores favoráveis ao esforço de cumprimento da meta fiscal que devem ser levados em conta. Para contextualizar melhor essa discussão, Pires lembra que o governo quer aumentar a arrecadação federal para 2024 em R$ 166 bilhões para que, líquida das transferências a estados e municípios, signifique algo em torno de R$ 125 bilhões a mais para a União, necessários para zerar o resultado primário no ano que vem.

O primeiro “trunfo” do governo é o fato de que, pelas regras do NAF, a União pode ter um déficit primário em 2024 de R$ 29 bilhões sem descumprir a meta, utilizando-se o piso da banda (-0,25% do PIB).

Outros R$ 20 bilhões podem ser equacionados levando em conta uma receita adicional em 2024 que não foi incluída no orçamento: o ganho com recente lei que aprimora o mecanismo dos “preços de transferência”, que impede que multinacionais transfiram de forma artificial seus lucros do Brasil para paraísos fiscais. E existe ainda o chamado “empoçamento fiscal”, o fato de que sempre há algum nível de despesa orçamentária nos diversos ministérios e órgãos do governo que é liberada, mas não efetivamente gasta no ano de referência, por questões operacionais. Pires nota que, na média histórica dos últimos anos, o “empoçamento” rodou na média de R$ 22 bilhões por ano para todo o orçamento federal.

Reavaliando, pelo prisma desses fatores mencionados acima, o gap de R$ 125 bilhões para zerar o resultado primário em 2024, há R$ 71 bilhões que poderiam ser preenchidos pelo uso do piso da banda da meta de primário, pela receita adicional via preços de transferência e pelo empoçamento fiscal. Para ir além disso, chega-se ao mecanismo do contingenciamento orçamentário, que foi mantido no NAF.

Neste ponto, adentra a análise um aspecto importante do novo regime fiscal brasileiro que, na visão de Pires, é por vezes pouco considerado nas avaliações de muitos economistas e do mercado financeiro: ao contrário do que ocorria no regime anterior regido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), e que foi mantido durante a vigência do teto de gastos, agora existe previsão legal para descumprimento da meta de resultado primário.

Antes, na ausência dessa previsão legal, a alternativa dos governos era cumprir a meta de primário ou mudá-la, o que ocorreu com frequência. Agora, o governo pode modificá-la (com aprovação do Congresso, como antes), mas também pode não cumpri-la. Se isso ocorrer, entram em cena dispositivos já citados, como a redução de 70% para 50% do aumento da receita real na determinação da elevação das despesas, e os gatilhos constitucionais. Adicionalmente, o governo deve escrever uma carta formal ao Congresso justificando o não cumprimento da meta de primário (isto é, ficar abaixo do piso).

Contudo, acrescenta Pires – e aqui retornamos ao tema do contingenciamento –, o governo não pode simplesmente abandonar a meta de resultado primário. Antes de caminhar para o seu eventual descumprimento, o governo é obrigado a contingenciar despesas até um máximo equivalente a 25% do gasto discricionário. Se nem esse contingenciamento for suficiente, a meta pode ser descumprida, levando às sanções já mencionadas.

As contas de Pires indicam que as despesas discricionárias orçadas para 2024, de 1,9% do PIB (cerca de
R$ 210 bilhões), estão próximas à média histórica de 1,8% do PIB, prevalente desde a implantação do teto de gastos – isto é, não se trata de um valor muito folgado. Um problema sério é que nem toda despesa discricionária é contingenciável, com muitas ressalvas constando da LDO, como as emendas impositivas, entre outras restrições. O pesquisador do FGV IBRE avalia que o total de despesas não comprometidas é da ordem de R$ 80 bilhões, o que significa que o contingenciamento máximo (R$ 52,5 bilhões, ou 25% de R$ 210 bilhões) reduziria essa base a bem menos da metade. E é nela que está a maior parte da rubrica nobre dos investimentos, que, pelo NAF, não podem cair abaixo de cerca de R$ 69,7 bilhões em termos do que foi orçado, mas podem fazê-lo em relação ao que é executado.

Fica claro, portanto, que o contingenciamento de máxima magnitude do NAF representaria um grande revés para a execução de um orçamento funcional e que desse amparo às prioridades programáticas do atual governo. A propósito, Pires lembra que, no início de 2017, o então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, determinou contingenciamento de R$ 35 bilhões, mas em meados do ano mudou a meta de resultado primário, por verificar que aquele nível de redução da execução orçamentária era insustentável.

É com esses parâmetros em mente que o economista do FGV IBRE estipula, dentro das opções estratégicas à frente do atual governo, cenários com contingenciamentos em 2024 que vão de zero a R$ 30 bilhões. Este último, se somado aos “ganhos” de R$ 70 bilhões por uso do limite inferior da banda, empoçamento orçamentário e preços de transferência, reduziria o gap do orçamento federal de R$ 125 bilhões para R$ 25 bilhões. Contingenciamentos de R$ 20 bilhões, R$ 10 bilhões e zero deixariam o gap em, respectivamente, R$ 35 bilhões, R$ 45 bilhões e R$ 55 bilhões.

Como o ganho de receita projetado pelo governo com o pacote fiscal é de R$ 165 bilhões, pode parecer à primeira vista que zerar o primário em 2024 está à mão. Pires, no entanto, indica que essa percepção é ilusória. Em primeiro lugar, análise prévia nesta Carta mostra que a meta de R$ 165 bilhões de ganho de receita é extremamente superestimada. Em segundo, os níveis maiores de contingenciamento implicam redução das despesas discricionárias para perto de 1,5% do PIB, bem abaixo da média pós-teto de gastos. Como o caso de Meirelles em 2017 ilustra, nem governos fiscalistas conseguem sustentar níveis extremos de restrição na execução orçamentária.

Em terceiro lugar, os números acima de redução do gap – no caso dos cenários com contingenciamento menos pesado ou sem contingenciamento, para a faixa de R$ 45-50 bilhões – não levam em conta alguns problemas finais que o economista aponta no cenário de largada do NAF. Há, por exemplo, a medida de desoneração da folha, que o Congresso aprovou e que representa
R$ 18 bilhões a menos de receita em 2024. As promessas de Lula de atualização da tabela do IR das pessoas físicas adicionariam mais algumas dezenas de bilhões, a precisar pelo detalhamento da eventual medida. Mais seriamente ainda, há clara indicação de que os gastos orçados para 2024 da despesa obrigatória da Previdência estão subestimados em algo como R$ 20 bilhões.

Outro problema é que estão vindo muito abaixo do previsto – mas esta subavaliação não foi considerada no orçamento de 2024 – os ganhos de receita para a União com a lei deste ano que vedou às empresas usar supostos créditos tributários pelo pagamento, no PIS/Cofins, de valor relativo à incidência estadual do ICMS. O STF decidiu em 2017 que a inclusão do ICMS na base do PIS/Cofins era inconstitucional, as empresas pararam de pagar por isso, mas continuaram a aproveitar “créditos tributários” como se estivessem pagando. De qualquer forma, a tentativa recente de correção do problema pelo governo com a nova lei desapontou como fonte de receita adicional para a União (na verdade, muitas empresas continuam brigando na Justiça pelos alegados créditos tributários, mesmo com a nova lei).

Para sublinhar ainda mais a dificuldade de cumprimento da meta de resultado primário em 2024, Pires observa que todo esse cenário de aperto no ano que vem terá que ser percorrido com as pressões políticas previsíveis decorrentes de não haver previsão orçamentária de qualquer ajuste nominal para o Bolsa Família; e de estar estipulada até agora perda real dos salários do funcionalismo (que subirão 1,5% em termos nominais, bem menos que a inflação de 2023).

É diante do cenário fiscal detalhado nesta Carta que Pires analisa as opções estratégicas do governo na decolagem do NAF. Ele considera que agora não é o momento de se discutir mudança da meta de primário de 2024, pois isso tiraria todo o poder de barganha do Executivo na tentativa de aprovação do pacote tributário no Congresso. E, na sua visão, esse conjunto de mudanças inclui medidas de grande mérito, cuja aprovação irá melhorar o resultado das contas públicas.

Para Pires, no entanto, no início do próximo ano, o governo deve fazer um balanço cuidadoso da situação fiscal, o que incluirá naturalmente avaliar o grau de sucesso na aprovação das medidas tributárias e qualquer sinal, quando for possível, sobre o real potencial de aumento arrecadatório do pacote apresentado.

O Executivo também deve estimar com bastante atenção qual seria a dimensão do contingenciamento que, diante de hipóteses conservadoras sobre as demais variáveis da equação fiscal-orçamentária discutida nesta Carta, poderia eventualmente fechar o gap fiscal de forma a garantir o cumprimento da presente meta de resultado primário. Em seguida, seria preciso estimar se o ganho de sustentabilidade fiscal de médio e longo prazo pelo cumprimento da meta (comparado ao cenário em que se tentaria mudá-la) compensaria ou não o custo de optar por esse caminho. Esse custo seria o efeito negativo do contingenciamento – e de outras medidas que o governo tenha que tomar para manter a meta – na qualidade da política orçamentária e no cumprimento do programa governamental.

O NAF, na visão de Pires, deve ser entendido e gerido como um arcabouço que não foi feito para resolver, pelo seu simples e automático funcionamento, o chamado conflito distributivo, algo inerente à política fiscal e orçamentária de qualquer governo. O ganho em termos de maturidade democrática e econômica que o NAF pode trazer é o de criar mecanismos mais racionais e estáveis, que permitam a resolução contínua do conflito distributivo nas interações entre Executivo e Legislativo, mediadas quando for o caso pelo Judiciário, e acompanhadas com transparência pela sociedade.

Assim, diante das naturais dificuldades do NAF em sua largada como novo arcabouço fiscal-orçamentário do Brasil, o governo não deve optar nem por cumprir a meta de resultado primário a qualquer custo, nem por abandoná-la ao enfrentar os primeiros obstáculos. A arte do novo jogo da política fiscal consiste em administrar com maestria e sensatez o trade-off entre caminhar na direção da sustentabilidade fiscal estrutural e prover um orçamento exequível, coerente com o programa do governo e que consiga atender minimamente aos anseios da sociedade em relação ao que o Estado brasileiro deve e pode oferecer.

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O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.

Publicada na edição de outubro de 2023 da revista Conjuntura Econômica

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