É hora de criar um sistema integrado de estatísticas e geoinformação no Brasil

Luiz Guilherme Schymura, pesquisador do FGV IBRE e doutor em Economia pela FGV EPGE

“Quando você pode mensurar aquilo sobre o que está falando e expressá-lo em números, compreende algo a respeito disso; porém, quando não consegue exprimi-lo em números, seu conhecimento é de um tipo escasso e insatisfatório.”

William Thompson
(Lord Kelvin) – 1824-1907

O sistema nacional de informações estatísticas passa por grave crise, de caráter conjuntural e estrutural. O subfinanciamento do IBGE e das suas principais pesquisas, um problema que atravessa décadas, tornou-se dramático no último governo. Com 3,9 mil funcionários (julho de 2023), 40% a menos do que o quadro em 2013, e instalações precárias, além do problema mais grave de falta de verbas para pesquisas fundamentais, o instituto oficial brasileiro de estatística e geoinformação vive um dos momentos mais difíceis das últimas décadas.

Alguns exemplos recentes dessa preocupante situação são os adiamentos da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), que atualiza índices de inflação ao consumidor como o IPCA, indicador oficial do sistema de metas de inflação; a não realização da Contagem Demográfica de 2015 após sucessivos cortes em seu orçamento, em detrimento dos modelos demográficos da distribuição do Fundo de Participação dos Municípios; a redução do escopo do Censo Agropecuário de 2017 (pesquisa com periodicidade quinquenal prevista em lei), realizado apenas por meio de emenda parlamentar; e os muitos percalços do Censo de 2022, que deveria ter sido realizado em 2020, com o adiamento compreensível para 2021 por causa da pandemia, mas que foi novamente postergado pelo corte do seu orçamento.

A crise do IBGE e, de forma mais ampla, do sistema brasileiro de estatísticas e geoinformação ocorre justamente quando, em diversos países, essa área está passando por profundas transformações jurídicas, institucionais e tecnológicas. Neste último caso, com inovações que permitem cada vez maior rapidez na obtenção de dados, com capacidade de armazenamento em permanente expansão.

Neste início de novo governo e com a nomeação de um novo presidente para o IBGE, o momento está maduro para uma virada de página no sistema brasileiro de estatística e geoinformação. Pesquisadores do FGV IBRE, como Vagner Ardeo, Roberto Olinto (ex-presidente do IBGE), Claudio Considera e Manoel Pires, vêm se debruçando sobre esse tema. Junto com outros especialistas – Claudio Dutra Crespo, ex-diretor de Pesquisas do IBGE; Marcus Peixoto, consultor legislativo do Senado e ex-assessor parlamentar do IBGE; Nelson Barbosa, ex-ministro da Fazenda e atual diretor de Planejamento do BNDES; Luiz Ugeda, CEO e fundador da Geodireitos; e João Bosco, ex-diretor de Geociências do IBGE –, os pesquisadores do FGV IBRE trabalharam numa sugestão para a criação de um Sistema Nacional de Informações Oficiais (SNIO), gerido e organizado por uma autoridade estatística nacional, visando responder aos desafios tratados nesta Carta.

Em 1934, foi criado por decreto o Instituto Nacional de Estatísticas, precursor do IBGE. As leis brasileiras que regem o setor têm méritos, e algumas eram até pioneiras quando entraram em vigor, mas obviamente boa parte desse arcabouço ficou defasado, além do tradicional problema nacional de determinações legais que nunca foram cumpridas adequadamente. Por exemplo, a lei que designa o IBGE como coordenador do sistema estatístico nacional não determinou sua autoridade para exercer essa função. Tampouco foram estabelecidos os elementos que efetivamente definam o que seja um dado oficial. O resultado é que um verdadeiro sistema integrado de estatísticas e geoinformação, apesar de já estar de certa forma pressuposto no arcabouço institucional vigente, nunca foi implementado no Brasil de forma estruturada e hierarquizada.

A proposta do grupo de pesquisadores e especialistas citados acima é a de constituir no país, efetivamente, uma Autoridade Estatística Nacional (AEN). A criação de uma instância com funções muito bem definidas para acompanhar e salvaguardar a agenda estatística, coordenar a integração entre diversos produtores e estabelecer regulações e implantação de procedimentos padrão é uma etapa fundamental para que se tenha um SNIO eficiente.

A reestruturação do sistema nacional de estatísticas e geoinformações deveria ter como passo inicial a convocação imediata das Conferências de Estatística (Confest) e Geografia (Congeo), com o objetivo explícito de definir o novo Plano Geral de Informações Estatísticas e Geográficas (PGIEG), integrado com a estrutura do SNIO. O propósito é estabelecer a agenda nacional de pesquisas, sua periodicidade e os responsáveis por sua execução.

São diversos os desafios para a constituição de um SNIO moderno e à altura das necessidades do país no atual momento histórico. É preciso integrar os diversos produtores de estatística e geoinformação num sistema nacional em que haja agenda, normas e outras condicionantes, com uma instância que tenha autoridade para estabelecer e avaliar procedimentos. Também é necessário, claro, criar formas de isolar o processo de produção de estatísticas públicas oficiais das disputas políticas, especialmente da disputa orçamentária pela qual ora se obtém, ora não, as verbas necessárias.

Atualmente, considerando apenas a organização do governo federal, cada produtor de dados atua de forma individual, respondendo hierarquicamente ao ministério ao qual está diretamente ligado, ou de forma autônoma, como o Banco Central do Brasil (com enormes responsabilidades de produção estatística). Não há qualquer regulação, coordenação metodológica e integração entre esses produtores. Dessa forma, o IBGE se reporta ao Ministério do Planejamento, o Inep ao Ministério da Educação, o Datasus ao Ministério da Saúde, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) ao Ministério de Minas e Energia, e o Inpe ao Ministério de Ciência e Tecnologia. Essas bases de dados têm linguagens próprias que não conversam entre si facilmente, e apenas ocasionalmente atuam de forma integrada.

Outra questão fundamental é definir, no âmbito da AEN, as instâncias de decisão que estabeleçam critérios para chancelar os produtores e os dados considerados “oficiais”, de acordo com uma estrutura de qualidade. No mundo atual, nenhum instituto oficial de estatística tem recursos para atender tudo o que uma sociedade demanda em termos de dados, informações e análises. Assim, o melhor caminho, já trilhado por países relevantes, é deixar para o instituto oficial tarefas mais nucleares dessa atividade, e atuar em relação ao restante das demandas por meio de parceiros, integrados num sistema central, e que podem ser do próprio governo, do setor privado ou da sociedade civil.

Nesse caso, a exemplo do que ocorre no Reino Unido, produtores brasileiros que hoje não são considerados “oficiais” podem passar por um processo de avaliação por alguma instância de sua autoridade estatística (como a UK Statistical Authority) em relação aos dados que divulgam. Se estes passarem por um crivo de qualidade mínima, ganham a chancela de “oficiais” e passam a integrar o conjunto de dados oficiais providos pelo sistema nacional. Esse processo de chancela pode ser revisto periodicamente, inclusive com a remoção do status de oficial em caso de perda de qualidade. Idealmente, essa avaliação permearia todo o sistema nacional de estatística e geoinformação, tanto o que hoje é oficial quanto o que não é.

Um bom exemplo do potencial desse modelo é a parceria já existente, mas de forma ocasional e por vezes implícita, entre o IBGE e o FGV IBRE. O FGV IBRE, como é bem sabido, foi o primeiro produtor de contas nacionais no Brasil, tarefa que depois foi assumida pelo IBGE, o instituto oficial. Da mesma forma, o FGV IBRE tem pioneirismo no cálculo de índices de inflação, e até hoje produz uma ampla e rica família desses indicadores, com superposições em relação ao IBGE, mas também alguns índices exclusivos.

Historicamente, o FGV IBRE exerce um papel de gerador de inovações em termos do sistema nacional de estatísticas. Recentemente, foi lançado o Índice de Variação de Aluguéis Residenciais (Ivar), com avanços metodológicos que possibilitam medir com maior precisão a variação desses preços, algo muito útil para o mercado residencial. Assim, faria todo o sentido convênios visando aproveitar os avanços obtidos no Ivar em outros índices de preços ao consumidor. Entretanto, quando se pensa num SNIO moderno e atualizado, essas parcerias não podem ser casos excepcionais dependentes de complicadas negociações, mas devem fazer parte do funcionamento cotidiano de um sistema integrado em todos os aspectos, inclusive o gerencial. Outros exemplos na mesma linha são as sondagens de confiança de consumidores e empresários, como as realizadas pelo FGV IBRE. Na Europa, pesquisas congêneres realizadas fora do âmbito estatal são chanceladas como dados oficiais.

A abertura de bases de dados sensíveis, de forma naturalmente anônima e/ou confidencial, é outro tema importante da evolução dos sistemas nacionais de informações estatísticas, e, novamente, algo em que o Brasil está bastante atrasado. Essa abertura, devidamente regulamentada e com as necessárias salvaguardas de segurança, poderia trazer bases de dados como as da Receita Federal (importante para estudos sobre desigualdade), notas fiscais eletrônicas, registros administrativos em geral e até dados internos das empresas – aliás, neste último caso, a União Europeia recentemente publicou portaria para abrir o debate sobre tornar obrigatória a disponibilização de dados por empresas privadas, em condições ainda a serem determinadas, para a elaboração das estatísticas nacionais oficiais.

IPGF – um dos exemplos mais flagrantes do estado de penúria em que se encontra o sistema nacional de estatística são os longos períodos entre as POFs, pesquisa essencial para atualizar os índices de inflação ao consumidor, como o IPCA, o índice oficial do sistema de metas. Nesse sentido, vale a pena chamar a atenção para um índice experimental recentemente criado pelo FGV IBRE, para calcular a inflação brasileira de forma análoga à dos índices da família conhecida por PCE, ou personal consumption expenditures (índices das despesas pessoais de consumo). O indicador tem uma metodologia de adaptação automática às mudanças de hábitos do consumidor ao longo do tempo, a partir de uma cesta de consumo móvel. Na verdade, os PCEs são calcados em estatísticas que são periodicamente revisadas, levando à revisão do próprio índice. As revisões constantes, por sua vez, levam ao aperfeiçoamento das mensurações.

A característica de atualização automática do PCE faz, por exemplo, com que este índice seja a principal referência de inflação para o Federal Reserve (Fed, banco central americano). Como explicam Aloisio Campelo, André Braz, Claudio Considera, Juliana Trece e Matheus Peçanha, pesquisadores do FGV IBRE, em artigo recente no Blog do IBRE, “a estrutura de pesos de bens e serviços de um PCE é extraída majoritariamente do Sistema de Contas Nacionais (SCN) e considera o gasto total por grupo de produtos no consumo das famílias”, enquanto os índices de preços ao consumidor tradicionais admitem que as quantidades consumidas de cada produto são iguais às obtidas pela última POF existente.

O indicador experimental do FGV IBRE foi batizado de Índice de Preços dos Gastos Familiares (IPGF), e tem seus pesos originais e atualizações mensais determinados pelo Sistema de Contas Trimestrais do IBGE (SCT), convertidos à frequência mensal com base no Monitor do PIB, do FGV IBRE.

No Brasil, o IPCA do sistema de metas de inflação é um índice de preços ao consumidor do tipo tradicional, considerando famílias com renda mensal até 40 salários mínimos. O problema, porém, são os longos períodos entre uma POF e outra (média de sete anos e meio entre as últimas quatro pesquisas), que levam à desatualização da cesta de consumo das famílias utilizadas nos índices de inflação ao consumidor convencionais como o IPCA. O efeito substituição de itens da cesta, ao sabor principalmente das mudanças de preços relativos, só é corrigido quando o índice é recalculado a cada POF. A conse­quência, como apontam os autores do mencionado artigo no Blog do IBRE, é que “pesos que deixam de refletir com o tempo o padrão de consumo das famílias tendem a fazer com que os índices de preços superestimem a inflação, aumentando o esforço da política monetária e impactando o nível de atividade econômica”.

E, efetivamente, entre janeiro de 2000 e dezembro de 2022, período para o qual o IPGF foi calculado, o índice acumulou uma inflação de 283,5%. É um número bem inferior à inflação do IPCA no mesmo período, de 307,6%. Em médias anuais, o IPGF foi 0,3 ponto percentual inferior ao IPCA de janeiro de 2000 a dezembro de 2022.

O IPGF é emblemático tanto de como diferentes produtores podem contribuir dentro de um sistema nacional integrado de estatísticas como também da importância de resolver os atuais problemas do IBGE. Afinal, a defasagem entre a inflação do IPGF e do IPCA – o que pode prejudicar a qualidade da política monetária do país, independentemente dos méritos do Banco Central – indica a enorme falta que uma POF atualizada faz. No Brasil, pelo alto grau de indexação de contratos, não seria recomendável que se utilizasse um PCE como indexador de contratos. O risco óbvio é que as atualizações automáticas e constantes do índice levassem partes que se sentissem prejudicadas em contratos à judicialização, o que é negativo para o ambiente de transações e negócios numa economia de mercado. É importante, portanto, que uma nova POF seja realizada o mais rápido possível. Mas este é apenas um exemplo dos grandes problemas causados pelas graves dificuldades atuais do sistema nacional de estatística e geoinformação. A hora de mudar chegou.

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O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.

Publicada na edição de setembro de 2023 da revista Conjuntura Econômica

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