As divergências no IBRE sobre a estimativa do hiato do produto

Luiz Guilherme Schymura – Pesquisador do FGV IBRE e doutor em Economia pela FGV EPGE

O hiato do produto é uma variável macroeconômica não observável, mas de muita importância, tanto para a política monetária quanto para a fiscal. O hiato é a diferença entre o PIB efetivo e o PIB potencial. Quando a economia está rodando abaixo da sua capacidade, como nos últimos anos no Brasil, o hiato é negativo e produz pressões desinflacionárias.

Para estimar o hiato do produto, é preciso usar variáveis econômicas que tampouco são observáveis. Uma delas é justamente o PIB potencial, isto é, quanto a economia pode crescer sem produzir pressões inflacionárias ou desinflacionárias, nem gerar desequilíbrios severos nas contas externas. Para calcular o PIB potencial, é preciso estimar a taxa de desemprego natural (ou neutra) e o nível de ocupação do estoque de capital que, da mesma forma, não cria pressões inflacionárias ou deflacionárias, nem interfere com o equilíbrio externo. Ambos os indicadores são igualmente não observáveis.

Fica claro desde já que não é nada trivial estimar o hiato do produto. O próprio Banco Central, há muitos anos, não dá pistas sobre suas estimativas dessa variável (em contraste com as práticas do Federal Reserve e mesmo do banco central chileno, entre outros). E, entre os economistas, as estimativas podem variar bastante, dependendo das metodologias empregadas.

Entre os pesquisadores do FGV IBRE também existem discordâncias quanto ao nível atual do hiato do produto brasileiro. Todos concordam que a variável está em território negativo, mas há divergências substanciais na avaliação de quanto o PIB efetivo está abaixo do potencial.

Cálculos de Claudio Considera, pesquisador do FGV IBRE, empregando o método da função de produção, indicam que a economia brasileira está funcionando abaixo do seu produto potencial desde o primeiro trimestre de 2015. Nessa estimativa, o hiato estava em -4,5% no terceiro trimestre de 2019, resultado menos distante do potencial do que nos dois trimestres anteriores.

No mesmo artigo do Blog do IBRE, em que apresenta esse cálculo, Considera aponta que o hiato do produto estimado pela média de diversas métricas puramente estatísticas (isto é, sem estrutura econômica), no terceiro trimestre de 2019, residia na faixa de -3,6%. A correlação entre a série do hiato obtido a partir da função de produção e a série pela média das métricas estatísticas é de +0,82.

No entanto, a divergência entre medidas de hiato é mais acentuada, no âmbito do IBRE, quando se tomam as estimativas de Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro, e Bráulio Borges, pesquisador associado.

Para Matos, o hiato neste início de 2020 deve estar no intervalo entre -2,2% e -2,7%. Já Borges vê um hiato entre -4% e -5%. As implicações dessa diferença são grandes para a política monetária brasileira. Se Matos estiver certa, com um crescimento de pouco mais de 2% em 2020, a economia brasileira encostará no seu potencial – ponto a partir do qual podem surgir pressões inflacionárias. Já se a estimativa de Borges for a mais correta, o Brasil pode crescer, pelo menos dois anos, a um ritmo entre 2% e 2,5% antes que os excessos de ociosidade de capital e trabalho sejam exauridos. Do mesmo modo, tomando essas duas ordens de grandeza das estimativas do hiato, o ciclo econômico estaria subtraindo algo entre -0,7 pp (estimativa de hiato de Matos) e -1,6 pp (estimativa de Borges) do resultado primário recorrente do setor público consolidado, em percentual do PIB.

A questão, portanto, é extremamente importante. Nesse contexto, é útil tentar entender por que as estimativas de hiato dos dois economistas divergem tanto. O cálculo do hiato do produto é uma tarefa complexa, que envolve escolhas de técnicas econométricas e de diferentes formas de calcular indicadores econômicos. Nesta Carta, vamos discutir alguns pontos específicos de divergência das estimativas do hiato de Matos e Borges que parecem mais relevantes em termos da economia real (não significa que essas discordâncias expliquem toda ou mesmo a maior parte da diferença na estimativa do hiato dos dois economistas). 

O principal ponto de discórdia, em termos econômicos, parece residir no cálculo da ociosidade do capital, refletido na discussão sobre o nível de ocupação da capacidade instalada na indústria de transformação (NUCI). Diferentemente do que ocorre com a maioria das estimativas do hiato do produto no Brasil, Matos não utiliza o indicador de NUCI da FGV como divulgado, mas, sim, um núcleo desse indicador, excluindo os segmentos de veículos automotores, bens de capital e outros equipamentos de transporte. 

Qual a justificativa? A visão é de que setores menos relevantes para a inflação ao consumidor estão com uma grande capacidade ociosa, como os que foram excluídos. No caso dos veículos, a exclusão se dá especialmente pela supercapacidade construída para a produção de caminhões. Por outro lado, há segmentos de bens de consumo com NUCIs próximos ou mesmo acima da média 2010-2013. Um exemplo é vestuário, com 89,8%, em dezembro de 2019, ligeiramente acima da média de 88,6%, de 2010 a 2013. Já os produtos farmacêuticos, com NUCI de 84,9%, em dezembro de 2019, estão em nível bem superior à média de 75,8%, de 2010 a 2013.

Assim, haveria um “efeito composição no NUCI”, pelo qual a média ponderada, puxada para baixo por setores específicos, pode deixar passarem despercebidas pressões em segmentos relevantes para a inflação ao consumidor.  

Adicionalmente, as pesquisas anuais amostrais do IBGE da indústria, da construção, dos serviços e do comércio cobrem um universo de empresas que encolheu desde os seus picos recentes, em função da destruição de negócios, principalmente ao longo da recessão de 2014-2016. Na Pesquisa Industrial Anual (PIA), no que se refere à indústria de transformação, por exemplo, o número total de empresas recuou em 4,9% entre 2013 e 2017. Assim, as amostras utilizadas na estimativa do NUCI podem estar superestimando o estoque de capital e a capacidade instalada na economia. Matos menciona ainda a notória baixa produtividade do capital no Brasil na última década.

De maneira mais ampla, a abordagem da economista sobre a questão do hiato incorpora a visão de que, nos anos anteriores à recessão de 2014-2016, houve uma onda de investimentos de baixa qualidade ou que representaram má alocação de capital. Esses investimentos teriam criado “capacidade” em alguns segmentos de produção “fora dos preços de mercado”, como nota Livio Ribeiro, pesquisador do FGV IBRE, que compartilha a visão de Matos sobre o hiato. Assim, essa capacidade, de certa forma, seria ilusória, pois não leva à produção economicamente viável.

Matos e Ribeiro incluem outras questões ligadas a ineficiências microeconômicas. A inflação de preços administrados sistematicamente acima da meta, mesmo com baixo crescimento, poderia ser um sintoma de gargalos de oferta. Assim, há preocupação com eventuais problemas de fornecimento de energia elétrica, caso a atividade acelere. 

Borges, por seu lado, discorda dos seus colegas do FGV IBRE quanto ao emprego do núcleo do NUCI da FGV, preferindo utilizar o indicador cheio. Segundo o economista, o NUCI em si produz resultados muito aderentes à realidade quando é usado para calcular o hiato do produto. 

Borges nota, em primeiro lugar, que tanto a média como a mediana dos NUCIs dos 19 setores pesquisados pela FGV, sem ponderação, apontam basicamente o mesmo quadro do NUCI agregado (que é uma média ponderada das ociosidades de cada um desses setores). Portanto, o indicador de NUCI, como divulgado, não estaria sendo afetado desproporcionalmente por alguns poucos setores. 

Para além disso, Borges fez um exercício econométrico com quatro diferentes estimativas do hiato do produto, refletindo as diferentes “visões” dos especialistas em relação ao cálculo do indicador. O economista também incluiu nesse exercício uma medida de hiato baseada unicamente no NUCI da FGV puro – nesse último caso, para testar a hipótese de que ele não estaria captando bem a capacidade da indústria, por ser amostral. 

Utilizando a técnica estatística de construir projeções “fora da amostra” para a inflação, Borges fez duas constatações relevantes. A primeira é que as metodologias que estimam o hiato agregado da economia em torno de -5%, no momento atual, “preveem” melhor a inflação do IPCA no período 2014-2019. E a segunda é que o NUCI da FGV, tomado isoladamente, prevê melhor a inflação do que as séries de hiato agregado nas quais a variável hoje fica em torno de -3%.

Para Borges, é justamente a capacidade de determinada metodologia de cálculo de hiato explicar a trajetória efetiva de outras variáveis macroeconômicas que deve valer como “prova do pudim” – mais do que justificativas conceituais.  

Quanto à questão de eventuais gargalos a um crescimento econômico mais acelerado, como no caso da infraestrutura econômica, o economista diz concordar com Matos. Porém, no caso específico da energia elétrica, ele observa que houve uma “abertura” entre a expansão da oferta e da demanda nos últimos anos. Isso se deu, pelo lado da oferta, pela maturação de vários grandes investimentos em geração, como as usinas do Rio Madeira e Belo Monte, combinada com o aumento da interconexão do sistema nacional. Nesse último caso, sobretudo com a inauguração de “linhões” que trazem energia das usinas do Rio Madeira para o Centro-Sul. Pelo lado da demanda, o fraquíssimo desempenho da economia no Brasil nos últimos anos foi um fator de contenção.

Assim, as projeções de consumo do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) de janeiro de 2020, supondo um crescimento do PIB de 2,3% este ano e de 2,8% na média de 2021 a 2023, indicam um quadro muito tranquilo, com a oferta de energia elétrica se mantendo bastante acima da demanda, embora haja uma aproximação muito gradual entre as duas ao longo desse período. O problema maior, para Borges, está na mudança da composição da geração, com as termelétricas aumentando a sua parcela relativamente à geração hidrelétrica. A razão é a mudança persistente do regime de chuvas, que ficaram mais escassas nos pontos relevantes do território nacional para a captação para produção de energia. Esse fenômeno pode levar ao aumento do preço relativo da energia, mas não a apagões e racionamento, na visão do pesquisador. 

O essencial do debate entre Matos e Borges, entretanto, parece residir mesmo na fidedignidade do NUCI da FGV em retratar a capacidade ociosa na economia brasileira e até que ponto não é melhor utilizar um núcleo do indicador que reflita melhor essa variável. É uma discussão relevante para os responsáveis pela condução da política econômica do País. 

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O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.

Publicada na edição de fevereiro da revista Conjuntura Econômica

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