Uma análise das contas públicas: reação exagerada?

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Precatórios, caiu como um tsunami sobre o mercado que começou a refazer as contas sobre a atividade econômica no próximo ano. Vista como uma manobra para furar o teto dos gastos para conseguir dinheiro para pagar o Auxílio Brasil, que substituirá o Bolsa Família, além de acomodar as pressões políticas por emendas parlamentares que, segundo artigo publicado na revista Conjuntura Econômica de Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo, Fábio Giambiagi, pesquisador-associado do FGV IBRE e Marcos Mendes, pesquisador do Insper, já consomem 51% do Orçamento da União (veja mais aqui), a reação foi intensa, com o dólar disparando, as Bolsas caindo e o risco Brasil aumentando.

O peso dessas emendas parlamentares no Orçamento tende a crescer ainda mais. Quando da publicação do artigo na edição de setembro da revista, antes dos Precatórios, quase R$ 34 bilhões estavam distribuídos no Orçamento de 2021, entre três diferentes tipos de emendas: individuais, das bancadas estaduais e do relator.” Estas últimas”, segundo os autores, “representam metade desse total. Isso configura um enorme poder discricionário, na mão de um grupo muito reduzido. Além de já termos um nível muito baixo de investimento público, mais da metade das emendas é aplicada de forma pulverizada, representando uma certa “casta” que se cristaliza com esse expediente, o que não é do interesse público e nem da totalidade dos parlamentares.

Quando analisamos o peso das emendas no total das despesas primárias alocadas para investimentos, a distorção mostra-se ainda mais saliente. Como se pode ver na tabela, nada menos que 51% de todo o investimento federal é decorrente de emendas”, explicam.

Despesas com emendas parlamentares por categoria
(R$ bilhões e participação % no total)


Fonte: Siga Brasil.

 

Total de investimentos no Orçamento Geral da União de 2021, alocados ou não por emendas parlamentares


Fonte: Siga Brasil.

O ministro Paulo Guedes classificou a PEC como “um meteoro”, segundo noticiou a imprensa, que são dívidas judiciais que o governo tem com pessoas físicas e jurídicas, muitas das quais são funcionários públicos como professores, funcionários da Saúde e servidores do baixo escalão do Estado brasileiro.

Com a proposta o governo quer parcelar essas dívidas que deveriam ser pagas no ano que vem e que podem chegar acima dos R$ 90 bilhões.  A intenção é parcelar em até dez vezes os precatórios com valor acima de mil salários-mínimos, dando uma entrada de 15% e pagando o resto em nove prestações anuais.

Ontem, o mercado voltou a revisar suas previsões, dada a insegurança gerada com um controle menos austero da questão fiscal. O crescimento do PIB para 2022 caiu de 1,2% para 1%. No começo do ano, a estimativa era que a economia brasileira crescesse 2,5% no ano que vem. A taxa de juros também subiu, devendo fechar 2022 em 11%.

Mas será que o quadro fiscal brasileiro, mesmo com uma provável aprovação da PEC dos Precatórios, irá piorar de forma substancial? Ou é a ação, que poderia representar uma irresponsabilidade fiscal, que está causando tanto rebuliço no mercado?

A Carta do IBRE que será publicada na edição deste mês na revista Conjuntura Econômica, através de dados, busca esclarecer esse ponto.

Alguns pontos que a Carta destaca:

• Foi a evidente manobra do governo para ampliar o gasto no ano eleitoral bem acima do que se poderia fazer com o teto com suas atuais regras que levou o mercado financeiro a ver uma ruptura da âncora fiscal, que acalma os investidores desde 2016. Mas será que o estrago fiscal foi de fato tão grande? Uma análise ponderada das contas públicas brasileiras desde a pandemia e das perspectivas à frente, levada a cabo por Manoel Pires, pesquisador-associado do FGV IBRE, sugere que a reação negativa foi exagerada.

• Entre 2019, ano anterior à pandemia, e 2022, o resultado primário projetado do Brasil, segundo o Monitor Fiscal do FMI, deve melhorar em 0,2 ponto porcentual (pp). Esse é um resultado melhor do que a média da maioria dos países emergentes. Usar 2019 como ano inicial da comparação prejudica em particular o Brasil, porque o primário nesse ano foi mais elevado fortuitamente em função da arrecadação extraordinária que o governo obteve com o leilão de petróleo da cessão onerosa. Se a comparação for entre 2018 e o projetado para 2022, o Brasil, com 0,9pp de melhora no resultado primário, fica acima de todos os países emergentes destacados pelo Monitor Fiscal.

• Como notou Sergi Lanau, economista do Institute of International Finance (IIF), em recente comentário no Twitter, “muito poucos mercados emergentes vão voltar para o nível de gastos de 2019 em 2022. A maioria está longe da normalização. Se o Brasil estourar o teto de gastos em 0,4pp a 0,8pp do PIB [referência à PEC dos Precatórios], ainda vai ficar longe dos maiores gastadores. Afrouxar as regras não é bom, mas numa perspectiva de vários países, as coisas [no Brasil] não estão terríveis”.

• Com as mudanças da PEC dos precatórios, as despesas primárias do governo federal orçadas para 2022 saltam de 17,5% do PIB (R$ 1,647 trilhão), que constavam do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), para 18,1% do PIB (R$ 1,693 trilhão). Ainda assim, o novo valor é um recuo em relação ao gasto federal de 18,9% do PIB de 2021. Em 2016, ano em que o teto foi aprovado, o gasto federal foi de 19,9% do PIB. Como se vê, mesmo se aprovada a PEC dos Precatórios, a trajetória é de inequívoca melhora.

• As despesas de pessoal (incluindo inativos) em 2022 devem cair para 3,7% do PIB, menor nível desde pelo menos 2010, e bem abaixo do patamar em torno de 4,3% que prevaleceu de 2017 a 2020. Como o salário-mínimo real praticamente não cresce desde 2014, as despesas previdenciárias e de outros benefícios atrelados ao mínimo também estão contidas. Já o gasto discricionário, que em 2010 atingiu 3,3% do PIB, cairia para a baixa recorde de 1,05% em 2022, pelo PLOA, e com a PEC dos precatórios pode ficar ligeiramente acima disso – mas certamente abaixo do 1,4% do PIB de 2021.

• Assim, se é verdade que a alteração do teto desgasta a âncora fiscal e cria incertezas, por outro lado os números acima, numa perspectiva macroeconômica, apontam que os indicadores das contas públicas seguem melhorando.

Ao esclarecer que o quadro fiscal não está se deteriorando como mostram os números, a Carta ressalta, no entanto, que do ponto de vista microeconômico, a contaminação política prejudica a qualidade do ajuste fiscal.

E enumera problemas em relação a isso:

• Quando o governo não investe, os parlamentares ocupam de forma crescente o orçamento com emendas, que no fundo são investimentos descoordenados, de motivação paroquial, e que contribuem muito menos para acelerar o crescimento de forma sustentável na comparação com um programa federal bem planejado e implementado.

• Agora, um processo similar parece estar atingindo o Bolsa-Família, o melhor programa de transferência de renda brasileiro. Jogado no ringue das disputas eleitorais e entre Executivo e Legislativo, o Bolsa-Família caminha para ser transformado no Auxílio Brasil, perdendo no processo as qualidades de transferência bem focada nos mais pobres com condicionalidades bem pensadas para impulsionar crianças e jovens das famílias beneficiadas para fora da armadilha intergeracional da pobreza.

• Críticas bem fundamentadas ao que se deu a conhecer do Auxílio Brasil apontam a multiplicação fragmentária de subprogramas, com novas modalidades levando à concorrência orçamentária entre diferentes partes do governo. Adicionalmente, o novo programa aumenta a insegurança social porque a parte maior da ampliação em relação ao Bolsa Família só é válida até dezembro de 2022. Como exemplo emblemático de perda de foco do programa, está a possibilidade de inclusão de categorias profissionais, como a dos caminhoneiros, bem acima dos níveis de pobreza característicos dos recipientes do Bolsa-Família.

• O controle social vem sofrendo limitações. Já não é possível saber o tamanho da fila do Bolsa-Família, e o movimento de centralização impede maior integração entre o auxílio financeiro e demais ações socioassistenciais. Enfim, há menor disponibilidade e transparência dos dados. Finalmente, a oferta de crédito consignado para os beneficiários do programa é uma inovação duvidosa, já que pessoas sem educação financeira – como tipicamente serão os recipientes do benefício – tendem a apresentar maior volatilidade de renda.

Ver a íntegra da Carta do IBRE

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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