“Será difícil, para Javier Milei, fazer um ajuste de 5 % do PIB só com corte de gastos”

Fabio Giambiagi, pesquisador associado do FGV IBRE

Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

A conjuntura dos últimos meses foi especialmente intensa para o economista Fabio Giambiagi. Prolífico, o pesquisador teve um olho atento à sucessão presidencial na Argentina – país natal de seus pais, onde foi criado, que vive um castigador processo inflacionário –, e outro na questão fiscal brasileira. Confira aqui trechos da conversa que tivemos com Giambiagi, entrevistado do mês de dezembro da Conjuntura Econômica:

Conjuntura Econômica — Qual é sua avaliação das primeiras medidas de Javier Milei como presidente  da Argentina?

O pacote anunciado foi algo feito às pressas, mas com a ideia de dar alguma satisfação diante da premência da situação e, de fato, mostrar um caminho claro. Tem muitas medidas com grande impacto midiático mas pouco efeito fiscal. De relevante, sim, a perspectiva de eliminação dos subsídios, algo inevitável mas que terá um custo inflacionário elevado. Os pontos fundamentais, porém, ficaram fora. O que cabe saber é: 1. O que acontecerá com as aposentadorias? e 2. Haverá também algum esforço de aumento da receita? O INSS argentino tem despesas da ordem de 8% do PIB. Se mexerem nisso, evidentemente o efeito fiscal é relevante, mas o ônus de perda de popularidade também. E, no lado da receita, acho que deverão buscar algum impacto de aumento de arrecadação porque é muito difícil fazer um ajuste de 5 % do PIB só com corte de gastos

Em entrevistas, você mencionou que, mais além da questão fiscal, o maior problema que Milei terá adiante será conter a inflação. Poderia contextualizar?

Vejo o futuro presidente e seu ministro de Economia, Luis Caputo, muito preocupados com o ajuste fiscal e com o chamado “problema das LELIQs”, que são títulos de curto prazo administrados pelo Banco Central para controlar a liquidez. Isso é compreensível e deverá concentrar as atenções das autoridades nos primeiros meses. O problema é que no início de 2023 a inflação era da ordem de 6% ao mês e tudo indica que a inflação nos primeiros meses de 2024 será muito superior a isso. Portanto, a inflação em 12 meses não apenas continuará a aumentar, como irá fazê-lo muito rapidamente. Consequentemente, o ânimo da população será influenciado por isso. Acho que os argentinos entendem que não dá para fazer mágica a curto prazo, mas a tolerância tende a durar pouco tempo com uma inflação dessa magnitude. 

Você também já mencionou considerar que, em que pese a calibragem no tom de Milei, que trouxe otimismo aos mercados, hoje não vê na equipe de governo nomes consistentes para conduzir o duplo ajuste – fiscal e monetário – que a Argentina precisa para sanar sua economia. Qual tipo de tarefa desclassifica os atuais nomes e por quê?

Se algo os brasileiros aprenderam daqueles famigerados cinco planos de estabilização que não deram certo entre 1986 e 1991 foi que uma estratégia de combate à inflação, para dar certo, precisa de duas pernas: da perna monetário-fiscal, convencional, mas também da perna desindexatória, muito bem calibrada para que se possa passar de uma inflação altíssima para outra baixa em muito pouco tempo. Quando o Brasil fez o Plano Real, havia dez anos de reflexão prévia sobre o assunto e um conjunto de craques, com destaque para Gustavo Franco, Pérsio Arida e André Lara Resende, que tinham queimado muitos neurônios pensando em tudo quanto é detalhe sobre o tema. Não vejo ninguém do time de Milei que aparentemente esteja se preparando para assumir o comando na Argentina com esse track record. Alguém terá que se debruçar sobre essas questões, cedo ou tarde, porque imaginar que a inflação poderá ceder de 11% ao mês para 10%, depois 9%, depois 8% e assim sucessivamente, é uma ilusão.

Quais os principais desafios – domésticos e de agenda externa – que o governo de Milei pode trazer para o Brasil e a gestão de Lula?

Há dois que me parecem mais importantes. O primeiro é a possibilidade da Argentina se aliar ao Uruguai e ao Paraguai para que o Brasil adote uma postura mais pró-abertura no Mercosul, o que particularmente acho que seria um desafio interessante para o Brasil. E o segundo, em caso de vitória de Trump nos EUA ano que vem, a possibilidade de ter uma linha de comunicação com ele como a que existia entre Bolsonaro e Trump – o que seria uma dor de cabeça enorme para o Itamaraty.

Agora tratando do Brasil, no campo fiscal, você já mencionou que o novo arcabouço fiscal pode ter vida mais curta que o teto de gastos. Por quê?

Há uma incompatibilidade intrínseca entre a regra geral do arcabouço, que é boa – regra com base na qual o gasto cresce 70% da variação real da receita – e as regras específicas que o governo vem defendendo. Na vigência do teto anterior, tínhamos o total do gasto estável, mas uma série de outros itens também estáveis. Agora temos o total crescendo, mas o salário mínimo vai aumentar, as despesas com saúde e educação vão voar, entre outras. Portanto, o que vai acontecer é que, assim como depois de 2016, essa dinâmica vai levar a um achatamento das despesas discricionárias. Como a gente sabe que em 2023 o arcabouço não vale e em 2024 a regra é um pouco “de mentirinha”, porque com a redação marota da lei complementar a regra para 2024 é “mais ou menos”, o arcabouço só vai começar a valer à vera em 2025. Ora, se o PT está esperneando agora, com o gasto nas nuvens, imagina o que vai acontecer quando as discricionárias começarem a cair em 2025, a caminho das eleições. Vão acontecer duas coisas: o arcabouço vai trincar e o presidente Lula vai se considerar enganado pelo ministro Haddad, por considerar que ele não lhe explicou o que iria acontecer. Mas a responsabilidade é do presidente, por não fazer as perguntas certas quando lhe levam as questões para ele arbitrar.

Recentemente, você e Guilherme Tinoco lançaram um estudo que faz uma retrospectiva de 43 anos de estatísticas fiscais brasileiras. O documento mostra que, apesar do avanço institucional, chegamos a 2023 com o mesmo resultado primário de 40 anos atrás. A que se deve esse cenário?

Evidentemente, isso sugere que temos um problema como país e não apenas do governo A ou B. Eu diria que o país, a opinião pública em geral, os governos e a classe política em particular, todos, têm uma enorme dificuldade em lidar com a noção de restrição. A ideia é que sempre se pode “dar um jeitinho” para acomodar um pouco mais de gasto ou um pouco mais de déficit. Eu vou dizer uma coisa que vai chocar muita gente, mas que é a mais absoluta verdade: nós temos um déficit público maior que o da Argentina. E a Argentina, há de convir, é uma bagunça, não? Então, o que nós temos, sim, é um Banco Central de “primeiro mundo”. Mas se em matéria monetária o país se graduou, em matéria fiscal historicamente eu diria que merecemos ser reprovados com 4. E a política fiscal do atual governo, em particular, é péssima. O ministro é muito ponderado, ele se esforça, mas é como ter um técnico que fala bonito, usa termos em inglês, mas o time sempre perde. Chega um momento em que a torcida só quer saber dos resultados no campo. E quais são os resultados? Receitas baixas e gasto voando. E zero preocupação do governo em adotar medidas para conter o gasto. Aos poucos, as pessoas começam a perceber que, em matéria fiscal, o ministro fala muito, mas entrega pouco.

Em recente entrevista à Conjuntura Econômica, Guilherme Tinoco mencionou proposta elaborada por vocês de flexibilizar a regra do teto de gastos após a reforma da Previdência, para abrir espaço a um aumento de despesa. Na atual regra, qual revisão faria para que fosse sustentável?

Estou convencido de que em 2027 haverá um debate sobre a revisão do arcabouço. Minha sugestão é muito simples: elevar o teto e colocar tudo nele, sem exceções, com o teto crescendo IPCA + 1,5%. E ponto final. Assim acabará a esperteza atual de “jogar o item para o extrateto” com o argumento bizarro de que “não afeta o teto”. Ora bolas, não afeta o teto, por definição, mas afeta, digamos, o espírito da regra! Alguém quer fazer bondade e aprovar um aumento para a rubrica X? Problema nenhum, desde que aponte qual é a rubrica cujo orçamento vai ter que cair. Vai aumentar o salário mínimo? Ótimo, então, o que vai cair? As emendas parlamentares? Não vai ter aumento para o funcionalismo? Assim vai acabar esse mundo de fantasia em que estamos em 2023, na situação em que estamos todos felizes porque o gasto está crescendo loucamente, mas “não tem problema” porque aprovaram um Orçamento com um déficit maluco que comporta um aumento enorme da despesa. Na prática, com o fim do teto vivemos numa situação que a literatura denomina de soft budget constraint e precisamos passar para outro de hard budget constraint. Desconfio que se o novo governo argentino tiver sucesso no seu programa de ajuste fiscal, daqui a um ano a situação brasileira pode ficar meio constrangedora, porque vamos acabar com um déficit muito maior que o argentino, a quem todo mundo considera o pior aluno da turma. Talvez nesse caso tomemos vergonha e ataquemos a sério a questão do gasto.

Como avalia a possibilidade de, na prática, se recriar o orçamento secreto, que foi tema de sua análise na Conjuntura no ano passado, em coautoria com Marcos Mendes e Paulo Hartung (leia aqui)?

A imprensa tem enfatizado muito essa questão, mas no meu modo de ver o caráter sigiloso da despesa, embora grave, é o menor dos problemas. O que conspira dramaticamente contra o futuro é o valor. Veja, estamos falando de algo que anos atrás era da ordem de R$ 10 bilhões/ano, considerando o conjunto das emendas; hoje, anda flertando com o nível de R$ 50 bilhões/ano. É preciso deixar isso muito claro: trata-se de uma aberração. Por quê? Pensemos numa política pública meritória, de interesse nacional e que faria todo sentido ser coordenada pelo governo federal: um plano de prevenção de desastres naturais. Todo ano, no verão, há chuvas torrenciais em algum lugar, seguidas daquele quadro conhecido: deslizamentos, enchentes, mortes. Hoje no Rio, amanhã em Minas, depois de amanhã na Bahia. É um problema do país, não do estado A ou B. Dá para pensar em um plano nacional, adaptado a cada realidade local, para no prazo de cinco a dez anos identificar, mapear e atacar todas essas ameaças. E o que se faz? Nada. E todo ano temos o mesmo drama. Por quê? Porque não há recursos. Por outro lado, todo ano temos uma série de gastos sem sentido. Então, qual é a conclusão óbvia? A de que não temos recursos para fazer o que é um dever moral fazer porque todo ano torramos dezenas de bilhões de reais em bobagens. O termo pode soar forte, mas a imagem que uso é a de um pai de família com três filhos que matricula um deles para estudar grego, manda outro para fazer intercâmbio de inglês por 15 dias e anota o terceiro para ter aulas particulares de espanhol, mas espaçadamente, nos meses de março, junho e outubro. O pai pode imaginar que está ajudando a educação dos filhos, mas não: estudar grego não vai servir para nada ao primeiro filho, em 15 dias o segundo não vai aprender nada relevante de inglês e o terceiro, o que aprender num mês vai esquecer nos dois meses seguintes. É o que estamos fazendo com as emendas parlamentares: gastando recursos públicos sem nenhum planejamento integrado, em coisas que não fazem nenhum sentido. Na pandemia viajei muito pelo Brasil e cansei de ver obras Brasil afora, sem nenhum planejamento, sem nenhuma lógica e provavelmente cada uma custando de R$ 5 milhões a R$ 10 milhões. É uma tristeza.

 

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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