Se estados usarem folga fiscal conjuntural para ampliar despesas permanentes, estarão contratando a próxima crise, alertam especialistas

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Uma conjuntura bem particular tem tornado a situação de caixa dos estados brasileiros muito melhor do que se projetava nos orçamentos para 2021. Tudo começou no ano passado, quando a ajuda da União para conter o impacto da pandemia se mostrou mais generosa do que a realidade exigiu, dado o ritmo de recuperação da arrecadação desses entes a partir do segundo semestre de 2020. Mas foi a escalada inflacionária observada este ano que contribuiu de forma definitiva para tal resultado.  “No agregado, hoje o superávit primário dos estados chega quase à casa dos R$ 100 bilhões”, ilustra Guilherme Tinoco, assessor especial da Secretaria de Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo. Ainda é difícil identificar o que de estrutural há dentro desse cálculo, especialmente para os estados que vêm tomando medidas de ajuste de seu quadro fiscal. Até que esses fatores estejam claros, entretanto, o alerta de especialistas em contas públicas é o mesmo, e se resume nas palavras de Tomaz Leal, assessor econômico na Secretaria de Fazenda do Paraná: “se os estados aproveitarem dessa folga um pouco maior para novamente aumentar despesas permanentes sem cuidar do ajuste estrutural, estarão contratando a próxima crise”, diz.

Leal e Tinoco, junto ao pesquisador associado do FGV IBRE Manoel Pires, participaram na última sexta-feira (12/11) do webinar Os Desafios para uma Eficiente Gestão Pública, promovido pelo IBRE em parceria com o Valor Econômico, moderado por Cristiano Romero, diretor-adjunto de redação e colunista do jornal.

A preocupação dos economistas é patente, frente a um 2022 que pode ser de retração da atividade econômica – recentemente, a equipe do Boletim Macro do FGV IBRE revisou para baixo a projeção do PIB do próximo ano, para 0,7% – com desafios inflacionários, para o mercado de trabalho, e na mitigação do aumento da pobreza, sob um contexto eleitoral também nos estados. “As dificuldades serão grandes, não somente na questão fiscal como para a melhoria de políticas públicasde saúde e educação”, diz Tinoco. O lado meio cheio desse copo, ressalta, é que o Brasil tem exemplos que comprovam que, com dedicação, é possível obter melhorias permanentes. Tinoco é um dos organizadores, junto a Fabio Giambiagi, pesquisador associado do FGV IBRE, e Victor Pina Dias, economista do BNDES, do recém-lançado livro O Destino dos Estados Brasileiros – liderança, responsabilidade fiscal e políticas públicas. A obra analisa a história recente de 12 estados, contada por 23 autores, apontando sucessos e fracassos na gestão de caixa e de políticas públicas que independem de tamanho da economia, estrutura produtiva ou linha ideológica do governo. Por exemplo, os casos mais desafiadores de ajuste fiscal, como mostra o livro, estão nos estados entre os mais ricos do país – Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Em outra seção, os organizadores mostram que alguns dos exemplos mais ilustrativos de esforço na conquista da solvência fiscal são encontrados em estados com lideranças localizadas em diferentes pontos do espectro partidário: Goiás, de Ronaldo Caiado (DEM); Alagoas, com Renan Filho (MDB), e Bahia, com Rui Costa (PT). “O que determina o sucesso dos cases positivos é uma combinação de quatro elementos: um diagnóstico claro da situação; o firme apoio político do governador à equipe; capacidade de articulação política do governo estadual para pavimentar o terreno e saber lidar com a Assembleia Legislativa e o Judiciário estadual; e uma boa equipe técnica. Se faltar qualquer um dos 4 elementos, dificilmente haverá sucesso nas iniciativas”, afirma Giambiagi ao Blog da Conjuntura.

Os especialistas reconhecem, entretanto, que para um realinhamento completo da gestão fiscal dos estados é indispensável o apoio do Governo Federal, seja com medidas de suporte à recuperação fiscal desses entes, que já não têm capacidade própria de endividamento, seja na promoção de reformas estruturais que mexam diretamente no equilíbrio fiscal de estados e municípios, como a tributária.

Manoel Pires identifica um caminho evolutivo claro nessa relação, desde o advento do Plano Real – quando os estados perderam a muleta hiperinflacionária que corroía o valor das despesas adiadas, contexto também apoiado pela compra de dívida pública pelos bancos estaduais, e esses entes tiveram de encarar um déficit grande. “O processo de reestruturação aconteceu primeiro com o aumento da carga tributária”, cita, mencionando ainda outros dois marcos importantes no nível estadual: a reestruturação da dívida em 1997, e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em 2001, como marco para a estabilização das dívidas. “A LRF foi muito boa para manter a situação criada no início do ano 2000; entretanto, não foi suficiente para criar instrumentos para um período de recuperação fiscal necessária”, aponta Pires, lembrando que o solavanco na arrecadação provocado pela recessão 2014-16 foi o epicentro de uma nova crise fiscal nos estados. “Na verdade, o quadro para os estados começa a se reverter a partir de 2008/09, devido a uma série de políticas fiscais anticíclicas acionadas por parte do governo federal, gerando renúncias fiscais de impostos a ser repassados a estados”, ressalta Leal, citando ainda  um forte avanço do gasto com pessoal nesse período. “Tudo isso, concomitante a uma perda do poder arrecadatório do ICMS, levando a que os estados, a partir da década de 2010, passassem a ser pressionados tanto pelo âmbito da despesa quanto da receita.”

Para combater essa crise, o governo federal lançou duas políticas de promoção de ajuste fiscal – cuja mais radical, o Regime de Recuperação Fiscal (RRF), do qual participou apenas o Rio de Janeiro, foi renovado este ano “com contrapartidas e prazo de refinanciamento ampliados”, lembra Pires. Tais regimes de cooperação surtiram efeito, como em políticas de controle de gasto com pessoal mais rígidas em vários estados. “Estudo do Ipea mostra que desde 2015 o gasto com pessoal nos estados desacelerou bastante: crescia à base de 7% em termos reais de 2010 a 2015 e agora passou a crescer 1%”, ilustra o pesquisador do FGV IBRE.

Há outra parcela de ajuda no âmbito Federal, entretanto, que ainda precisa avançar, lembram os especialistas. “Não há estado que fique incólume diante de legislações federais benevolentes. Se o Congresso aprova uma Lei aumentando o salário dos professores, para citar um caso, a sociedade aplaudirá, mas isso provavelmente será um enorme desafio fiscal para os governos subnacionais”, cita Giambiagi, indicando a necessidade de uma articulação permanente entre os governos Federal e estaduais, “coisa que hoje não existe”, aponta.

Outro tema fundamental nessa agenda, aponta Tinoco, é a reforma tributária, especialmente a voltada à tributação sobre consumo. “Para estados mais ricos de base industrial, por exemplo, o ICMS é o nome do jogo. No livro temos boas experiências estados que usaram mais tecnologia, adotaram administração tributária, mas tecnologia sozinha não resolve deficiências do sistema como um todo”, afirma. “É preciso que o governo federal reconheça que esse tipo de reforma é fundamental para trazer ganhos de produtividades e competitividade é balizadora para a mudança de rumo país, não só para os estados”, reforça Leal.

Reveja o webinar Os Desafios para uma Eficiente Gestão Pública

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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