Saneamento: “Mais efetivo que investir em obras seria o governo ajudar os mais pobres a pagar a conta”

Jerson Kelman, ex-professor da Coppe/UFRJ, ex-presidente da Sabesp

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Como avalia o papel do Novo PAC para a universalização do saneamento?

O setor saneamento vive uma aceleração de investimentos cuja sustentabilidade não depende de recursos fiscais, isto é, do orçamento público. Depende, isso sim, da materialização das condições que o Marco Legal do Saneamento de 2020 criou para a iniciativa privada investir no setor. Nesse sentido, a principal ação que o governo pode fazer é garantir estabilidade de regras. Por exemplo, dotando a Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA) das condições para formular as diretrizes gerais da regulação do setor. No campo da infraestrutura, saneamento não é exceção: envolve investimentos de longuíssimo prazo, para os quais ter previsibilidade é uma pré-condição. Assim, das coisas que podemos e ainda precisamos fazer, a maioria está mais relacionada ao cumprimento do Marco Legal do que à necessidade de financiamento público.  

Dentre os temas que considero mais importante, ressalto a questão da regionalização, a das tarifas sociais e a questão da estrutura tarifária. São três temas que precisam avançar para que, de fato, todos os brasileiros tenham acesso ao saneamento.

O que percebi até o momento, entretanto, foram manifestações para uso do recurso orçamentário da forma que já conhecemos, em obras públicas. Considero que esta não é a melhor alternativa, pois é suscetível a pressões para se começar uma obra sem a necessária avaliação da capacidade para concluí-la. Ou seja, fazer a obra pela obra, o que leva à grande quantidade de empreendimentos inacabados que temos hoje. Ou outros que, quando concluídos, não recebem a adequada manutenção. A tendência é que repitamos essa mesma receita de sempre que, ao longo de décadas, sob governos diferentes, mostra uma baixíssima eficácia.

Como os recursos públicos deveriam ser aplicados?

Uma maneira de alocar os escassos recursos públicos na disponibilização de infraestrutura para atendimento da população de mais baixa renda, é com subsídio direto aos consumidores, como acontece no Chile, ou por meio de pagamento pelos resultados. Ao invés se financiar uma obra de expansão, garante-se o fluxo de caixa para quem construir e operar. Por exemplo, em vez de dar dinheiro para construir uma estação de tratamento de esgoto, reservam-se recursos fiscais para pagar, ao longo de diversos anos, por cada metro cúbico de esgoto devidamente tratado.

Veja, uma estrutura de saneamento, para funcionar bem, não demanda só obra: requer energia elétrica, produtos químicos. Se um programa apenas entregar uma obra para um município, pode ser que este ente não tenha capacidade de operá-la, seja por falta de capacidade fiscal ou outra. O sucesso de um serviço de saneamento depende de se dar condições para que aquela infraestrutura funcione ao longo de décadas. Inaugurar é fácil. Difícil é fazer funcionar por muitos anos

Durante os governos militares, me parece que houve a decisão acertada de organizar os serviços de saneamento na escala dos estados, a partir da qual foram constituídas as companhias estaduais de saneamento como a Sabesp em São Paulo e a Cedae no Rio de Janeiro. Já a Constituição de 1988 disse apenas que serviço público de natureza local é de titularidade municipal. Por muitos anos interpretou-se que todo o serviço de saneamento seria de titularidade municipal, embora frequentemente o serviço não fosse de natureza local, como é o caso de regiões metropolitanas em que a infraestrutura é compartilhada. Ou o caso de regiões do semiárido, onde uma adutora serve a vários municípios. Mesmo quando não haja compartilhamento de infraestrutura, em geral a escala mais eficiente não é a municipal. Por isso, o Marco Legal estimulou a organização do serviço de saneamento por regiões, e não por municípios. Mas a materialização desse preceito legal de 2020 muitas vezes tem se dado de forma atabalhoada. Em alguns casos, com leis estaduais só para inglês ver.

Hoje se debate a questão da meta fiscal, sob risco de que o governo tenha que contingenciar verbas do PAC em 2024. Sob esse contexto, como definir prioridades quando se trata do saneamento?

Esse sempre será um desafio. Quando fui presidente da Sabesp (2015-18), a companhia atendia a 570 municípios, divididos em 15 regionais. Na hora de discutir o orçamento, a dinâmica se assemelhava à que se vê no Congresso, ou mesmo no Executivo, entre ministérios: cada um queria garantir o seu quinhão, que sua área fosse a mais bem-servida, algo perfeitamente legítimo.  Por isso a importância de se ter um método. No caso da Sabesp, optamos por promover um grande seminário onde definimos critérios de prioridade. Muitas vezes, as escolhas continuam sendo politicamente difíceis, mas pelo menos você tem alguma barra, algum horizonte. Por exemplo, é mais prioritária uma estação de tratamento de esgoto de uma cidade que lança esgotos sem tratamento num rio onde outra cidade localizada logo jusante capta água para abastecer a população do que numa outra situação em que não haja a preocupação com a contaminação do manancial da cidade de jusante.  Aí, volto ao ponto a que já me referi: não é fazer obra onde há dinheiro para obra, e sim garantir recursos para cada metro cúbico de esgoto tratado ao longo dos anos. Se você tem garantia de fluxo de caixa futuro, a iniciativa privada vem e investe.

Considera que as concessões que faltam ser feitas serão difíceis, de que os bons negócios já tenham sido concluídos?

Quanto a isso, acho que a ideia de se conceder o filé com osso junto, como popularmente se diz, já está dada. O conceito da regionalização é exatamente feito para garantir benefícios cruzados – não do município grande para o pequeno, não do rico para o pobre, mas entre consumidores que têm cobertura para aqueles que não têm.   

Há uma injustiça histórica que precisa ser corrigida. Durante décadas, o saneamento chegou aonde chegou, até razoavelmente bem, a cobertura de água mais do que a de esgoto, essencialmente com recursos orçamentários. E o resultado é que todos os pagantes de impostos sustentaram a construção da infraestrutura que temos hoje no país, que serve aos que têm poder aquisitivo para pagar a conta. Mas esse saneamento não está nas periferias, nos lugares pobres, nas favelas. É uma enorme injustiça, porque os impostos foram pagos por todos, inclusive pelos pobres. Nesse sentido, o serviço de saneamento é muito diferente do de energia elétrica, que esse já é universalizado, não demanda tanto investimento. Para corrigir essa injustiça, é preciso garantir tarifa social à população que não tem condições de pagar tarifa cheia. Parte desse custo terá que ser coberto por subsídio cruzado dos que se beneficiaram historicamente dos investimentos públicos em favor dos que ficaram à margem desses benefícios.

Considera que o processo de regionalização está evoluindo a contento? Há muitas críticas quanto a esse desempenho.

Concordo com os críticos de que até agora a solução da regionalização não foi bem implementada, mas porque deram um prazo muito curto para a universalização. Aí, ao invés de incentivar, acabou sendo desmotivador. Quando se discutiu o Marco do Saneamento, fui contra o prazo de 2033. Já imaginava que não seria possível alcançar.  Imagine se alguém chegar pra mim e disser:  caminhe 10 km. Eu vestirei um tênis, caminharei um pouco, me animarei, e em breve chegarei aos 10 km. Mas se me pedirem para correr uma maratona de 42 km em pouco tempo, nem visto o tênis. Prefiro pegar uma cerveja, porque sei que não adiantaria me esforçar, pois é algo inalcançável. Então, metas são boas, desde que sejam possíveis de se alcançar.

Veja o atual exemplo do estado São Paulo. Considero que eles estão indo por um bom caminho, incentivando a viabilidade da regionalização, num processo de baixo para cima, com participação das lideranças municipais. Ao término desse processo talvez se revise a atual divisão do estado em quatro regiões.

Identifica alguma demanda adicional para que a regionalização seja âncora da universalização?

O conceito de regionalização é correto. Mas, como disse, a forma como se tentou implementá-la desde a aprovação do Marco foi meio para cumprir tabela. Nem por isso, entretanto, acho que ela deve ser abandonada, mas sim revisitar o tema como São Paulo está fazendo. Por que a regionalização é correta? Porque ela dá escala para fazer subsídios cruzados, leva a maior produtividade – com um corpo fixo de engenheiros, compra de insumos em escala. E aí sim o governo, tanto estaduais quanto federal, poderiam entrar no processo, identificando quais as regiões que ficam de pé e todos saem ganhando, e as que demandam apoio. Citei a tarifa social, pois seria muito melhor se o governo federal, em vez de gastar em obra, ajudasse os pobres a pagar a conta. Dessa forma, se rompe a dinâmica de empresas tenderem a concentrar sua prestação onde se pode pagar a conta. Com um “Bolsa Família” do saneamento, a empresa privada ou pública vai investir.

Citei a regionalização e a tarifa social, mas gostaria de comentar também a estrutura tarifária atual, que é herdada da década de 1960 e traz inúmeras deformações. Qualquer tarifa de serviço público deve ter dois componentes. Um dele é o pagamento que se faz pela infraestrutura, que está à disposição e pela qual o usuário pagaria um preço mensal fixo, não importa a intensidade de uso. Outro componente da tarifa é o volumétrico, como metros cúbicos de água consumida. Hoje, o que temos é uma tarifa que cobra pela disponibilidade por meio da cobrança de um consumo mínimo. Tem uma tarifa diferenciada para o setor industrial, comercial e residencial, mas o resultado tem uma série de deformidades. Por exemplo, hotéis que contratam caminhões-pipa para não passar de um certo nível de consumo; pessoas que furam poço e usam água de má qualidade para evitar a tarifa. Então, a estrutura tarifária que temos hoje merece uma revisita e uma evolução gradual, para dar sinais econômicos mais racionais.

Leia também – Novo PAC e o saneamento: por um programa mais efetivo e inclusivo.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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