Regulação do mercado brasileiro de hidrogênio verde: “principal desafio hoje é harmonizar trabalho do Senado e da Câmara”

Fabiola Sena, CEO da FSET

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Na edição de setembro (acesso gratuito aqui), a Conjuntura Econômica tratou do potencial brasileiro para atrair investimento direto de empresas e países que precisam cumprir metas de descarbonização, produzindo no país com garantia de energia renovável, abundante e a preços competitivos – estratégia batizada pela CAF de powershoring – ou mesmo fabricando aqui hidrogênio verde para exportá-lo na forma de amônia. O mercado do hidrogênio de baixo carbono é hoje um dos mais disputados mundialmente, e para entrar nessa competição o país tem uma série de tarefas a realizar – entre elas, a regulação. Fabiola Sena, CEO da consultoria FSET, especialista em regulação do setor de energia, conversou com o Blog sobre os desafios dessa agenda. Confira aqui:

Quais os desafios do Brasil na regulação do mercado do hidrogênio verde?

Ainda estamos por definir o marco legal das políticas de incentivo ao hidrogênio verde, mas é preciso destacar que, apesar de importante, ele não será um remédio milagroso que garantirá que todos os projetos saiam do papel. Para que isso aconteça, será preciso desenvolver uma ampla cadeia que envolve, entre outros, transporte, armazenamento e distribuição. Só assim a produção brasileira ganhará escala e alcançará custos competitivos. No caso do hidrogênio produzido por eletrólise, que é o hidrogênio popularmente conhecido como verde, a energia elétrica renovável é outro componente relevante, pois representa o principal custo de produção depois da planta instalada. Assim, o que a regulação traz para esse contexto é segurança jurídica para que os agentes privados comecem a desenvolver seus primeiros projetos piloto, de demonstração, e impulsionem a chamada reindustrialização verde, tornando o Brasil um player relevante nesse mercado estimulado pela transição energética.

Quanto ao marco legal, o principal desafio que temos hoje é o de harmonizar o trabalho das  comissões no Senado e na Câmara que estão tratando desse tema, para que caminhem numa mesma linha. Hoje existem alguns projetos de lei tramitando no Senado e Câmara, dentre eles os PLs 725/2022, 1878/22, 2308/23 e 3.45223.

Os PLs  725 e 2308 cuidam de definir o termo hidrogênio sustentável como o hidrogênio produzido a partir de fonte eólica, solar, biomassa, biogás, e hidráulica. Essa parte da taxonomia demanda muito cuidado, pois um dos pontos de maior atenção que precisamos ter é de alinhamento com a certificação internacional, para que os  produtos brasileiros manufaturados, ou as commodities produzidas a partir desse hidrogênio, sejam classificadas como verde lá fora. Já o 1878 estabelece a Política Nacional do Hidrogênio Verde, com diretrizes sobre produção, utilização, transporte, armazenamento e as obrigações. E o 3.452, que é o mais recente, estabelece definições conceituais e incentivos governamentais ao uso energético do hidrogênio no Brasil.

Quais as perspectivas de avanço dessa legislação?

O ritmo do Legislativo é muito próprio, e muitas vezes não é o desejado quando se trata de tecnologias com potencial de rápida expansão. Essa é uma característica que vale destacar, porque influencia inclusive o teor do projeto. O ideal é que essa legislação trace diretrizes, sem mergulhar em detalhes que futuramente demandem novas tramitações para serem modificados. Quanto mais gerais essas legislações forem, mais conforto trarão para o investidor.

Nesse grupo também se soma a preocupação que mencionei, de harmonização do trabalho de Câmara e Senado. Caso similar houve no setor elétrico com o PL 414, que é resultado de dois PLs: o PL 414 (com origem no Senado) e o PL 1.917 (com origem na Câmara). Então, divergências entre as duas casas podem dificultar esse alinhamento.

Outro ponto que merece atenção é a clareza quanto à competência, o papel dos diferentes órgãos e instituições, como as agências reguladoras. Por exemplo, a Agência Nacional de Petróleo já regula o uso do hidrogênio por várias indústrias. Dessa forma, o melhor caminho é estudar o que é preciso adaptar dentro da regulação que já temos. O mesmo acontece para a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). A eletrólise é um processo que demanda água, o que podemos adaptar sobre esse uso do que já existe, para não refazer tudo do zero?

Essa tarefa se repete para as certificações – que precisam estar harmonizadas com os critérios globais, para nos posicionarmos como produtores do hidrogênio verde  entendido como de baixo carbono. Assim como com a Receita Federal e os incentivos fiscais concedidos em Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs), e as normas técnicas observadas dentro do Inmetro e na ABNT. Precisaremos de diretrizes que nos deem clareza, mas que idealmente sejam revisitadas do que já existe, aproveitando ao máximo o que já temos, com ajustes.

É um trabalho, como se pode notar, que envolve muitas instâncias, por isso também é preciso incentivar um trabalho conjunto entre elas, para se conseguir um resultado alinhado, que evite riscos de judicialização. Veja, por exemplo, o caso do licenciamento ambiental. Trata-se de tarefa do Ibama, mas não só, pois quando falamos de um parque renovável também envolvemos agências estaduais e, eventualmente, até municipais. O ideal seria criar uma espécie de balcão único, onde se pudesse concentrar os processos de uma determinada área para dar mais celeridade e reduzir o risco do investidor. Afinal, essa simplificação também envolve coordenação.

Atualmente, vemos segmentos da indústria de energia renovável, como a de eólica, apontar preocupação quanto à  falta de sinalização de aumento de demanda, o que estaria ameaçando a cadeia de valor desse setor. Em se tratando de um  insumo tão importante para o hidrogênio verde, como avalia esse quadro?

Neste momento específico, o Brasil vive um ciclo de sobreoferta estrutural pela corrida das outorgas dessas usinas centralizadas, que aproveitaram a última janela regulatória para usufruir do desconto do fio (referente ao prazo estabelecido para que projetos de geração usufruam de desconto de 50% na tarifa de uso dos sistemas de distribuição e transmissão), além da corrida das outorgas de geração distribuída. O que vimos, então, foi uma enxurrada de oferta no mercado, e a demanda não cresceu tanto quanto a gente gostaria.

Agora vivemos o pesadelo perfeito do agente vendedor: pouca demanda, a preço baixo, com condição hidrológica positiva desde o início do ano. Para o produtor de hidrogênio verde, entretanto, é um momento excelente, que pode ser um bom catalisador para investimentos. A questão é que talvez o marco legal dos incentivos não ande no mesmo passo para aproveitar essa sobreoferta.

Quando se trata das perspectivas para o hidrogênio verde e a demanda por energia, há alertas de ambos os lados: de investidores quanto ao peso da tarifa e encargos no preço desse insumo, e de outro lado os que apontam o risco de se estar subsidiando uma geração que se tornará produto de exportação. Como equilibrar essa balança?

Quando falamos de hidrogênio de baixo carbono, vejo dois principais caminhos de desenvolvimento no Brasil. O primeiro é de fato a produção de hidrogênio via eletrólise, para o qual se demandará muita geração de energia renovável. O outro caminho é o da descentralização. Assim como temos a geração distribuída, a partir da geração fotovoltaica por consumidores, teremos o hidrogênio distribuído produzido por indústrias, sobretudo através de rotas biológicas. Contamos com um setor agrícola imenso, que gera muita biomassa, então pode-se produzir o hidrogênio de forma descentralizada para que esses consumidores, principalmente do agro, consumam em forma de amônia, que é insumo para fertilizantes, por exemplo.

Os problemas de interface entre o mercado elétrico e o do hidrogênio talvez estejam concentrados nas necessidades de reforços e melhorias do sistema de transmissão, até porque as plantas de eletrólise precisam trabalhar 24 por 7 para poder serem viáveis economicamente, algo que as renováveis sozinhas não conseguem garantir. Então, é preciso complementar esse suprimento com energia da rede. Toda a expansão de transmissão no Brasil, por regra, é metade paga pelos geradores, e metade paga pelo consumidor de energia elétrica, não importa se livre ou cativo.

Para o produtor de hidrogênio que não contará apenas com autogeração, a questão que fica é a de que o preço da energia elétrica que contrata da rede é dividida em quatro pedaços: a energia em si, o fio, encargos e tributos. Para se ter um projeto competitivo, certamente se buscará reduzir um pouco o peso em cada um desses pedaços.  No caso do tributo, só se houver alguma política que envolva renúncia fiscal por parte do Estado. No caso dos encargos, a melhor forma de evitar é usando estruturas de autoprodução. O importante é buscar alternativas que não onerem os demais consumidores de energia elétrica, ou o contribuinte, no caso de uma renúncia fiscal.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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