Os desafios do transporte urbano coletivo no caminho da ampliação dos investimentos em infraestrutura

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Sem dar um giro significativo na atual forma de se transportar pessoas e mercadorias, em 2050 o mundo poderá chegar a uma frota de 2 bilhões de veículos, mais de meio bilhão acima da estimativa atual, que promoverão um aumento de 60% nas emissões de gases do efeito estufa do setor de transportes em nível global. O cálculo foi apresentado em fevereiro pelo indiano Ani Dasgupta, presidente do World Resources Institute (WRI), no evento internacional Transforming Transportation 2022.

Diante da emergência de se mitigar os impactos das mudanças climáticas, Dasgupta classifica esse cenário como insustentável. Combatê-lo é um exercício que envolve várias frentes de trabalho, a começar pela reconfiguração das cidades para encurtar os deslocamentos da população em sua rotina, seja de trabalho, escola, consumo ou lazer. Logo, passa por sistemas de transporte de qualidade, bem como infraestrutura segura para os chamados modos ativos de mobilidade, como caminhadas e trajetos de bicicleta.

No Brasil, essa demanda se une a outra mais antiga, de combater o atraso na cobertura do transporte público coletivo. O Plano Integrado de Longo Prazo da Infraestrutura (Pilpi 2021-2050), elaborado pelo governo federal,aponta que o hiato de infraestrutura de mobilidade urbana no Brasil soma mais de mil quilômetros entre VLTs, BRTs de média e longa distância, metrôs e trens leves e pesados, totalizando um investimento estimado em R$ 367 bilhões. O qual, vale dizer, pode não ser fechado no horizonte de 30 anos coberto pelo plano. No campo das grandes obras do setor, o Pilpi identifica 20 projetos em estruturação ou implantação, que demandarão investimentos próximos de R$ 100 bilhões. Para financiá-los, a forma mais comum são PPPs, especialmente as concessões patrocinadas, em que parte das contraprestações são pagas pelo poder concedente.

Malha existente e hiato de infraestrutura de mobilidade urbana
(extensão em km)


Fonte: CIP-Infra/Pilpi 2021-2050.

Outro fator ainda pendente dentro da mobilidade urbana é o de equacionar a insuficiência de recursos via tarifa para financiar o sistema de ônibus públicos coletivos, problema que foi acentuado pela pandemia. Levantamento da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) aponta que do início da pandemia a meados de 2021 a queda na demanda por esse transporte resultou em perdas acumuladas de R$ 16,7 bilhões. Quadro que precisa ser reestruturado levando em conta a emergência de novas tecnologias, como a eletrificação, que no Brasil ainda caminha a passos lentos.

Na matéria de capa da Conjuntura Econômica de março, Fernando Pompermayer, subsecretário de Planejamento da Infraestrutura Nacional da Secretaria de Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia, reconheceu a necessidade de se buscar melhorias nesse campo. “Precisamos ao menos implementar o previsto no atual marco legal, que é explorar outras fontes de receita e tributos como o IPTU, a valorização imobiliária, e revertê-lo ao transporte coletivo para ter uma boa infraestrutura”, afirmou. O que também precisa conversar com novas alternativas trazidas pelo transporte rodoviário eletrificado. “Uma das possibilidades é trabalhar com um modelo de leasing, tirando parte do peso do investimento das operadoras. Estamos falando de uma centena de cidades com mais de 300 mil habitantes que poderiam passar pelo processo, num esforço grande”, disse.

Levantamento realizado pela plataforma E-Bus Radar, da UFRJ, mostra que o Brasil é o quarto na América Latina em adoção de ônibus elétricos. O ranking é liderado pelo Chile, que em meados de 2021 contava com 891 ônibus, contra 351 no Brasil. Entre os ainda poucos casos de avanço no planejamento da eletrificação de frota está o de Campinas, no interior de São Paulo. No final de 2021, a cidade preparava o processo licitatório para concessão do transporte coletivo, prevendo uma frota elétrica de 309 ônibus em seis anos, com a redução proporcional dos ônibus movidos a diesel. A concessão inclui elementos como a criação de estação central de recarga, de unidade de geração elétrica solar.

Total de ônibus elétricos na América Latina


Fonte: E-Bus Radar; dados abrangem 11 países da América Larina.

 

Ranking de países, por unidades


Fonte: E-Bus Radar, dados de julho de 2021.

Para Márcio D’Agosto, presidente do Instituto Brasileiro de Transporte Sustentável, é natural que o Brasil seja mais lento nessa nova corrida pela eletrificação. “Ter os fabricantes desses ônibus instalados no país contribui para uma transição menos dinâmica. No caso do Chile, a decisão do governo pela nova tecnologia não teve que passar pelo cálculo de seu impacto na atividade fabril local”, aponta. “Por outro lado, já poderíamos estar exportando essa tecnologia para a região, mas não nos antecipamos a essa mudança, que veio para ficar.” Alguns movimentos passaram a ser observados no ano passado. Em setembro, a Mercedez-Benz lançou o primeiro chassi de ônibus elétrico 100% desenvolvido pela equipe de engenharia brasileira, com vistas a atender o mercado local, América Latina, Europa e Oceania. Em dezembro, foi a vez da Marcopolo expor em feira de ciência e tecnologia seu modelo próprio, ainda em fase de testes,com previsão de chegar ao mercado no final de 2022. “Por enquanto, o que vemos é uma demanda muito maior no setor de caminhões elétricos, pois trata-se de decisões que estão nas mãos da iniciativa privada. Fora do contexto da concessão, basta provar que o veículo elétrico é economicamente mais interessante que o convencional, e logo se pode direcionar o  modelo para onde é mais vantajoso.” Para ilustrar, D’Agosto cita exemplos como o da Seara (JBS), que em maio do ano passado iniciou a adoção de caminhões 100% elétricos em sua operação logística, dentro de um esforço maior de tornar a produção da companhia neutra em emissões de carbono até 2040. E da Ambev, que começou a receber seus caminhões elétricos em junho, de um total de 100 que sairão da  fábrica da Volkswagen em Resende (RJ). Todos, segundo a Ambev, serão alimentados por energia de geração solar da própria empresa, que possui 44 usinas. 

D’Agosto ressalta que falar de mobilidade urbana é tratar de uma tarefa dispersa em decisões que envolvem mais de 5 mil municípios “para os quais dificilmente as soluções serão as mesmas, mesmo entre aqueles com tamanho ou grau semelhante de urbanização”. Para ele, um avanço necessário é o de se pensar diretrizes de mobilidade de forma integrada, por regiões - demanda que o Congresso pretende atender com a tramitação do PL 4.881/2012, que cria um sistema de informações para transportes metropolitanos, uma autoridade específica para essas regiões, além do Fundo Metropolitano de Transporte Público. Por outro lado, o especialista também defende a necessidade de se capacitar as gestões públicas para pensar a mobilidade de forma prospectiva, mas que também transcenda o planejamento da infraestrutura em si. “Infraestrutura é a ponta do processo, e inclui não só transporte. Acabamos de passar por uma pandemia que nos mostrou que, para estar nos lugares, não precisamos necessariamente nos deslocar fisicamente. Ou seja, mobilidade urbana, hoje, também implica suprimento de energia e tecnologia da informação”, diz.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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