“Não se trata de falar de culpas, mas de responsabilidades na construção da igualdade racial”

Jailson de Souza e Silva, geógrafo, fundador do Observatório de Favelas, assessor da presidência do BNDES

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Jailson de Souza e Silva, geógrafo e educador, gosta de tirar de sua própria história exemplos de que combater o racismo estrutural e lutar por ambientes mais inclusivos – incluindo o laboral – é uma tarefa da qual políticas como a de cotas são a ponta do iceberg. Silva, que em novembro conversou com a equipe do FGV IBRE em evento sobre promoção de diversidade, também falou com o Blog sobre a evolução dessa agenda. Confira aqui:

Seu trabalho acadêmico e no Observatório das Favelas, do qual é cocriador, tem relação com a educação e em promover pesquisas sobre a vida nas favelas, sua identidade, bem como de sua população, majoritariamente negra. Considera que hoje as políticas de diversidade refletem maior conhecimento e inclusão dessa perspectiva?

Como homem negro que nasceu e cresceu na favela, vi poucos da minha geração de acadêmicos que chegaram a alcançar a construção de um repertório, de racionalidade científica. Em geral, o que acontece em muitas profissões é que muitos negros acabam se deixando embranquecer, ou seja, deixando de reconhecer a sua origem, falar da sua condição étnico-racial. Acho que uma peculiaridade minha é que eu nunca abri mão desse lugar. Historicamente, se você pegar os principais pensadores da favela no Brasil, a maioria é branca, e era importante quebrar esse monopólio.

A segunda questão fundamental é que sempre procurei entender por que somos o que somos, por que pensamos como pensamos, por que agimos como agimos. Sou educador desde os 22 anos, trabalhei com educação popular, trabalhei na rede pública, na universidade, na sociedade civil, e desenvolver minha formação como sujeito foi importante para reconhecer as dificuldades da gente de periferia, de favelas, de se constituir como sujeito efetivamente coerente. Veja, uma cidade é explicada com base em 3 elementos fundamentais, que são acesso a equipamentos urbanos, acesso a serviços urbanos e acesso a renda - a partir dos quais também passamos a conceituar a população.  Então, é comum considerar que as opiniões daquele sujeito que mora na zona sul do Rio de Janeiro, que é branco, que tem uma renda alta, que trabalha numa multinacional, têm mais valor.

Isso posto, o desafio é afirmar outro lugar de visibilidade fora dessa lógica da paisagem, do corpo branco e da lógica do patrimônio. Por isso que construí o conceito de paradigma da ausência, como uma crítica a essa representação que caracteriza o olhar sobre as favelas, sobre as instituições que nós negros vivemos, como menos importantes. Quando eu fui fazer meu doutorado, por exemplo, quis pesquisar sobre o sucesso escolar de jovens do Complexo da Maré. Tive que trocar de orientador, pois minha primeira orientadora considerava absurda a ideia de sucesso educacional vindo da escola pública (a tese deu origem ao livro Por que Uns e não Outros?, de 2003, que está na terceira edição e sétima reimpressão).

Considera que as empresas que hoje promovem letramentos e políticas de inclusão estão mais próximas dessa perspectiva?

O desafio permanece sendo o de evitar uma política visando ao cumprimento de cotas que não esteja comprometida com uma mudança estrutural. Precisamos ver capital humano negro, colaborar para a formação profissional, apoiar startups de empreendedores negros, pensar em uma economia de fato negra. Para isso, é preciso ampliar a representação desde o Congresso à gestão pública às empresas. Só assim conseguiremos um olhar diferente para a questão da diversidade – que é o oposto de incluir “embranquecendo” essas pessoas, que tendem a ocultar sua trajetória para sobreviver nesses espaços. Iniciativas de letramentos e políticas de diversidade são essenciais, bem como políticas públicas. Mas não há inclusão sem a conquista de dois espaços: o de poder e o econômico.

Como avalia esse debate na sociedade?

Tem uma questão que é muito interessante, que é a da contradição que vemos na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo em que nos últimos anos têm crescido muitos movimentos de defesa dos direitos indígenas, quilombolas, de povos tradicionais, pretos, mulheres, temos, por outro lado, o aumento de uma extrema direita com sua lógica de afirmação do patriarcado, do racismo, do machismo, e todas as violências decorrentes, gerando uma polarização.

No âmbito das empresas, muitas vezes permanece o constrangimento em lidar com essa pauta. Por um lado, temos uma compreensão cada vez maior do ponto de vista do imaginário, do racional, do ponto de vista do negócio, da consciência de que é importante a diversidade em todas as suas dimensões. Por outro, ainda vemos, em muitos casos, a formação de nichos. Temos que nos conscientizar de que a questão racial não é um tema apenas dos pretos. Da mesma forma que o tema do machismo não é apenas das mulheres, e a homofobia não é assunto só dos gays. A uma pessoa branca, cabe pensar: qual é o privilégio que eu tenho por ser branco, e como é que é possível construir uma sociedade mais diversa e mais igual? Não é uma questão de pensar em culpa, mas em responsabilidade na construção da igualdade racial.  Para romper esse constrangimento, é importante que esse tema seja colocado em pauta constantemente, pelo presidente e pelas diretorias. Quando isso é incorporado nas empresas, aí de fato se está construindo outro tipo de cultura.

Veja, por exemplo, o caso do BNDES, onde trabalho hoje. Em 71 anos de história, eu e Thiago Tobias somos os primeiros pretos a serem indicados para nossos cargos atuais, como assessores da Presidência. São cargos de livre provimento. Será que não havia nenhum outro preto capaz de ocupar esses postos antes? Hoje, entre os funcionários do BNDES, 14,6% são negros (12,9% pardos e 1,7% pretos), quando somos 56% da sociedade brasileira. Entre os estagiários, já se conseguiu avançar para uma participação de 40%. No próximo concurso, anunciado para 2024, o BNDES definiu reservar 30% das vagas para candidatos negros (a lei 12.990/14 prevê 10%). Parece muito? Se optasse por fixar um percentual de 20%, por exemplo, o Banco levaria mais de 100 anos para minimamente equalizar essa proporção. 

Há muitos exemplos inspiradores para os quais olhar. No primeiro semestre, promovemos um seminário no qual representantes da África do Sul expuseram uma política promovida no país desde 2003, de empoderamento econômico das pessoas negras, a partir de legislação para aumentar a participação dos negros na economia (chamada BEE, de black economic empowerment, trata-se de um arcabouço com pilares básicos que incluem propriedade, controle e gestão, desenvolvimento de habilidades da população negra, compra preferencial pelo governo e pelas empresas privadas de fornecedores com diversidade e desenvolvimento socioeconômico). Há, por exemplo, iniciativas para que funcionários negros possam ganhar participação acionária nas empresas em que trabalham. O BNDES lançou uma publicação recente com a cobertura desse evento e detalhes sobre essa iniciativa (link aqui)

Hoje se debate uma mudança estrutural do mercado de trabalho, com a previsão de uma redução dos trabalhos de carteira assinada em detrimento dos chamados empreendedores por conta própria. Qual desafio identifica nessa agenda, especialmente para a população negra, cujos trabalhadores em média recebem um terço a menos do que trabalhadores brancos e lideram em informalidade?

Primeiramente, é importante discutir a ideia de trabalho. Carregamos uma concepção, pelo menos desde a Revolução Industrial, da primazia do trabalho em nossas vidas e no âmbito das nossas relações sociais. Mas agora caminhamos para sociedades com cada vez menos trabalho, menos empregos. Enquanto nossa expectativa de vida aumenta, a de ter um sistema previdenciário sustentado pela contribuição dos mais novos com trabalho formal se reduz. Isso nos faz repensar qual lugar que o trabalho terá na sociedade, qual relação queremos constituir em torno dele, protegendo o princípio da dignidade humana em todos os níveis.

Esse debate também passa pela lógica do empreendedorismo, forjada nos anos 1990 como perspectiva de empregabilidade, mas do jeito “se vira aí, pois você não terá mais condições de se empregar da forma tradicional”. Ou seja, transferindo uma questão que é estrutural para cada trabalhador individualmente, o que é perverso.

Assim, de modo mais amplo, a sociedade, o Estado, as empresas têm essa tarefa de discutir para onde caminha a economia e as possibilidades nela existentes. Como é que a gente pode aproveitar o melhor das pessoas? Está faltando trabalho: não é o caso de reduzir a carga e dividi-lo? Se as máquinas se encarregarão cada vez mais de fazer as atividades repetitivas, por exemplo, o Estado tem que investir cada vez mais em educação. Como suprir a demanda por pessoas qualificadas na área de tecnologia da informação se hoje nas escolas públicas muitas vezes sequer há internet? Outro ponto desse debate é a responsabilidade das empresas, que devem compreender que seu sentido vai além do lucro, pois envolve um compromisso com o desenvolvimento da sociedade – o que inclui garantir novas formas de funcionamento do mercado de trabalho.

Com essas etapas incorporadas, pode-se olhar para o empreendedorismo de outra forma, e criar condições para pessoas empreenderem, investirem em uma atividade que seja mais do que lutar pela sobrevivência diante da falta de oportunidades. O que não considero correto, insisto, é simplesmente transferir para o trabalhador individual a responsabilidade pelas mudanças estruturais que o sistema de produção vem sofrendo.

Em que medida a questão da violência no Brasil compromete esse esforço de emancipação?

A segurança é um dos maiores exemplos das sequelas da escravidão. Temos uma classe dominante branca, enriquecida, masculina, heteronormativa, que se reconhece no lugar de privilégio, e que mantém a segurança como instrumento de defesa patrimonial. Não há a percepção de uma segurança pública que cuide de todos. E com isso muitas vidas pretas são perdidas, jovens assassinados sem ter chance de criar novas possibilidades. Acho que quando efetivamente vermos uma política de segurança pública para o conjunto da população é que poderemos falar que estamos em condições de construir novas formas de relação na cidade. Enquanto isso, vamos destruindo essa cidade, porque a violência gera um sentimento de insegurança que afeta a todos, incluindo os brancos. Mesmo que não tenham levado um fuzil na cara, sentem medo do que lhes pode acontecer, ou por já terem sofrido algum tipo de violência. O racismo gera dores que atingem a todos de forma diferenciada.

Veja, em um balanço geral, sou otimista. Acho que temos avanços na consciência política, étnico-racial, em vários processos que vão nos permitir trabalhar um princípio que eu chamo pedagogia da convivência. Nessa construção, a favela tem muito a ensinar para o conjunto da cidade. Trata-se da possibilidade de inventar soluções comuns, usar o espaço público como bem comum. É o que Hannah Arendt (filósofa e teórica política alemã) chama de felicidade pública. É esse conceito que deve nos orientar. É assim que consigo, mesmo diante de um contexto tão conturbado, violento, construir novas possibilidades.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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