“Não é adequado pensar em queda de juro básico em 2023 antes de uma sinalização sobre o arcabouço fiscal”

Livio Ribeiro, pesquisador associado do FGV IBRE, sócio da BRCG

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Houve alguma surpresa na decisão dos comitês de política monetária dos bancos centrais de Estados Unidos e Brasil na semana passada?

Estritamente falando, acho que se teve que alguém que surpreendeu foi mais o Fomc (EUA) que Copom. Em ambos os casos, os resultados para a taxa básica de juros vieram exatamente como esperado pelo mercado: aumento de 0,75 ponto percentual nos EUA, e manutenção da Selic em 13,75% no Brasil. Especificamente em nossas projeções, até esperávamos uma elevação residual de 0,25 pontos no Brasil, ainda que isso não fosse consensual, sendo uma questão mais subjetiva, de sinalização, do que efetiva.

Para os EUA, tínhamos expectativa de 0,75 pp, mas com uma comunicação indicando aumento da taxa terminal – não necessariamente este ano –, e que reduzisse um pouco as expectativas de corte de juros que o mercado americano tinha muito forte já para o início do ano que vem. Já o Copom veio mais ou menos num script relativamente dovish. No mercado, muita gente leu como uma postura hawkish, mais austera, mas discordo. As projeções condicionais foram relativamente benignas. Ainda que estejam próximas das nossas projeções, temos um nível de juros médio bem mais alto do que o que o Copom usa no seu cenário. E se o Comitê considera que é necessário tirar um pouco do orçamento de corte de juros que o mercado tem para o início do ano que vem, acho que a comunicação teria que ser mis dura do que foi. A leitura inicial foi hawkish porque foi uma decisão dividida, dois diretores votando pela elevação residual, mas a construção do argumento não é tão austera, se observar a estrutura geral. Na minha visão, é bem fora do consenso.

Já o FED reviu bastante o cenário da Fed Fund terminal para este ano no Dots, para próximo de 4,5% já no fim deste ano. Cortes, só lá na frente, mais para 2025 que para 2024. Na sessão de perguntas e respostas, entretanto, o presidente do BC americano Jerome Powell mantém a construção bem dura de cenário até o momento em que menciona uma divergência no comitê (Fomc), de alguns membros considerando que se pode ter uma elevação de juros menor neste ano do que a que estão sinalizando. Isso foi corretamente lido pelo mercado como dovish. E ainda que tenha havido uma revisão de cenários terminais de FED Funds, Powell ainda continua com uma postura como se subisse juro pedindo desculpa. Ao fazer, cria-se uma dificuldade crônica de se disciplinar a curva de médio prazo nos EUA. As curvas continuam embutindo uma desaceleração relativamente grande dos juros no decorrer do ano que vem, o que é contraproducente para o FED.

Na nossa visão, o Copom tende a ficar parado em 13,75% até o fim do ano que vem, com vistas à convergência da inflação para a meta em 2024. Se olharmos os números de maneira fria, até podemos imaginar um corte de juros na segunda metade do ano que vem. Mas como não sabemos o arcabouço fiscal no qual a discussão de política monetária estará inserida, mantemos essa projeção de taxa de juros, até segunda ordem. Para os Estados Unidos, revisamos nosso cenário, tínhamos 4,5% de Fed Fund terminal, que chegava no primeiro trimestre do ano que vem, antecipamos para final deste ano. E aí o ajuste é residual, para chegar numa Fed Fund terminal de 5% no primeiro trimestre do ano que vem.

Sua avaliação é de que um aumento de juro básico no Brasil na semana passada teria pouco efeito nas projeções numéricas, mas ajudaria o Banco Central a reforçar a narrativa de uma autoridade monetária vigilante. Não havendo aumento, o BC consegue trabalhar essa imagem por outros canais?

Na visão de muitos analistas do mercado, o BC teve um tom duro ao sinalizar que, se o processo de desinflação que ele imagina não se manifestar, pode subir juros de novo. Ele fala isso explicitamente, ainda que construa um cenário, na minha opinião, relativamente benigno, inclusive com expectativas de inflação em 2024 que seguem abaixo da meta de 3% - agora formam revistas para 2,8%. Por que acho que o BC não foi hawkish como deveria ser? Primeiramente, porque tem-se uma estrutura de projeções que continua sendo relativamente benigna nos preços livres. Isso é usual. Em relação aos nossos modelos, o BC sempre estima inflação de preços livres mais baixa, o que está associado, em algum nível, a enxergar uma potência da política monetária mais intensa do que consideramos razoável, e vem sendo observada no decorrer dos últimos anos.  

Além disso, existe, na minha opinião, um downplay (minimização) muito grande para a discussão do arcabouço fiscal. O BC tinha uma visão mais dura a respeito da incerteza fiscal, e parece que agora tem deixado isso para segundo plano, talvez contaminado pelas surpresas de curto prazo. Ao fazê-lo, ele não reconhece a possibilidade de uma mudança de regime fiscal no início do ano que vem, e isso afeta de forma importante o trabalho. Além disso, tem outras coisas que acho que são complicadas, que o BC não tem tratado com a severidade que seria recomendável. Uma delas é que, a despeito das expectativas de inflação estarem cedendo, elas estão fora das metas em todo o horizonte relevante. As expectativas Focus 2023/24 estão muito fora do lugar. Mesmo as inflações implícitas via títulos do Tesouro Direto anexados à inflação no mercado: todas estão fora da meta no horizonte relevante de 1 a 2 anos.  Então, existe uma dúvida muito grande a respeito da atuação do BC. Dúvida essa que o próprio BC reconhece, não no comunicado, mas em entrevistas anteriores ao Copom da semana passada, quando aponta uma inconsistência na visão do mercado – no que está correto. Ao projetar corte de juros e ao mesmo tempo uma inflação que não converge para a meta, o mercado está dizendo para o BC que não acredita que ele fará seu trabalho. Seja prque se dobrará a pressões, seja porque terá uma avaliação mais dovish do cenário e irá operar um corte de juros antes de observar uma convergência inflacionária efetiva. Nesse ponto, ter aumentado mais 25 pontos-base (bps) seria um sinal muito mais adequado. Insisto: seria uma questão mais subjetiva, tanto que a decisão foi dividida. Em termos numéricos, essa diferença de 25 bps a mais ou a menos é mínima, mas se trata de uma questão do que se quer sinalizar, e como.  Veremos se na Ata o BC muda um pouco o tom, mas tenho pouca esperança. Veja, dizer que se a situação não melhorar vai subir juros perde força, pois ele poderia ter feito esse movimento agora e já não o fez. Então, é razoável que o mercado desconfie que, sendo exposto a uma inflação mais persistente adiante, ou persistentemente fora do lugar, o BC aperta mais a política monetária.

Considera então que o BC não está indicando corretamente o risco inflacionário para 2023?

Se olhar o headline de inflação, está ok, ainda que composição seja diferente da nossa. Eles têm um cálculo de administrados muito elevados; nós trabalhamos com um número mais baixo, o que significa que nossa inflação de preços livres é mais elevada, e isso está associado a uma Selic parada em 13,75%. Se o BC está usando a curva de mercado da véspera do Copom da semana passada, tem-se 250 bps de corte implícitos no ano que vem, começando para valer no segundo trimestre, com 75 bps. O que, para nós, é absolutamente excessivo e prematuro, porque não se espera uma decisão organizada do que será o arcabouço fiscal nesse intervalo de tempo. Agora, na letra fria dos números, trabalhamos com um úmero igual ainda que diferente em sua composição.

O que considero mais complicado é a questão do balanço de riscos. Por exemplo, o BC trouxe dois novos riscos para o cenário, um positivo e outro negativo, que na comunicação do banco soa como equivalentes. De um lado, reconhece evidências de menor ociosidade no mercado de trabalho no curto prazo. Do outro, o BC indica a possibilidade de não se reverterem as desonerações no ano que vem. É estranho colocar essa não-desoneração como fator positivo. Mesmo que no curto prazo a continuidade dessa medida sirva para não reinflacionar a economia, parece-me pouco razoável que isso não tenha efeitos na dinâmica de câmbio, juros de longo prazo e na percepção do arcabouço fiscal. Nesse campo, acho que o BC entrou numa vertente diferente da que estava. Antes ele identificava o risco fiscal; agora acho que está sendo contaminado pelos dados de curto prazo – o que seria uma interpretação benigna do que está ocorrendo –, ou está se dobrando às pressões do governo, o que seria mais preocupante. Portanto, fico apreensivo com a sinalização de balanço de riscos e a estrutura da inflação projetada pelo BC para o ano que vem.

Com os Estados Unidos sinalizando mais juros por mais tempo, estamos precificando corretamente o efeito dessa mensagem na inflação brasileira – por exemplo, via câmbio?

Temos um cenário de diminuição do diferencial de juros já há algum tempo. O ponto é o seguinte: temos uma dúvida que é razoável, para a qual não há resposta, se a variável de diferencial de juros é de dinâmica – ou seja, entra no modelo como índice do dólar americano, ou CDS –  ou é uma variável de estado, ou seja, de correlação entre o câmbio e seus fundamentos diferentes de acordo com os regimes de que tratamos. Provavelmente trata-se das duas coisas, que precisamos separar direito. De qualquer forma, confesso que a cotação do dólar que estamos observando hoje é um pouco menor do que esperava para este momento do tempo. Esperava que, perto da eleição, estivéssemos com taxas mais próximas de R$ 5,40, e estamos mais próximos de R$ 5,20. A direção dos fundamentos me parece clara: commodities para baixo, índice do dólar americano para cima, risco crescente de diferencial de juros para baixo, juro americano para cima. É tudo na mesma direção: de sugerir uma depreciação da moeda daqui a diante. A discussão é: qual o tamanho da depreciação, e de que ponto partimos. Como disse, temos partido de níveis mais baixos do que eu esperava, o que significa dizer que a importância agregada desses vetores combinados está sendo menor sobre a taxa de câmbio sobre se imaginava. Tem uma coisa interessante no nosso modelo, que acabei de rodar, é que ele estava com um componente autoregressivo muito grande, ou seja, os fundamentos não estavam sendo capazes de explicar o comportamento da moeda. Isso reforça o ponto de que, olhando para frente, pelo menos para o fim deste ano e começo do ano que vem, deveríamos ter câmbio depreciando. Mas as magnitudes continuam muito incertas, como sempre é quando se trata de taxa de câmbio.

Você citou que a trajetória de redução da Selic dependerá do arcabouço de regras fiscais, e há um tempo ouvimos dizer que no Brasil o BC não conseguirá baixar a inflação sozinho. Considera que esse será um viés negativo ou positivo para a inflação no próximo ano?

De fato, sem saber qual o arcabouço fiscal, será difícil calibrar a política monetária. Ainda que se meça o arcabouço via resultado primário, e observar que este ano ele foi melhor do que todo mundo supunha, acho muito razoável entendermos que todos que olham esses números com cuidado entendem que o delta de primário foi resultado de questões pontuais que não vão se repetir. E que, olhando para frente, todos os vetores são na direção contrária. Agora, tudo realmente vai depender de como será definido o novo arcabouço fiscal. Aqui, a discussão não é tanto de número, mas de direção, conceito e credibilidade. Veja, se não tivéssemos tido desonerações tributárias este ano, a inflação esperada para o fim do ano não seria 5,8% mas 7,8%. Tem mudança de regra do jogo no meio, tem mudança de preço relativo, e temos que separar o que é o debate de política monetária das condições de contorno, que mudaram. E para o ano que vem esperamos outra mudança de regra de jogo. Ela será para melhor ou pior?  É o que falta responder.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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