“Mais do que nos juros, a expectativa dos consumidores em geral se concentra na renda”

Guilherme Dietze, assessor econômico da FecomércioSP

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

O percentual de famílias com contas em atraso observado na Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) em abril e maio, na casa dos 24,5%, superou os meses iniciais da pandemia, bem como os níveis observados na recessão de 2014-16. Como explicar esse quadro?

No caso da recessão anterior, houve uma reação muito diferente da que temos agora (o pico de inadimplência nesse período foi em agosto/setembro de 2019, de 19,9%). Entramos naquela crise com uma situação mais favorável de emprego, a inflação não estava tão pesada. O aumento do desemprego observado naquele período não retrocedeu ao nível anterior da recessão, então entramos na pandemia numa situação mais crítica nesse ponto.

Já o início da pandemia (o percentual de famílias com contas em atraso alcançou 21,8% em março de 2020) foi marcado por uma forte restrição de crédito. Os bancos, preocupados com o risco de aumento da inadimplência, passaram a renegociar dívidas. Isso, somado à chegada do auxílio emergencial colaborou para as famílias se manterem em dia com seus compromissos. Em junho, a inadimplência chegou a cair para 15,6%.

O nível de famílias com contas em atraso que vemos hoje começou a se configurar no ano passado. Começamos 2021 com a Selic a 2%, estimulou-se o crédito de forma expressiva. O aumento do quadro de inadimplência começou a acontecer a partir de novembro, quando chegou à casa dos 20%. Ainda assim, o comércio ainda se alimentava certo otimismo com Black Friday e Natal - que não se confirmou -, e com a possibilidade de que 2022 fosse melhor, com o fim da pandemia e a possibilidade de as pessoas conseguirem emprego. Mas a conjuntura mudou completamente. Veio a ômicron e a guerra na Ucrânia, que puxou a inflação para cima. E os consumidores que foram tomando crédito na esperança de que a situação ia melhorar viram a conta chegar. No momento de honrar seu compromisso, as famílias se viram numa situação pior, e daí esse alto número de famílias com contas em atraso.

O fato de que a alta de juros tivesse que ser mais ampla e persistente para conter a inflação também foi um elemento fora do radar?

Consumidores em geral não sabem bem o que é taxa de juros. Eles sabem se a parcela de uma compra cabe no bolso ou não. Percebemos na nossa pesquisa que a sensibilidade maior está nos preços, e não nos juros. E a expectativa é sempre muito maior em relação às perspectivas para o emprego e a renda. Assim, a esperança de que uma reabertura definitiva da economia traria empregos melhores e melhores salários, que foi alimentada até os primeiros sinais da ômicron, fez a diferença nesse ímpeto para se endividar. Mas a massa de rendimento do trabalho ainda continua abaixo da observada no pré-pandemia, as pessoas que hoje entram no mercado de trabalho chegam com salário mais baixos, e isso é crucial para o equilíbrio das contas.

Percentual de familias endividadas


Fonte: Peic/FecomércioSP.

 

Percentual de famílias com dívidas em atraso


Fonte: Peic/FecomércioSP.

A antecipação do 13º salário de aposentados e a retirada do FGTS autorizada pelo governo pode aliviar esse quadro?

São medidas positivas, mas neste momento não são suficientes para chegar nas contas em atraso. Se até agora não mudaram o quadro da inadimplência (no caso do  13º a previsão era de liberação de R$ 56 bilhões entre abril e maio, e o calendário de saques do FGTS vai de abril a junho, com perspectiva de injeção de R$ 30 bilhões na economia), é sinal de que as famílias estão deixando as contas de lado para garantir as compras de supermercado.

No passado, foi possível identificar o efeito de injeções pontuais de liquidez. Agora mesmo mencionei o auxílio emergencial no começo da pandemia. Neste momento, entretanto, vemos que a preocupação está em garantir o consumo diário. É uma situação socialmente crítica, muito diferente da que vimos anteriormente.

Vivemos um momento de muita instabilidade, incerteza, e não vemos sinais de uma melhora significativa no curto prazo. Não está claro ainda quando a inflação vai cair, se teremos recessão global, levando preços de commodities para baixo, aliviando preços. O dia a dia ainda é outro, o que o consumidor vê é a persistência da inflação em seu dia a dia. E, nesse cenário, é difícil projetar uma melhora nos níveis de endividamento e inadimplência.

A tendência é de que a oferta de crédito ao consumidor se reduza?

Sim, acho que haverá restrição maior. Mesmo com o aumento de fontes, com as fintechs, o crédito ainda é muito dependente dos grandes bancos, ainda é uma estrutura muito concentrada. A taxa Selic de 13,25% não chega nem perto das taxas de juros cobradas ao consumidor, acima de 40%. É um problema estrutural grande, o Banco Central está ajudando a mitigá-lo com uma agenda positiva, mas não é fácil de ser resolvido. E o consumidor continuará buscando alternativas. Vemos que o endividamento no cartão de crédito já superou os 90% em maio; o crescimento dos carnês como alternativa (19,1% do total), e algum movimento no consignado (6,6% do total), que oferece condições melhores, taxas mais vantajosas.Se o consumidor considerar que a parcela cabe no seu bolso, continua a tomar crédito.

Ainda há pouco avanço na educação financeira do consumidor?

Estamos longe de chegar a um nível ideal. Isso é fácil de se observar nas ruas, nos mercados, nas entrevistas que dou respondendo a perguntas da audiência. “Se preciso, faço agora. Como pagar, amanhã eu resolvo” - essa ainda é a vida de muitos brasileiros. Claro que essa característica pode mudar, mas isso leva uma geração, e sabemos disso.

A preocupação, agora, é que esse aumento de juros que a população pouco percebe está trazendo o efeito perverso de se pagar cada vez mais para o sistema financeiro por uma conta em atraso e sobrar cada vez menos para o consumo diário. Estar inadimplente hoje é muito pior do que em anos anteriores. Isso só tende a agravar um quadro já preocupante. Um mercado de crédito saudável depende de emprego e inflação controlada, para que o aumento de endividamento não gere inadimplência alta.

Tipo de dívida (maio/22)


Fonte: Peic/FecomércioSP.

Veja também: Em junho, o Índice de Confiança do Consumidor do FGV IBRE indica que perspectivas do consumidor de baixa renda  para os próximos meses se mantêm voláteis.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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