Gás brasileiro, o dilema de Tostines e o novo governo

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

O gás natural é reconhecido no mundo como um atalho no caminho da transição a uma economia de baixo carbono, por ser a fonte de energia fóssil menos poluente. Desde o conflito na Ucrânia, iniciado há pouco mais de um ano, tornou-se um insumo ainda mais estratégico, com países como a Alemanha ampliando a uma velocidade impensada sua capacidade de regaseificação de GNL para mitigar o corte de fornecimento de gás russo.

No Brasil, o aumento do uso desse insumo ainda passa por superar um dilema que barra sua viabilidade econômica. Devido ao fato de que grande parte das reservas de gás está associada às de petróleo, obrigando uma produção casada com à do óleo, e o pré-sal demandar uma infraestrutura de transporte mais cara, hoje metade do gás produzido no país é reinjetado. Como destacou o presidente do Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP) Roberto Ardenghy em entrevista a Conjuntura Econômica no final de 2022 (leia aqui), essa reinjeção não pode ser considerada um completo desperdício: parte dela aumenta a pressão nos reservatórios e amplia a capacidade de produção de petróleo. Também há uma fração relacionada ao programa de captura e reinjeção de carbono, do qual a Petrobras hoje é líder, com 18% do total reinjetado no mundo.

O desafio de se buscar um equilíbrio entre reinjeção e consumo, entretanto, é uma tarefa que ainda está em processo, e vive hoje um ponto de inflexão, como destacaram representantes do setor em evento de lançamento do Caderno FGV Energia de Gás Natural, promovido na semana passada na sede da FGV no Rio de Janeiro.

Balanço de gás natural no Brasil
(média - em milhões de m3/dia)


Fonte: Balanço de Gás Natural MME.

Para ilustrar essa necessidade, Magda Chambriard, coordenadora de Pesquisa de Óleo e Gás da FGV Energia, lembrou que a produção atual de gás – média de 143 milhões de metros cúbicos diários em janeiro deste ano – seria suficiente para atender à atual demanda do país. “Mas, por não chegar completamente ao consumidor final por falta de infraestrutura de transporte, essa situação continua motivando importações crescentes em detrimento do uso do gás nacional”, afirmou. Diante de um cenário energético mundial instável, amplia-se o risco da atual equação. Por exemplo, se a crise hídrica de 2021 tivesse acontecido junto da guerra da Ucrânia, que inflacionou os preços do gás devido ao corte de suprimento da Rússia à Europa, calcula-se que a conta da importação brasileira seria ao menos US$ 10 bilhões mais salgada.

Para não limitar a produção de gás brasileira a essa dinâmica e ampliar seu uso como fonte de energia, o setor tem buscado alternativas para fugir do impasse entre a necessidade de contratos firmes para viabilizar o investimento em transporte e distribuição, e a necessidade de sinalizar preços competitivos sem os quais o consumidor não investirá em contratos de fornecimento de longo prazo. Há passos positivos nessa direção, como se ressaltou no evento. Entre eles, a diversificação de atores promovida com a Nova Lei do Gás, que completa 2 anos em 2023. “Em 2021, registramos 35 contratos de transporte, envolvendo 13 carregadores, e apenas em 2 houve movimentação efetiva. Em 2022, foram 137 contatos, com 20 carregadores, todos com efetiva movimentação. E este ano já temos 113 contratos apresentados. O mercado dá sinais de vitalidade, de dinâmica nova”, ilustrou Rodolfo Saboia, diretor geral da Agência Nacional de Petróleo (ANP). “A participação de produtores que não a Petrobras passou de 1,4% em 2021 para 18,5% no ano passado, com destaque para a região Nordeste, onde os independentes respondem por 75% do fornecimento”, completou.

Demanda em 2022 
(média - em milhões de m3/dia)


Fonte: Balanç de Gás Natural - MME.

Gustavo Labanca, presidente da TAG, também destacou esse caminho de diversificação. “Estamos expandindo os pontos de recebimento de gás – temos um em construção em Sergipe – e pontos de entrega – um em construção e outros cinco sendo expandidos. Temos novos fornecedores, o que gera mais segurança de abastecimento, mais flexibilidade na contratação e liquidez no sistema, o que induz redução de preço da molécula”, afirmou. “Maior número de usuários significa maior rateio no investimento de infraestrutura de transporte e distribuição. Um esforço coordenado com produtores e distribuidores propiciará maior desenvolvimento do mercado, e um futuro ganho de escala para poder fazer a tão sonhada interiorização do gás no Brasil”, declarou.

Paulo Pedrosa, presidente da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), reforçou o coro pela construção de um caminho de unidade entre os diferentes elos da cadeia para a concretização desse mercado. “Para uma parcela do gás do pré-sal, faz sentido econômico encontrar um pagador que banque um preço suficiente para manter a operação e garantir a rentabilidade. Em torno disso conseguiremos acionar gatilhos de competitividade do metanol, projetos de fabricação de fertilizantes, de beneficiamento de minério – que hoje é beneficiado no Catar para depois chegar à China -, e atrair trazer cadeias produtivas par atender inclusive a própria demanda do país”, disse. “E, com isso, reafirmar o compromisso presente na Lei do Gás, de atrair garantir investimentos privados na produção, no transporte e no consumo, usando esse gás em favor da reindustrialização e descarbonização da indústria brasileira, combinando seu uso com o de fontes renováveis para tornar o país plataforma de exportação de produtos de baixa emissão de carbono.” Pedrosa afirmou que o setor está em contato com interlocutores do governo para levar essa visão de convergência em busca de “decisões racionais, instrumentos de apoio como no BNDES, e coordenação com os estados para criar legislações compatíveis com essa visão para o mercado de gás”.

Reservas provadas e produção de gás natural


Fonte: BP Statistical Review of World Energy (2022).


Fonte: ANP, compilado por FGV Energia.

“O maestro tem que ser o governo, com políticas claras e direcionadas para se identificar qual o papel podemos esperar para o gás”, reforçou Katia Repsold, presidente da Naturgy no Brasil. Com o cuidado, como ressaltou Saboia, de não se errar na mão em uma estrutura de estímulos, para não resultar em desincentivos ao investimento. “Temos que pensar em políticas que acabem com essa situação do ovo ou da galinha. Se a molécula tem que chegar ao consumidor e isso é bom para o país, é preciso pensar em uma estrutura de financiamento, tributária que possa justificar o investimento. Do ponto de vista do produtor, não há justificativa para a reinjeção que não seja econômica”, afirmou Ardenghy.

Do ponto de vista da Petrobras, Jean Paul Prates, presidente da estatal, afirmou no evento a intenção de investir no gás brasileiro, “disputando cada milhão de metro cúbico que puder vender”. Prates declarou que a posição da companhia é a de respeitar contratos, mas que não abrirá mão de operar preços competitivos. “A Petrobras tem condições para isso”, afirmou. Ele também destacou o aumento de oferta previsto para os próximos anos, de ao menos 52 milhões de metros cúbicos ao dia, e a intenção de colaborar com novos investimentos em infraestrutura de transportes. “Não teremos problema em compor essa orquestra”, concluiu.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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