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O dragão da inflação

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Entre as décadas de 1980 e 1990, o dragão da inflação reapareceu. Depois de sair de uma taxa anual de 29% em 1975, iniciou uma espiral sem controle. Em 1990, a inflação no Brasil chegou a assustadores 1.1475%, pelo IGP-DI, da FGV, quando era o indicador que media a inflação oficial do país. Chegamos a ter, em um só mês, uma alta de preços de 80%.

Naquela época, dinheiro na mão era vendaval, como diz a música de Paulinho da Viola, já que sumia num piscar de olhos. Os com cabelos algodoados devem se lembrar dos funcionários dos supermercados, maquininhas em punho, remarcando os preços. E não era só uma vez por dia. Se você fosse fazer uma compra de manhã e retornasse à tarde, os preços já tinham aumentado. E não era pouca coisa, não.  O dinheiro não valia quase nada.

Depois de vários planos fracassados, mas que podem ter servido de lição, o Plano Real domou o dragão que ficou adormecido por um longo período. Em 1995, a inflação brasileira havia despencado para 15%. A revista Conjuntura Econômica, quando o descontrole inflacionário se espraiava por toda a economia, trazia, na década de 80, capas com a proeminente figura de um dragão, soltando fogo pelas ventas, nos assombrando.

A disparada da inflação
(IGP-DI - % ao ano)


Fonte: FGV IBRE.

Embora estejamos muito longe daqueles tempos sombrios, vira e mexe a inflação ganha destaque nos meios de comunicação. Ela já está em dois dígitos, bem longe do centro da meta fixada pelo Banco Central, e com fortes pressões pela alta dos preços dos combustíveis, dos alimentos, das commodities metálicas, que pioraram com a guerra na Ucrânia que se arrasta por mais de um mês. Hoje, o IPCA, divulgado pelo IBGE, subiu 1,62%, a maior taxa desde março de 1994. Nos últimos doze meses, encerrado no mês passado, a inflação acumula alta de 11,30%, a maior em 18 anos.

Estamos com um crescimento medíocre nos últimos anos, com exceção de espasmos de crescimentos mais robustos, mas pontuais, em curtos períodos, mesmo com o que os economistas consideram o tripé fundamental para o crescimento: responsabilidade fiscal, metas de inflação e câmbio flutuante. Mas não basta só isso. Há uma série de fatores que acabam atrapalhando o funcionando desse tripé. Um deles é a produtividade. Há décadas a produtividade no Brasil não cresce, com um desempenho abaixo de qualquer avaliação razoável. E sem que a produtividade aumente não há santo que ajude a sair desse atoleiro que estamos enraizados. No livro Anatomia da Produtividade, editado pelo FGV IBRE, e no Observatório da Produtividade Regis Bonelli, esse desolador quadro da produtividade é mostrado com enorme clareza. O professor Antonio Carlos Rocca, em entrevista à revista Conjuntura Econômica deste mês, como muitos economistas, bate nessa tecla: sem que nossa produtividade aumente, o país não vai para lugar algum. É só olhar para as taxas de desemprego e aumento da informalidade, gerando empregos de má qualidade e pior remuneração.

Voltando aos tempos atuais. Estamos com uma grande fragilidade fiscal, que tem aumentado nesse ano eleitoral, que muitos sinalizam como falta de responsabilidade fiscal. A inflação já superou os 10% em doze meses, se distanciando do centro da meta. E o câmbio, embora tenha recuado nos últimos dias, ainda está em patamares elevados. Ou seja: o famoso tripé estaria desmoronando? Como dizia Mário Henrique Simonsen: “a inflação aleija, mas o câmbio mata”.

Mas retornando ao dragão. Levantamento feito pelos economistas Aloisio Campelo e André Braz, pesquisadores do FGV IBRE, mostra que inflação pesou bem mais para as famílias de baixa renda nos dois anos de pandemia.

Segundo Campelo e Braz, “considerando-se a inflação acumulada nos dois anos desde o início da pandemia, entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2022, as classes de renda mais baixa continuam sofrendo mais. Para um IPC-FGV acumulado de 15,2%, a inflação das famílias de renda mais baixa foi de 16,8%, e a das de renda mais alta de 13,6%”.  

Para os mais pobres, com até 1,5 salário-mínimo, os preços dos alimentos subiram 16,7%, enquanto os mais ricos, com rendimentos acima de 11,5 salários-mínimos, registraram alta de 10,3%.  Já na habitação a alta foi de 6,60% para os mais pobres e de 4,68% para os mais ricos.

O Boletim Desigualdades das Metrópoles, levantamento trimestral feito pelo Observatório das Metrópoles e a Pontifícia Universidade de do Rio Grande do Sul, divulgado ontem, mostra que a queda do rendimento médio do trabalho foi recorde no último trimestre de 2021 nas regiões metropolitanas, sendo o menor valor observado desde o início do levantamento em 2012. Pelo estudo, a renda média dos brasileiros no período foi de R$ 1.378, ante os R$ 1.422 do trimestre anterior.

Embora o levantamento mostre que houve uma relativa recuperação na renda dos mais pobres, o que pode ser explicado pela retomada da informalidade, principal fonte de renda das camadas mais pobres, os rendimentos dessa faixa ainda estão 8,9% abaixo pré-pandemia. Também houve uma pequena perda de renda das classes mais abastadas da ordem de 7%.

Com alto desemprego e inflação corroendo os poucos recursos de quem ganha pouco, as cidades brasileiras estão cheias de gente morando nas ruas. Os indicadores de pobreza e insegurança alimentar tem aumentado.

Variação da média móvel (4º trimestre) de rendimentos* entre o 1º trimestre de 2020 e o 1º trimestre de 2021 por estratos de renda
Conjunto das regiões metropolitanas do Brasil (em %)


Fonte: Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios Contínua (IBGE). *Calculado a partir da renda domiciliar per capita bruta de todos os trabalhos (valores constantes, 1º trimestre de 2021/IPCA).

Voltando ao trabalho de Campelo e Braz, eles mostram que em 2021 a inflação meio que se democratizou, no mau sentido, se espraiando por todas as faixas de renda.

“Em 2021, a inflação acelerou para todos os grupos de renda e foi, de forma não virtuosa, mais ‘democrática’, com o maior espalhamento dos reajustes de preços. Entre os mais pobres, os grupos Alimentação e Habitação continuaram sendo os vilões, mas os Transportes surgiram como um novo fator de pressão para a inflação de 8,88% no ano. Entre os mais ricos, a alta de 18,5% nos preços de Transportes respondeu por nada menos que 43% da inflação de 8,72% no ano. Entre os itens que mais influenciaram neste resultado estão as altas de preços de 49,12% da gasolina, 10,66% do automóvel novo e de 42,67% nas passagens aéreas”. O estudo completo pode ser acessado no Portal da Inflação do FGV IBRE. É bom lembrar que o IPC tem se mantido abaixo do IPCA, do IBGE, que mede a inflação do país. Em 2021, por exemplo, o IPC fechou com alta de 9,34%, enquanto o IPCA foi de 10,06%.

Pesando no bolso mais intensamente, a confiança dos consumidores com renda mais baixa diminuiu com a alta da inflação, voltando a cair em março depois da recuperação observada em fevereiro, mantendo-se bem abaixo da confiança das pessoas com maior poder aquisitivo.

Inflação contribui para reduzir confiança das famílias de baixa renda
Índices com ajuste sazonal, base: dezembro de 2019 = 100


Fonte: FGV IBRE.

Com a inflação que já vinha sendo alimentada pela pandemia em função da quebra das cadeias de suprimento e volta de uma demanda reprimida com o arrefecimento de casos e mortes pela Covid-19, os preços voltaram a ser turbinados pela guerra na Ucrânia. Como mostramos na capa da edição deste mês da Conjuntura Econômica, “o conflito liderado por Putin reforça a pressão sobre duas classes de preços, que já vinham sendo afetados pela pandemia: a de alimentos, que em 2021 representaram quase a metade da inflação de 10,06% no Brasil, e a dos derivados de petróleo, cujos preços no ano passado fizeram os preços dos combustíveis saltar 49,02%, segundo o IPCA do IBGE”.

Como a Rússia e a Ucrânia representam algo ao redor de 15% da oferta global de milho e de 25% da de trigo, utilizados na fabricação de pães, massas, biscoitos, base da alimentação em muitos países, o desequilíbrio no fornecimento desses produtos, além de pressionar a inflação, pode ter um efeito bem mais severo: piorar a segurança alimentar em países de renda mais baixa, que já padecem de fome. No Boletim Macro FGV IBRE de março, André Braz, do FGV IBRE, sinalizou que o impacto dessas commodities poderia levar a um aumento de 8,5% nos gêneros alimentícios este ano, ante uma projeção de alta de 6,5% antes da guerra.

Embora as pressões sejam intensas, não há consenso entre os economistas se a inflação se manterá firme e forte ou perderá força com o fim do conflito, como é detalhado na matéria de capa da edição deste mês de Conjuntura Econômica.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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