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A guerra e as pressões pelo mundo

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Ainda saindo de uma pandemia que deixou milhões de mortos e desestruturou a economia mundial, a invasão da Rússia a Ucrânia, que já dura mais de duas semanas, já está fazendo novos estragos. Além da crise humanitária, com mortes de civis e mais de 2,2 milhões de refugiados até agora – estima-se que esse número pode chegar a 4 milhões nos próximos dias –, e da tensão de que o conflito possa evoluir para uma guerra entre o Ocidente e o país de Vladmir Putin, a economia mundial será impactada, uma vez mais.

Ainda é cedo para saber os efeitos dessa guerra sobre a atividade econômica, já que não há informações de alta frequência, como dizem os economistas, que permitam um monitoramento mais próximo da economia mundial. Mas já começam a surgir algumas estimativas que devem ser vistas com certa cautela, sinalizando perdas do PIB mundial – entre 0,3% nos Estados Unidos e 0,8% na Europa – pelos efeitos da guerra, se ela não se espraiar, que é um temor que assombra todo o mundo.

Mas se na atividade econômica a mensuração ainda é bastante incipiente, a inflação, que já vinha subindo no mundo depois que a pandemia começou a arrefecer e a demanda que estava reprimida voltou a todo vapor, vai continuar sua trajetória ascendente. O preço do barril do petróleo Brent já havia superado a casa dos 120 dólares. Durante a pandemia, o barril do petróleo havia despencado para 20 dólares. E as commodities estão com os preços nas alturas: combustíveis, metais, fertilizantes, alimentos, entre outros. No final da noite de quarta-feira, dia 9, o anúncio de que os Emirados Árabes e o Iraque podem aumentar a produção de petróleo levou a uma queda no preço do barril da ordem de 13%.

A escalada dos preços dos combustíveis tem levado o governo brasileiro a voltar a insistir em tomar medidas que possam frear os preços. Uma delas seria a concessão de subsídios, num momento em que a fragilidade fiscal continua elevada, apesar da melhora turbinada pela inflação. Outra ideia que começou a germinar seria o congelamento dos preços, o que é considerado pelos analistas uma ingerência do governo na Petrobras. Os efeitos disso sobre o mercado e os investidores parece ter levado o governo a deixar de lado a ideia. Ontem, 10, a estatal anunciou novo aumento nos preços dos combustíveis nas refinarias: a gasolina vai subir 18,7%, o diesel 24,9% e o gás de cozinha, 16%. As altas entram em vigor hoje.

Como disse o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ao anunciar a suspensão da compra de petróleo e gás russo – 8% do petróleo consumido no país vem da Rússia –, os aliados europeus não podem seguir o mesmo caminho pela sua dependência do país de Putin. O embargo imposto pelo Ocidente à Rússia – embora difícil, estuda-se interromper a compra de petróleo russo, o que puxaria ainda mais o preço para cima –, tem levado o governo Putin a fazer ameaças de corte no fornecimento de gás à Europa. O que seria desastroso, ainda mais nessa época de rigoroso inverno. A União Europeia importa 40% do gás russo. A Rússia é a segunda maior exportadora de petróleo do mundo, atrás da Arábia Saudita, e a maior exportadora de gás natural.

Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, disse no último dia 9, quarta-feira, que a União Europeia já tem gás natural suficiente para se manter até o final do inverno, sem ter que fazer novas importações da Rússia. Leitura que deve ser feita com cautela, já que há muita informação de difícil comprovação de lado a lado.

Mas a guerra pode trazer uma mudança, com o mundo procurando investir de forma mais consistente em energias limpas que reduzam a dependência de energias fósseis. É a chamada transição energética, tão debatida, que foi um dos focos da Conferência sobre Clima em Glasgow em 2021. Demora tempo, mas se não começar, estaremos sempre com a espada na garganta. Para a Rússia, onde cerca de 40% das divisas vêm das exportações de petróleo e gás, seria mais um estrangulamento da economia, que já sente o baque das sanções impostas pelo Ocidente.

Até a última quinta-feira, muitas empresas anunciaram corte de investimentos ou saída da Rússia, além das sanções impostas no sistema financeiro internacional aos bancos russos e confisco de bens de oligarcas ligados ao governo Putin. O que tem causado sérios transtornos para a economia e a população russa. Essa semana, o governo restringiu em 10 mil dólares saques em moeda estrangeira pelos russos.

Abaixo as empresas que suspenderam operações ou cortaram investimentos na Rússia quando escrevia esse texto. A relação tende a aumentar.

• Automóveis e componentes
Ferrari, Volvo, Volvo Caminhões, Renault, Harley Davidson, Scania, General Motors, BMW, Jaguar Land Rover, Toyota, Daimler Truck, Nokian Tyres, Ford, Volkswagen

• Energia e petróleo
Shell, BP, Equinor, TotalEnergies, Orsted, ExxonMobil. 

• Transportes
Alstom, Maersk, MSC, Ocean Network Express, Hapag Lloyd, AerpCap Holdings, BOC Aviation, Ups, DHL, FedEx, Boeing, Bombardier, Embraer

• Finanças
S&P, HSBC, Visa, Mastercard, American Express, Paypal, McKinsey, KPMG, PwC, EY, Deloite

• Tecnologia
Apple, Ericson, Nokia, Meta, Google, Twitter, Facebook, Microsoft, Airbnb, Amazon, Spotify, Netflix, Disney, Warner, Sony Pictures, Sony Interactive Entertainment, Samsung, Tik Tok, Intel, Instagran, Discovery

• Vestuário
Adidas, Nike, Puma, Levi Strauss, Hermés, Chanel, Louis Vuitton, Gucci, Cartier, Prada, Zara, H&M

• Outros
Coca-Cola, Accenture, MacDonald’s, Nestlé, Pepsi, Unilever, Starbucks, L’Oreal, Heineken, Condé Nast (Editora da revista Vogue), Weg, Sandvik, Guia Michelin, Uefa

As sanções à Rússia também afetaram um dos ícones do país: a Avtovaz, fundada em 1966, paralisou a produção dos carros Lada na última quarta-feira, dia 9. Também foram impostas duras sanções aos bancos russos.

Mas voltando à questão da transição energética, há quem pense o contrário. Para o economista Dieter Helm, professor de política energética na Universidade de Oxford, segundo matéria publicada na Folha de S. Paulo, o abandono de combustíveis fósseis jamais pareceu tão complicado. “A transição energética já estava enfrentando problemas – 80% da energia do planeta continua vindo de combustíveis fósseis(...) No curto prazo, os Estados Unidos elevarão sua produção de petróleo e gás natural, e o Mar do Norte pode receber novos investimentos. Além disso, o consumo de carvão pela União Europeia também pode crescer”, diz, como forma de reduzir a dependência do petróleo e gás russo.

O ministro alemão da Economia, Robert Habeck, foi na mesma linha ao afirmar, na semana passada, que a Europa poderá ser forçada a queimar mais carvão diante da agressão russa e da escalada dos preços do gás natural e do petróleo. A Rússia também é importante produtora de carvão – a Europa importa 30% de carvão térmico de lá –, o que tem levado a uma busca de fontes alternativas, o que já levou o preço da tonelada do carvão saltar de 83 dólares um ano atrás para algo ao redor de 400 dólares atualmente.

Não é só a energia que está em jogo nessa guerra. A Rússia e a Ucrânia são responsáveis, ou eram, por mais de um quarto das exportações mundiais de trigo, cujo preço subiu mais de 45% desde que a invasão à Ucrânia começou. Por sinal, a Ucrânia é o quarto maior exportador mundial de milho e o maior produtor mundial de girassol.

A Rússia, Belarus e a Ucrânia também estão entre os maiores produtores de nutrientes para as lavouras, como potássio e fosfato. Vale lembrar que o Brasil, segundo dados da Embrapa, é o quarto maior consumidor mundial de fertilizantes, só perdendo para a China, Estados Unidos e Índia. A soja é a cultura que mais consome fertilizantes no país, e um dos nossos carros-chefes da pauta de exportações. Se somarmos o milho, o algodão e a cana-de-açúcar, essas quatro culturas respondem por 90% do consumo de fertilizantes no país.

Com a ameaça de cortes nas exportações de nutrientes para o campo, o governo brasileiro está desenterrando um projeto de mineração em terras indígenas, uma das plataformas de campanha do presidente Jair Bolsonaro. O projeto tem que passar pela Câmara, onde já foi aprovado pedido de urgência. Uma comissão será criada para estudar o projeto em 30 dias. Se aprovado, segue para o Senado.

Mesmo que haja a aprovação, o que parece difícil como avaliam alguns especialistas, especialmente no Senado, o tempo de maturação de um projeto para retirada de fosfato, um dos principais nutrientes para o solo, por exemplo, é demorado, não atendendo as necessidades imediatas às portas do começo do plantio da safra em meados deste ano. É bom lembrar que há potássio em outros lugares do país, em locais de mais fácil acesso e mais perto dos centros consumidores.

No campo dos metais, a dependência dos russos também é preocupante, o que tem levado a uma disparada nos preços dessas commodities. O grupo russo Rusal é o segundo maior produtor mundial de alumínio. A Nornickel Norilsky está entre os três maiores produtores mundiais de níquel, enquanto a Rússia controla 50% do mercado mundial de paládio, metal muito usado na indústria automobilística na fabricação de catalisadores. Outro metal, o titânio, usado na indústria aeronáutica, tem na russa VSMPO-Avisma a principal fornecedora mundial.

Tudo isso deve pressionar fortemente a inflação no mundo, que já vinha em processo de escalada. E pesar de forma mais cruel no bolso das populações de menor poder aquisitivo. 

Para o Brasil, que conseguiu no ano passado recuperar as perdas de 2020, com o PIB crescendo 4,6%, o quadro que já não era animador para este ano, com previsão de um crescimento do PIB ao redor de 0,6% como projetava o Boletim Macro FGV IBRE de fevereiro, pode ficar ainda pior. Seguramente, a pressão maior será sobre a inflação de alimentos e de combustíveis, contaminando toda a cadeia produtiva, com os aumentos de custos que podem ser repassados ao consumidor. Como estamos com alta taxa de desemprego, aumento da informalidade e queda de renda, os repasses podem ser uma faca de dois gumes, sem consumidores dispostos a pagar os novos preços.

A encrenca é grande, ainda mais nesse ano eleitoral onde há aumentos de gastos num cenário de grande fragilidade fiscal. Como os desdobramentos da guerra são imprevisíveis, muita coisa pode mudar de uma hora para outra. Mas, sem dúvida, muitos estragos já foram feitos.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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