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A crise energética, a inflação mundial e o papel da Rússia

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

A crise de energia que afeta o planeta, com os preços dos combustíveis disparando,  gerando aumento de custos e pressão sobre a inflação, trazem à tona o tradicional debate sobre o perfil da Rússia, uma potência europeia ou asiática, evidenciando cada vez mais a sua particularidade política de Estado fortemente centralizado. Acumulando 20% das reservas provadas de gás natural de todo o mundo, a Rússia passou por profundas transformações desde o esfacelamento da União Soviética, mudanças essas que, no entanto, não significaram abdicar o controle dos recursos, pois a visão política que se consolidaria com a ascensão ao poder de Vladimir Putin, em 2000, foi o controle do Estado sobre os recursos estratégicos e o predomínio de companhias russas na produção nacional.

Dentro desse raciocínio, as reservas de óleo e gás da Rússia levariam o país a ter forte influência no mercado internacional, através de duas estatais, a Rosneft e a Gazprom, o que tem contribuído para alimentar a crise energética, com forte pressão sobre a inflação.

No Brasil, a inflação de outubro, medida pelo IBGE, foi a maior desde 2002, chegando a 10,67% nos últimos doze meses, puxada pelos combustíveis que aumentaram 3,21% no mês passado. Só a gasolina teve a sexta elevação consecutiva, já acumulando um aumento de 38,29% só neste ano e 42,72% em doze meses encerrados em outubro. E nada indica que vai parar por aí.

Nos Estados Unidos, os preços ao consumidor foram os maiores dos últimos 30 anos no mês passado: subiram 0,9%, acumulando uma alta de 6,2% nos últimos 12 meses, com forte peso dos combustíveis e dos alimentos, sinalizando que a inflação por lá pode permanecer elevada por um período mais longo.

“A ameaça de uma inflação recorde para o povo americano não é transitória e, pelo contrário, está piorando”, disse o senador democrata Joe Manchim, citado em matéria da Folha de S. Paulo.

Na zona do Euro, a inflação de setembro foi a mais alta dos últimos 13 anos, pressionada pelo aumento dos combustíveis que já subiram mais de 17% este ano. E na China, a inflação ao produtor no mês passado foi a maior em 26 anos, chegando a 13,7% em relação ao ano passado, depois de ter tido uma alta de 10,7% em setembro em relação ao mesmo período de 2020. Ou seja: mundo afora a inflação está em uma escalada ascendente.

Preços do Gás Natural
(US$/MMbtu)


Fonte: Ministério das Minas e Energia.

Mas voltando ao papel da Rússia como fornecedora de petróleo e gás, em artigo publicado na edição de novembro da revista Conjuntura Econômica, Fernanda Delgado e João Victor Marques Cardoso, pesquisadores da FGV Energia, mostram que “atualmente, apenas cinco companhias são responsáveis por 80% da produção nacional de petróleo russo, enquanto o setor de gás natural é dominado pela Gazprom, responsável por 71% das reservas, por 2/3 da produção nacional e pela totalidade dos gasodutos. O tamanho da dependência do Estado na cadeia gerada pelos recursos naturais é de 60% do PIB e 66% das exportações totais, sendo que as atividades de petróleo e gás atingiram 36% da receita do orçamento federal em 2016”.

No mercado internacional de energia, destaca-se a interdependência entre Rússia e Europa. Em 2016, quase 60% das exportações de petróleo bruto da Rússia destinaram-se somente à OCDE Europa, alcançando 70% à totalidade dos países europeus, particularmente Holanda, Alemanha, Polônia e Bielorrússia. Pelo lado da OCDE Europa, mais de um terço das importações de petróleo bruto, em 2016, veio da Rússia. No mesmo ano, mais de 75% das exportações de gás natural russo foram para a OCDE Europa.

Para Fernanda e Cardoso, as sanções que o Ocidente impõe à Rússia tem levado o país a lançar mão de uma política externa que valoriza o Oriente, os mecanismos de cooperação alternativos, como a Organização para a Cooperação de Xangai (OCX) e a OPEP+, que reúne a Organização dos Países Exportadores de Petróleo mais um grupo liderado pela Rússia.

“Desde 2016, a Rússia integra a OPEP+ com o intuito de fixar metas de produção e influenciar os preços no mercado internacional, tornando-se uma plataforma crucial para a coordenação da oferta de petróleo, especialmente após a pandemia da COVID-19 levar os preços do barril a menos de US$ 30 no início de 2020. No entanto, divergências entre a Arábia Saudita e a Rússia já paralisaram as negociações internas, porque os russos, muitas vezes, tendem a pressionar os produtores de petróleo não-convencional dos EUA com preços mais baixos, aproveitando-se de seu break-even de US$ 57. Por outro lado, os sauditas, historicamente aliados aos EUA, buscam a contínua e controlada recuperação dos preços”.

Os autores ressaltam que “no seio da OCX, destaca-se a cooperação com a Índia e a China. Disso, resulta um triângulo estratégico mediante o qual, desde a década de 1990, a política externa russa busca afirmar a multipolaridade em oposição à hegemonia dos EUA e, recentemente, evadir às sanções com a política de “virada para o Oriente”. De um lado, a Índia tornou-se um parceiro importante na indústria de defesa e na cooperação científica e militar. Por outro, a China é o principal parceiro econômico e, desde o “Tratado de Boa Vizinhança e Cooperação Amigável”, um relevante parceiro estratégico”.

É importante ressaltar que em 2020, a balança comercial entre Pequim e Moscou superou US$ 100 bilhões. Em 2016, 26% das exportações de petróleo russo foram para a Ásia e a Oceania, principalmente a China que tem a Rússia como principal fornecedor de óleo e gás. A China se tornou o segundo maior importador de gás no mundo, superando o Japão, o que coloca o país na mira da expansão de gasodutos russos para a porção oriental.

Resumindo, para os autores “as atuais circunstâncias energéticas trazem à tona o tradicional debate sobre o perfil da Rússia, uma potência europeia ou asiática, evidenciando cada vez mais a sua particularidade política de Estado fortemente centralizado; característica preservada ao longo da história, ainda que, atualmente, seja parcialmente democrático. Por conta disso, não descarta sua posição geopolítica europeia em direção ao Leste Europeu, tampouco sua posição asiática em constante cooperação com a China. Assim, a Rússia não deve ser negligenciada tanto pelos laços econômicos e energéticos existentes quanto no que tange à sua extensa fronteira de influência em ambos os continentes”.

Ver mais na edição de novembro da revista Conjuntura Econômica

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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