“Da forma como está sendo feito, o debate sobre a lei orgânica das polícias discute pouco segurança pública, e mais indivíduos policiais”

Joana Monteiro – professora da FGV/EBAPE e FGV/EAESP, pesquisadora do FGV/CASS e coordenadora do Centro de Pesquisa do Ministério Público do Rio de Janeiro (Cenpe/ MPRJ)

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Em janeiro, foi destaque na mídia que o governo federal defende uma lei orgânica para as polícias militar e civil que reduziria o poder dos governos estaduais sobre estas. Entre os motivos, pela exigência da formação de uma lista tríplice, organizada por oficiais superiores da PM, da qual sairia a escolha do comandante geral. Qual sua avaliação?

De forma geral, as polícias do Brasil precisam da chamada lei orgânica, que é definida tipicamente no nível dos estados. Alguns têm, outros não. É a lei orgânica que coloca as regras da instituição, os critérios de promoção, de admissão e de seleção de candidatos. Acho saudável que isso seja discutido, e o Brasil precisa ter esse debate. Precisamos de regras nacionais definindo segurança pública, para garantir um nível de padronização.

Mas qual o problema das propostas que vêm sendo discutidas, não só essa mais, em todo o período recente? São propostas que têm carga muito corporativa, são muito mais preocupadas em gerar benesses para quem está na polícia do que para o sistema de segurança pública. O que tem ganhado força, e que é muito problemático, é essa militarização, no sentido de buscar uma equiparação ao sistema de carreira dos militares. A proposta, por exemplo, de criar cargos equivalentes ao de general das Forças Armadas é uma questão simplesmente de ampliar os cargos superiores para aumentar salários, referenciá-los aos salários federais. Cria-se um índice de escalas na profissão que é demasiado, e torna difícil a montagem de uma equipe.  

Quanto a essa questão de os governadores terem de escolher de uma lista tríplice, que foi a mais falada, considero problemática no nosso contexto. Você só pode vir com uma proposta dessas quando já tiver estabelecido um processo meritocrático dentro das instituições, e isso ainda não é verdade. Só posso me basear em uma lista tríplice no momento em que tenho confiança de que quem chegou naquele ponto de coronel são pessoas qualificadas. Acho que o Exército está muito mais próximo disso do que as polícias, de ter internamente um processo mais rígido de promoção. E é preciso alguma segurança de que há critérios técnicos para apontar aquelas pessoas, o que também acho que não é verdade. Perde-se um pouco a referência de que as polícias têm que ter um controle muito superior ao de outras instituições, porque elas andam armadas na rua. E também tem que ter um nível de controle político muito grande. 

De qualquer forma, discutir esse assunto no momento atual do Brasil é muito complicado.

E quanto à defesa da criação de um conselho de comandantes ligado ao Ministério da Justiça?

Para mim, a validade da formação de um conselho depende do objetivo, do que ele vai resolver. Se esse conselho é uma forma de criar pressão sobre um Ministro da Justiça, acho complicado. A gente tem uma questão muito forte no Brasil, pois a nossa Constituição diz que a segurança é dever acima de tudo dos estados, mas acho que a principal pauta que deveria caminhar no momento é a de o Governo Federal decidir uma série de padronizações, que incluem governança do sistema, estrutura de dados e de financiamento. E não privilegiar esse tipo de discussão agora, que tem carga corporativa muito grande. 

Veja o exemplo de algo que aconteceu no Rio de Janeiro. Na eleição de 2018, elegeram-se vários deputados que eram policiais e ex-policiais, que defendiam lutar pela segurança no estado. Mas, em geral, o que eles apresentaram até agora são leis para reduzir punição dentro da polícia, aumentar salário, criar promoção automática. Isso são coisas de político falando para sua base eleitoral, com pouca relação com o provimento de segurança pública. O maior exemplo foi um caso escandaloso, de um projeto de lei (1326/2019) que revoga expulsões de policiais militares ocorridas entre 2007 e 2018, por improbidade ou corrupção. É uma coisa absurda. Impressionante como essas pessoas perderam a vergonha do que defendem.

Considera que hoje deveria-se priorizar temas relacionados a uma Política Nacional de Segurança?

É o que deveria ser. Como disse, a organização das polícias faz parte do debate de segurança pública, mas da forma como está sendo feito estamos discutindo pouco segurança pública, e mais indivíduos policiais. Veja, os policiais eram uma carreira bastante ressentida por não terem a importância que juízes, promotores, médicos tinham. Muito do que estamos vendo é um processo político muito forte, muito apoiado pelo presidente, para se dar importância política a esses atores. E grande parte dessa importância está sendo dada por ter uma carreira que paga bem, e de aumentar o poder das corporações policiais.

O que não significa necessariamente construir um sistema meritocrático? 

Exatamente. Para deixar claro: a carreira de policial precisa ser valorizada, é super importante. são pessoas que ganham muito mal para ir para à rua e correr risco. Mas é preciso pensar na valorização com critérios, para que não se tornem só benesses. Quer melhorar a carreira? Coisas que são fundamentais, e que se não me engano essa lei está tentando tirar, por exemplo, é a obrigatoriedade de prova para sargento, que é o nível mais alto dos não-oficiais. Promoção automática é absurdo. A ideia de ter uma prova é ter um critério objetivo para se promover. Então, valorizar a carreira não é simplesmente dar aumento de salário. Passa também por criar mecanismos e separar o joio do trigo. E isso não foi discutido nada.

Casos de aumento da violência policial, registrado especialmente nas grandes cidades brasileiras, poderiam ser mitigados com essa visão mais padronizada de uma política de segurança nacional?

Nesse assunto, não estamos só atrasados, como andamos para  trás. A gente não tem ainda a violência policial pautada como um tema público. Nos Estados Unidos, a morte de George Floyd (após ter seu pescoço prensado pelo joelho de um policial) no ano passado foi o marco de uma mudança que já vinha acontecendo desde 2016, devido a outras mortes emblemáticas, tornando a violência policial um problema público. Ou seja, uma situação pela qual se precisa fazer algo. 

Aqui, passamos de um cenário em que uma parcela das pessoas identificavam essa violência como ruim para outro em que se acha que “faz parte do processo”. Se conversar com inúmeras pessoas, de classe alta ou baixa, ouvirá que faz parte pois que quem está morrendo é criminoso e a polícia enfrenta um nível de criminalidade enorme. E isso vai se refletindo sobre diversas esferas – no comportamento da polícia, dos promotores, dos juízes e dos políticos. A ponto de o presidente ter defendido a votação da excludente de ilicitude. Já se prevê no Código Penal que você não pode ser punido caso tenha matado alguém sob legítima defesa. Mas o texto original do pacote anticrime diz que se o policial estiver sob forte emoção, pode matar. Ora, todo mundo está sob forte emoção com uma arma na mão. 

A sinalização política de uma regra como essa costuma ter um efeito muito maior do que a questão legal em si. Porque o processo criminal, quando se vai na prática, pune uma parcela pequena do total, mas a sinalização política tem o efeito de aumentar o volume de casos. Recentemente, estava analisando os números de violência policial nos Estados Unidos, já que efetivamente esse virou um grande assunto no país, com inúmeros economistas fazendo estudos quantitativos. Em 2019, houve 1072 mortes desse tipo no país inteiro. Aqui no Brasil, só o Rio de Janeiro registrou 1800 nesse mesmo ano. Ou seja,  69% a mais do que nos Estados Unidos inteiro. E a gente ainda não consegue achar que isso é um problema público. E, para mim, sem identificar um problema como público, não adianta discutir política. 

Recentemente, o Projeto Farol, desenvolvido pelo Cenpe/MPRJ, divulgou um estudo que mostra que, dos 3.903 homicídios dolosos registrados no estado do Rio de Janeiro em 2015, apenas 14,6% foram concluídos com denúncia por parte do Ministério Público; outros 20,1% foram arquivados, restando mais de 60% ainda em processamento. Como o trabalho de pesquisa pode colaborar para uma melhora desses números?

Desde que entrei para a coordenação do Cenpe, há dois anos, recebi a demanda do procurador-geral de que se criassem métricas para medir o resultado da instituição. Começamos pela parte criminal, em especial crimes de homicídios dolosos, com a ideia de que esse estudo seja replicado para outros crimes, como violência contra a mulher, crime organizado, para entender a resposta institucional para esse crime específico.

A ideia é gerar atenção sobre a importância de se entender a justiça criminal como um sistema, que depende de trabalhos encadeados. Uma coisa importante desse trabalho foi conseguir conectar informações de três instituições diferentes: Polícia Civil, Ministério Público e Tribunal de Justiça. Essa tarefa demandou muito trabalho, porque essas três instituições têm sistemas de dados completamente distintos. Mas o processo de integrar esses dados já colabora na criação de uma cultura de pensar a justiça como sistema, e não de cada um olhar só para o caso que tem na frente.

Uma das coisas que venho defendendo bastante, e que é um desafio que todo sistema de justiça criminal enfrenta – seja polícia,seja judiciário, seja MP -, é que a forma de resposta ao crime é muito pontual, individualizada. Trata-se cada caso como um caso. Em um sistema com o volume do nosso, simplesmente não se consegue dar resposta para isso. Então, a questão central de levantar esses dados quantitativos é mostrar que estamos perdendo absurdamente para o volume. Nesse processo de que se tem que investigar tudo, dar resposta a tudo, em que tudo é prioridade, só olhamos para 15% dos casos de homicídio. Então, o debate que gostaríamos de suscitar é o de que é preciso fazer algo diferente, pensar sobretudo em estratégias para lidar com o volume de casos. Porque a lógica de discussão do sistema de justiça caracteriza-se muito por avaliar a suficiência de provas, sua materialidade, que é a lógica do profissional de direito, e está correta. Mas também há espaço para a discussão de política criminal – não no contexto de política de políticos, mas de política pública -, que ainda é muito rara no Brasil. De pensar como dar uma resposta mais efetiva para esse tipo de crime. 

Em janeiro, foi criado o Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública da FGV (FGV CASS), do qual também participa. Qual o objetivo desse centro?

Esse centro será instalado na FGV Eaesp e, além de mim, tem como pesquisadores principais João Luiz Becker Ciro Biderman e Eduardo de Rezende Francisco, todos da FGV Eaesp.  Também fazem parte do centro o coronel Celso Luiz Pinheiro, subsecretário de acompanhamento de Projetos Estratégicos da SSP-SP, Joyce Luziara Correa, assessora técnica de Gabinete da SSP-SP, e os pesquisadores Leandro Piquet da USP e Roberto Cardoso, da Scipopulis Desenvolvimento e Análise de Dados.

A ideia é desenvolver projetos de ciência de dados e avaliação de políticas públicas que a polícia de São Paulo implementou ou está implementando – como o caso das câmeras corporais (tecnologia que permite o acompanhamento instantâneo das ações policiais em diferentes regiões do Estado, cujo início de operação está previsto para o primeiro trimestre). Esse  deve ser nosso primeiro tema de estudo. O FGV CASS é um projeto de cinco anos e tem funding da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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