Mercado de trabalho: momento macro é desanimador, mas há toda uma agenda micro

Luiz Guilherme Schymura – Pesquisador do FGV IBRE e doutor em Economia pela FGV EPGE

O mercado de trabalho brasileiro já estava bastante debilitado, em consonância com o medíocre ritmo de crescimento do país, quando foi atingido pela pandemia. Os impactos econômicos da onda de Covid-19 foram gigantescos, no Brasil e no mundo. Naturalmente, esses efeitos afetaram de forma profunda o mercado de trabalho nacional, por vezes de maneiras inusitadas. Na saída da pandemia, entretanto, nota-se que os traços anteriores relacionados à crônica lentidão da atividade estão retornando, e que algumas mudanças dos últimos 2 anos, sugestivas de possíveis novas tendências, eram de fato movimentos temporários restritos a peculiaridades do período de emergência sanitária.

O impacto inicial da pandemia atingiu principalmente os trabalhadores informais e de baixa escolaridade, com destaque para o setor de serviços. Em 2020, a queda dos informais na população ocupada (PO) foi de 12,6%, comparada a 4,1% de recuo dos formais. Em 2021, houve recuperação gradual do mercado de trabalho, mas com predomínio da geração de postos de trabalho informais. Em dezembro de 2021, o emprego formal estava 0,5% acima do período pré-pandemia e o emprego informal estava 1,2% acima.

Outro efeito econômico marcante da Covid-19 foi o forte recuo da força de trabalho quando a pandemia eclodiu em 2020. Esse fator conteve significativamente a elevação da taxa de desemprego. Em compensação, ela tende a cair mais lentamente com a normalização da força de trabalho. Em dezembro de 2021, a força de trabalho estava 0,9% acima do período pré-pandemia. Porém, em termos de tendência, a força de trabalho ainda está cerca de 1,8 milhão menor do que estaria nesse ponto do tempo num contrafactual sem pandemia. A taxa de participação de 63% no último trimestre de 2021 ainda era 1 ponto porcentual (p.p.) inferior à do mesmo período de 2019.

A taxa de desemprego média anual saiu de níveis em torno de 12% ou pouco mais em 2018 e 2019 para 13,8% em 2020 e 13,2% em 2021 e, pela projeção do FGV IBRE, deve ficar em 11,9% em 2022. É relevante notar que esses números estão bem distantes da média de 9,8% entre 1995 e 2019. Na verdade, como se notou no início desta Carta, quando a pandemia começou, o mercado de trabalho ainda não havia se recuperado da profunda recessão de 2014-16. Assim, parece ser àquele nível mais debilitado pós-recessão de 2014-16 que se retorna agora, à medida que a crise econômica da Covid-19 vai sendo superada.

Segundo as projeções do IBRE, a queda da taxa de desemprego para níveis próximos dos 9,8% da média entre 1995 e 2019 depende de forte aceleração da economia brasileira. Uma taxa de crescimento de 1,5% ao ano, como a que vigorou em 2015-19, não faria a taxa de desemprego atingir 9,5% nem mesmo em 2026. Para isso, seria necessário um crescimento de 3,5% do PIB entre 2022 e 2026, algo bastante improvável dado o cenário negativo em 2022 e as perspectivas de baixo crescimento nos próximos anos.

Esse quadro melancólico do mercado de trabalho do ponto de vista macroeconômico, entretanto, não deveria esgotar as atenções dos analistas, porque, em nível mais microeconômico ou estrutural, há relevantes mudanças ocorrendo e toda uma agenda a ser pensada e implementada. No FGV IBRE, pesquisadores como Fernando Veloso, Fernando de Holanda Barbosa Filho, Janaína Feijó, Paulo Peruchetti e Silvia Matos têm se dedicado a esmiuçar as muitas facetas macro e microeconômicas do atual mercado de trabalho brasileiro.

De início, uma rara boa notícia derivada da grande mudança educacional do mercado de trabalho nacional nas últimas 3 décadas, período ao longo do qual a escolaridade média deu um enorme salto. Em 1992, cerca de 2/3 dos trabalhadores brasileiros não tinham sequer o ensino fundamental completo. Em 2021, proporção semelhante tem pelo menos o ensino médio completo. Os trabalhadores com ensino superior completo subiram de 5,8% para 21,4% do total no período.

Os pesquisadores do FGV IBRE fizeram um revelador exercício contrafactual sobre a evolução de indicadores do mercado de trabalho do Brasil caso a escolaridade da força de trabalho tivesse ficado congelada nos níveis de 1992.

Em termos de desemprego, a diferença não é muito grande, e a vantagem, surpreendentemente, teria sido a favor da força de trabalho contrafactual com escolaridade de 1992. Veloso explica que uma possível razão para esse aparente paradoxo é que trabalhadores com escolaridade muito baixa, de 0 a 4 anos de estudo, têm taxa de desemprego muito pequena, porque parte expressiva desse contingente nem sequer procura emprego. Assim, no exercício contrafactual a trajetória da taxa de desemprego teria sido um pouco mais baixa do que a efetivamente ocorrida nos últimos 30 anos, alcançando uma diferença no intervalo de 0,5-1 p.p. no atual século até 2015.

No período posterior, marcado pela recessão de 2014-16 e pela pandemia, a defasagem entre o cenário contrafactual (escolaridade de 1992) e o real se estreitou, chegando a desaparecer em 2000. Em 2021, para uma taxa de desemprego média efetiva de 13,2%, a taxa contrafactual com a escolaridade congelada no nível de 1992, teria sido de 12,9%.

Quando se toma a taxa de informalidade, no entanto, fica visível o enorme impacto positivo do avanço da escolaridade da força de trabalho. Há um muito bem definido padrão, que perpassa todo o período de 30 anos em foco, de que, quanto mais escolaridade, menor é a taxa de informalidade. Assim, em 2021, 75,9% dos trabalhadores com 0 a 4 anos de estudo eram informais, enquanto a taxa de informalidade daqueles com superior completo era de 31,7% (ela subiu, aliás, tendo sido de 17,5% em 1992).

Na comparação entre o cenário real de evolução da taxa de informalidade no Brasil com aquele contrafactual em que se supõe a escolaridade congelada no nível de 1992, abre-se uma diferença expressiva e crescente – favorável à taxa real – que se estabiliza em meados da década passada. Em 2021, a taxa real de informalidade foi de 48,4% e, no cenário contrafactual, teria sido de 63,8%.

O mesmo efeito favorável poderoso e crescente se vê no caso do rendimento real médio do trabalho. Em 2021, foi de R$ 2.569,56, e teria sido, no cenário contrafactual com escolaridade da força de trabalho congelada no nível de 1992, de R$ 1.685,93. Em outras palavras, o crescimento da média de anos de estudo dos trabalhadores proporcionou um aumento de renda de 52,4%. Na verdade, o rendimento do trabalho praticamente não teria crescido desde o início da década de 90 no cenário contrafactual.

Assim, quando se pensa que o grau de informalidade no mercado de trabalho ainda é muito elevado, e que o rendimento médio é muito baixo, é preciso levar em conta que esses indicadores seriam ainda muito piores se não houvesse o notável avanço da escolaridade no Brasil nas últimas décadas.

Outra boa notícia é que, apesar de – como mostrado acima – os impactos da melhoria educacional na taxa de desemprego terem sido nulos (até ligeiramente negativos), é provável que, nos próximos anos, a melhoria da composição da força de trabalho em termos de escolaridade passe a contribuir também para o emprego, além da formalização e da renda, à medida que aumenta a parcela de mão de obra com ensino médio completo.

Por outro lado, em termos conjunturais, essas tendências favoráveis ligadas à educação podem ser negativamente afetadas pela grande perda de aprendizagem observada durante a pandemia, um problema muito sério com o qual o Brasil terá de lidar no período à frente.

Outras questões importantes relativas ao mercado de trabalho nacional estão ligadas a mudanças tecnológicas e à reforma trabalhista. Estudo de Bruno Ottoni, do IDados e pesquisador associado do FGV IBRE, e Tiago Barreira (IDados), indica que a reforma trabalhista pode reduzir a taxa de desemprego brasileira de equilíbrio entre 1,2 e 3,5 p.p.

Adicionalmente, devido às mudanças tecnológicas e aos efeitos da reforma trabalhista, novas modalidades de trabalho têm surgido, como o teletrabalho e ocupações associadas à economia dos aplicativos, que terão importância crescente nos próximos anos.

O crescimento explosivo do número de trabalhadores por conta própria (CP) com CNPJ (CP/CNPJ) antes da Covid-19 e, principalmente, durante a pandemia, pode ser uma das indicações dessa transformação. O crescimento anual médio dos CP/CNPJ entre 2017 e 2019 foi de 7,6%, o maior entre todas as categorias de ocupação, e muito acima da expansão total da PO no período, de 2% ao ano. Em 2020, os CP/CNPJ cresceram 10%, um dos dois únicos resultados positivos entre todas as categorias de ocupação que, de forma geral, se retraíram fortemente no ano inicial da pandemia. A PO como um todo caiu 7,7% em 2020. Em 2021, os CP/CNPJ cresceram 13,5%, novamente a maior alta entre as categorias de ocupação.

A fatia dessa categoria no total da PO ainda é modesta, mas, com o veloz crescimento descrito acima, está aumentando, tendo saído de 5,1% em 2019 para 6,6% em 2021. Os CP/CNPJ são um exemplo das novas modalidades de trabalho que se expandem no Brasil. É necessário que a legislação trabalhista e o sistema de proteção social se adaptem para oferecer algum grau de proteção a esses trabalhadores, com os motoristas de Uber e os entregadores vinculados a aplicativos sendo os exemplos que mais chamam a atenção. O desafio é oferecer proteção e direitos sem criar custos excessivos que inviabilizem essas modalidades.

Um tópico adicional muito relevante para o mercado de trabalho nacional, foco da pesquisa principalmente de Fernando de Holanda Barbosa Filho, são as chamadas políticas ativas, referentes basicamente a treinamento e intermediação de mão de obra.

Há muito o que melhorar no Sistema Nacional de Emprego (SiNE), como explica o pesquisador. Um dos pontos iniciais é a “perfilização” dos trabalhadores, para entender quem precisa de quê. Por exemplo, uma pessoa de baixa empregabilidade provavelmente necessita de uma requalificação que pode ser desnecessária para um desempregado com melhores oportunidades no mercado de trabalho.

Outra questão fundamental é a qualidade do funcionamento das plataformas digitais do SiNE, que precisam ser constantemente revisadas e aperfeiçoadas. Se a experiência na plataforma é ruim, os empregadores deixam de colocar as oportunidades de empregos no sistema (os trabalhadores desempregados entram no mesmo momento de acesso ao seguro-desemprego). Com isso, a plataforma perde capacidade de empregar as pessoas, e a tendência é que a má avaliação se dissemine mesmo entre quem nunca usou. Como, numa lógica de rede, o serviço será tão mais satisfatório quanto mais seja utilizado (pois haverá mais vagas e, portanto, maior chance de pareamentos felizes), a má navegação na plataforma pode inviabilizar o sistema logo na partida.

É preciso também conectar os programas de qualificação profissional com os de intermediação. Não faz sentido treinar padeiros se a demanda específica em certa área geográfica ou em determinado grupo populacional é por confeiteiros, e vice-versa. Essa questão se conecta diretamente com os sistemas de pareamento (matching), pelos quais se põem em contato uma vaga de trabalho e um trabalhador adequado para ela e com vontade de preenchê-la. O desafio é “capturar” a demanda real das empresas e conectá-la com os programas de treinamento e qualificação e com a base de pessoas em busca de emprego, devidamente perfilizadas. Essas são características, aponta Barbosa Filho, que faltavam no Pronatec, o maior programa de treinamento e qualificação lançado no Brasil nas últimas décadas.

Hoje, há muitos recursos tecnológicos para aprimorar esses sistemas, como o “machine learning”. Existe também uma questão de interação entre o setor público e o privado, em busca de maior eficiência das políticas ativas de mercado de trabalho. Essa interação pode se dar em diferentes graus.

É possível, para melhorar a captura da demanda real das empresas por trabalhadores com qualificações específicas, utilizar “vouchers” empresariais, pelos quais as firmas financiam o treinamento de perfis profissionais que efetivamente desejam e precisam contratar. Outro tipo de medida é compartilhar os dados do SiNE com agências privadas de intermediação de emprego (respeitando a Lei Geral de Proteção a Dados, LGPD), o que eleva a chance de emprego do desempregado e permite o aprimoramento da intermediação privada. Um passo a mais é o de abrir, dentro do SiNE, unidades privadas de treinamento e intermediação de mão de obra, que poderão atuar com mais agilidade e flexibilidade, sem a rigidez de operação imposta ao setor público.

Finalmente, o último passo seriam os “contratos de impacto social”, pelos quais o governo remunera agências de intermediação de trabalho, mas apenas por trabalhador efetivamente colocado. Ou, alternativamente, o governo financia programas de qualificação, mas só paga se ficar demonstrado o efetivo aumento de empregabilidade dos trabalhadores.

Um último ponto importante em termos de mercado de trabalho, e especialmente ligado aos programas de qualificação, são as chamadas soft skills, as habilidades (skills) interpessoais e socioemocionais, como explica Janaína Feijó.

No caso de posições de trabalho de mais qualificação, como gerenciais, as soft skills podem incluir capacidade de liderança, habilidade em delegar funções etc. Já para empregos de qualificação mediana ou baixa, assiduidade, comprometimento com as tarefas a executar, capacidade de trabalhar em equipe etc. são algumas características desejáveis. Uma política ativa de mercado de trabalho no mundo de hoje também deve levar em consideração essa dimensão.

Clique aqui para baixar o PDF original.

 


O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.

Publicada na edição de abril de 2022 da revista Conjuntura Econômica

Subir