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Entrevistas 16 jun 2025
“Sob um contexto de incerteza, é preciso cautela e adaptabilidade”, afirma Paulo Picchetti, diretor do BC
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Postado por Conjuntura Econômica
Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro
Paulo Picchetti, diretor da área internacional do BC, é o entrevistado de junho da Conjuntura Econômica. Aqui, destacamos trechos dessa conversa, que aconteceu após a participação de Picchetti no XI Seminário de Política Monetária do IBRE, em 23/5, e contou com a participação de Fernando Dantas, moderador do evento.
Neste início de mandato, o presidente dos EUA Donald Trump tem tomado decisões cujo impacto potencial ultrapassa a questão comercial, chacoalhando um ordenamento financeiro global histórico, ampliando as incertezas acima do imaginado. Como isso afeta a condução da política monetária no Brasil?
O Banco Central não tem uma preocupação explícita com questões geopolíticas para cumprir o mandato de estabilidade de preço e de estabilidade financeira. O que nos interessa é o preço e a volatilidade dos vários ativos que criam expectativas e condicionam decisões dentro do Brasil. Nesse sentido, o choque institucional que a atual administração americana começou a introduzir tem um efeito de longo prazo que é muito preocupante. Durante décadas houve a construção de um mecanismo de confiança em instituições que se provou eficiente, útil inclusive do ponto de vista econômico, e que agora é questionado. Temos um presidente dos Estados Unidos que ataca diretamente a independência e a soberania do FED, que no fundo é o guardião do valor da dívida americana, do nível de preços. No limite, se você tem um descontrole inflacionário, o valor dos títulos da dívida é altamente prejudicado e se muda todo o cenário de alocação de recursos ao longo do mundo, inclusive no Brasil. Esses efeitos não são facilmente reversíveis. A analogia mais comum que se ouve é a da pasta de dente: depois que saiu do tubo, é difícil retorná-la para dentro.
Mesmo que amanhã sejam revertidas todas as medidas do ponto de vista comercial, e ao mesmo tempo o presidente Trump dê uma declaração de apoio incondicional ao que o FED está fazendo, a volatilidade que ele próprio criou com as idas e vindas dessas declarações é uma coisa que está na conta de todo o mundo. Se sou alguém que está investindo milhões de dólares em uma fábrica de veículos no Canadá ou no Brasil, que vai começar a funcionar daqui a dois anos, tratarei de esperar. Esse é um exemplo desse impacto, que tende a ter uma duração, infelizmente, maior do que o que vemos no curto prazo, mesmo, como disse, que essas medidas tomadas até agora sejam totalmente revertidas.
Ninguém consegue identificar, no conjunto de dados mais recente, uma evidência com probabilidade minimamente confiável. Nas apresentações que faço, inclusive no FMI, busco alimentar a racionalidade na discussão, ilustrando o contexto com vários gráficos, mas no fundo todos estão ali para perguntar: “E o que pretende fazer?”. Isso me fez lembrar Donald Rumsfeld o episódio da invasão do Iraque, dividindo o mundo entre elementos conhecidos; os não conhecidos, conhecidos; e os não conhecidos desconhecidos. De conhecidos, a gente sabe hoje que, no Brasil, a atividade continua resiliente e que a inflação está desancorada das expectativas. De desconhecidos, conhecidos, tem a questão de qual vai ser a dinâmica do hiato do PIB, se a desaceleração será suficiente, se a política monetária está com canais obstruídos ou não, e a preocupação com a dominância fiscal, narrativa que no fim do ano passado foi muito presente, depois diminuiu. Mas ninguém imaginava a sequência de eventos que tivemos desde da posse de Trump. O que fazer com esses desconhecidos, desconhecidos? É preciso cautela e adaptabilidade.
Uma questão destacada no seminário pelos economistas foi a preocupação de combinar flexibilidade sem prescrição futura pelo BC.
Como já mencionei, é óbvio que o mercado tem uma ansiedade e gostaria que o BC dissesse tudo o que vai fazer em cada instante do tempo. Mas em um contexto de muita incerteza, você se comprometer, mesmo que não seja explicitamente, ou levar as pessoas a acreditarem que você vai fazer alguma coisa sobre a qual você mesmo não tem convicção hoje, é uma coisa que tem valor esperado negativo. Qualquer tipo de forward guidance só é justificável se coordenar expectativas e criar uma credibilidade. A gente fez isso em dezembro, de maneira, inclusive, bastante radical, quando deu um aumento de 100 pontos base na taxa básica de juros e falou que tinha mais dois. Naquele momento, isso se justificava, tanto que o resultado foi comentado no seminário: o dólar caiu, a expectativa de inflação não caiu, mas não estourou – lembrem-se que, naquele momento de extrema volatilidade, o dólar chegou a bater R$ 6,40. O Banco Central deu uma âncora para todo mundo e matou a narrativa da dominância fiscal. Trata-se de um teste empírico: se tivesse dominância, o dólar tinha explodido, a percepção de risco do país tinha aumentado, e a expectativa inflacionária tinha desancorado ainda mais por conta disso. Mas foi exatamente o contrário.
No evento, Galípolo destacou que neste momento a política de comunicação do BC está privilegiando não explicitamente o que se pretende fazer, mas qual é a função de reação do BC. Essa diferença não é sutil. Uma coisa é dizer "Só vou começar a baixar juros em tal data". Dessa forma, estou me comprometendo em fazer algo. Outra coisa é comunicar que vou acompanhar ao longo do tempo um conjunto de informações, e identifico que um dos cenários possíveis seja a manutenção da taxa num patamar que é o de hoje, ou depois de alguns aumentos, com o compromisso de fazer o suficiente para coordenar a volta da ancoragem das expectativas.
Em que medida o calendário eleitoral, a possível preocupação do governo com metas de crescimento, e o diagnóstico de insustentabilidade do arcabouço fiscal em 2027 tornam o trabalho do BC mais árduo em 2026?
Uma parte fundamental do que dá credibilidade ao BC, apesar de todo o cenário eleitoral, é a autonomia operacional do Banco. Isso é muito diferente do que a gente tinha anteriormente. Outra parte é o fato de que essa percepção sobre o governo ter uma meta de crescimento em 2026, e por isso estar disposto eventualmente a tolerar a inflação – de acordo à narrativa do mercado –, já estar no nosso cenário base, através das expectativas da Focus. As projeções também apontam a uma trajetória fiscal que não tem consolidação no horizonte visível. Quando você incorpora isso nas expectativas, há uma transmissão para o que se acha que vai ser inflação, e essa expectativa afeta as nossas projeções. No modelo do Banco Central, você tem essa diferença.
Ainda se pode argumentar que hoje o Banco Central tem uma projeção de inflação menor que a do mercado. No evento, houve essa argumentação, apontando que talvez o mercado esteja vendo uma questão fiscal que o Banco Central ainda não identificou. Nesse caso, entretanto, tem uma questão de postura, de antecipar-se ou não a um evento. Erro de política monetária você pode fazer para os dois lados. Hoje vários elementos concorrem a uma piora do equilíbrio fiscal, mas o que de concreto a gente tem até agora para reagir e para incorporar às nossas expectativas? Por enquanto, muito pouco. Por que eu tenho que me antecipar isso, dado os riscos de se tomar uma decisão errada?
Veja o caso do crédito consignado. Há um lado estrutural positivo de aumentar o poder da política monetária, porque você reduz a taxa e a aproxima mais da taxa de política monetária, então ela fica mais sensível. Agora, no curto prazo, é um aumento de renda disponível. Há várias simulações, que estimam um acréscimo que vai de 0,3% a 1% do PIB, no acumulado de 2025/2026. Essa amplitude tem a ver com o fato de que ninguém tem clareza absoluta do que vai ser. Afinal, uma coisa é trocar dívida cara por dívida barata, e outra coisa é que gente que nunca pegou empréstimo, porque considerava caro, agora considere fazê-lo porque ficou metade do preço. Mas de que demanda estamos falando de fato? Qual é essa elasticidade? Ainda não sabemos, como tampouco sabemos qual o verdadeiro apetite dos bancos. Por ora, vemos essa linha na plataforma digital das instituições públicas, enquanto os privados estão avaliando. Este é um exemplo dentro de várias coisas que podem acontecer, algumas bastante incertas, outras que preocupam mais pelo lado de sinalização do que pelo impacto que realmente têm, como o programa Pé-de-Meia, ou o Auxílio Gás. Teremos que acompanhar. Do ponto de vista político, do mesmo jeito que aumentar desemprego é ruim, aumentar preço de alimento também é ruim. E o governo sabe disso. Se você olhar para um cálculo que vai levar em conta uma perda de popularidade que pode sensibilizar o governo, isso pode ajudar o Banco Central a conter preços. Como disse, tem muita coisa para acontecer.
Outro elemento de apreensão presente no debate foi quanto ao risco de o BC mirar explicitamente para o intervalo da meta, e não o centro, nesse momento de ultrapassagem de mares revoltos no âmbito externo, e necessidade de ajuste fiscal domesticamente. Como avalia esse quadro?
Para mim, alguma sinalização crível no campo fiscal tinha que preceder, e logo andar junto com a política monetária. Não precisa ser algo como houve na Argentina, que de um ano para o outro promoveu um ajuste fiscal de 4% do PIB, jogando o país numa recessão. Isso é muito dramático, não sei se temos condições políticas, na democracia brasileira, para fazer isso.
Mesmo no caso de qualquer discussão sobre uma meta de inflação ideal para o Brasil – como mencionado por Sergio Werlang, referindo-se ao paper de coautoria de Aloisio Araújo “Inflation targeting under fiscal fragility”. O grande exemplo dele é 2002, ano que calibra os dados do modelo para fazer suas projeções. E o que aconteceu em 2002? Temporariamente se aumentou a meta, mas com o anúncio e a realização de um enorme ajuste fiscal a partir de 2003. Acho que é algo que poderia ser discutido dentro de um modelo de maximizar o bem-estar do país intertemporalmente. Mas ajuste fiscal é condição necessária. Se você não tiver isso, não vejo como solução. Ao contrário, acho que daí você cria uma expectativa de que o teto é o novo piso, e qualquer choque ultrapassa o teto, e a gente sabe onde se termina.
Leia a entrevista completa aqui.
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