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Entrevistas 31 jul 2024
“Se é ruim protecionismo lá fora, pior será se insistirmos em um protecionismo comercial que só nos fez mal”, diz Otaviano Canuto
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Postado por Conjuntura Econômica
Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro
Nesta conversa, Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial, que recentemente entrou para o corpo técnico do Centro de Estudos de Desenvolvimento do Nordeste do FGV IBRE, avalia a conjuntura externa – tema da Conjuntura Econômica de agosto.
Como avalia o horizonte de política monetária dos Estados Unidos e seus reflexos para o Brasil?
O bom comportamento dos indicadores econômicos nos últimos meses ampliou a probabilidade de se começar um processo de queda da taxa de juros básica provavelmente a partir de setembro, de 25 pontos básicos, e provavelmente um segundo corte mais para o final do ano. Mas sabemos que já não se pode contar com o retorno dos juros naqueles patamares dos 12 anos depois da crise financeira global. Agora temos uma frequência maior de choques inflacionários do lado de oferta que torna pouco provável um retorno àqueles determinantes da inflação tão baixa, portanto, de juros tão baixos como do período anterior. Até meu amigo Olivier Blanchard tem revisto sua posição em relação a isso, como sinalizou em escrito recente.
É claro que sempre foi preocupação de todo mundo, e continua sendo, que a mudança do patamar de juros traga instabilidade também no circuito financeiro. No último Global Financial Stability Report, o FMI trouxe um material muito bem aprofundado sobre private equity, chamando muita atenção para a complexidade adquirida pelas finanças não-bancárias, que em grande medida substituíram o financiamento bancário, e ao fato de que os economistas têm que ter humildade em relação a esse mundo de transformação financeira, no sentido de que ninguém pode hoje afirmar, com certeza, que domina claramente o grau de vulnerabilidade e os riscos desse cenário. Por outro lado, depois do susto enorme que tivemos com as crises dos bancos regionais e do Silicon Valley Bank no ano passado, de certo modo a reação de autoridades dos Estados Unidos estendendo a cobertura de depósitos, acalmou as expectativas.
Mas a dimensão sobre a qual não temos a menor dúvida que poderá gerar problemas, caso as coisas não mudem a médio/longo prazo, é a fiscal. Trago de volta aqui o Blanchard. Muito corretamente, ele fez uma análise extremamente simples, porém poderosa, de que se você tiver uma taxa de juros abaixo, em termos reais, do crescimento econômico (PIB), a dívida não é um problema, ou pelo menos não é algo complexo de se administrar. A questão é que a dinâmica mudou, porque agora a gente tem não apenas juros mais altos do que os que prevaleceram nos anos pós-crise financeira global, mas vários fatores levando a déficits bem mais altos. Gosto de mencionar que se trata de um conjunto de fatores quase bíblicos, como saídos do livro de Ezequiel. Tivemos a pandemia. Também temos conflitos geopolíticos envolvendo guerras. E temos os efeitos das mudanças climáticas, com eventos mais extremos de secas e enchentes. Tudo isso, leva a inflação mais alta e mais riscos. Há aumento de preços de alimentos, ampliam-se os gastos com armamentos, e também vemos políticas industriais com forte componente de subsídio, levando a déficits públicos mais altos. Cenários projetados pelo Budget Office do Congresso americano, por exemplo, indicam que, se nada mudar, o endividamento americano pode virar explosivo, o que no mínimo vai tornar mais difícil o financiamento da dívida pública americana com juros baixos. Isso pode gerar um choque para o mundo inteiro puxando os juros para todo o mundo, inclusive para o Brasil.
A zona do Euro também tem as suas vulnerabilidades, em economias importantes, e sem que haja, digamos assim, uma unidade fiscal que garanta uma resposta da zona do Euro como um todo. E, na China, sabemos que o país atravessa desde o começo da década passada o rebalanceamento em direção a taxas mais baixas de crescimento, com uma atividade menos dependente de investimentos e de exportações para ser mais dependente do consumo doméstico. A China não fez essa transição integralmente, e quando a bolha imobiliária – sustentada pelo financiamento via shadow banking – estourou, sem o avanço, por outro lado da agenda de proteção social, viu-se que as condições para que a demanda doméstica substituísse o papel do investimento e das exportações, percebeu-se que as condições para essa taxa de crescimento sólida, ainda que mais baixa, não estavam dadas. Viu-se que a China ainda continuou extremamente dependente de exportar, mas agora sob um contexto de rivalidade geopolítica e tecnológica.
O que esperar de um possível aprofundamento da guerra comercial entre Estados Unidos e China, especialmente se Donald Trump vence as eleições à presidência?
Sempre que me perguntam se o Brasil e outros emergentes podem se beneficiar de alguma maneira da rivalidade dos Estados Unidos com a China, sempre me reporto a um provérbio swahili, que diz o seguinte: quando dois elefantes brigam, a grama sofre; quando dois elefantes fazem amor, a grama também sofre. A guerra que Trump travou contra a China chegou a beneficiar as exportações brasileiras, pois de fato uma parcela das exportações agrícolas americanas ao país foi ocupada pelo Brasil, e isso não se reverteu com o fim do governo Trump. Por outro lado, a narrativa de que o friendshoring, nearshoring pode beneficiar outros emergentes até se aplica para países como Vietnã, Malásia e México, mas não para o Brasil. Isso de fato aconteceu, com os chineses deslocando a parte final da cadeia de valor para esses países. Mas não foi o caso do Brasil.
Há ainda outro aspecto: com a guerra de subsídios e de proteção comercial que Estados Unidos, Europa e China estabelecem, estamos a descoberto. Nem temos espaço fiscal para enfrentar a guerra de subsídios, e estamos sujeitos a desvios, como a diretriz chinesa de exportar a qualquer custo para justamente compensar a falta de demanda doméstica. A velocidade com que chegaram carros elétricos ao Brasil no primeiro semestre pode ser uma boa ilustração disso – e da fragilidade da ideia de que possamos nos beneficiar de guerras comerciais.
Diante desse cenário, o que precisa ser calibrado na política comercial brasileira?
Nesse campo, acho que não tenho nenhuma novidade a aportar. Mas acho importante enfatizar que, mesmo sendo verdade que o momento externo neoliberal está retrocesso com as políticas comerciais industriais, isso não se traduz em que insistir no nosso fechamento tarifário e não-tarifário é uma coisa boa para o Brasil. Se é ruim protecionismo lá fora, pior será se a gente insistir ou tentar, digamos assim, aumentar ainda mais a dose de um protecionismo comercial que só nos fez mal. Mesmo que venhamos a eventualmente adotar em algum grau medidas políticas proativas industriais, que elas sejam bem seletivas e que não recorram a fechamento, mesmo com o mundo em processo de elevação de barreiras comerciais.
O segundo aspecto é para que de fato tenhamos investimentos e aumento de produtividade que seja sustentável, precisamos continuar melhorando o nosso terrível ambiente de negócios, pois este ainda continua sendo um componente que suga a produtividade de quem opera no Brasil. Veremos como a reforma tributária se materializa, esperando que o fantástico ganho potencial de produtividade esperado com ela não se perda na regulamentação – lembrando que somos campeões em jabutis.
Também temos que olhar para a qualidade do gasto público. Continuamos gastando mal, no que diz respeito ao impacto desse gasto sobre a produtividade. Exemplo disso é o ainda baixo nível de investimento em infraestrutura. Precisamos de espaço fiscal para aumentar o nível de investimentos públicos, para infraestrutura e outras áreas. O que passa, entre outros, pela revisão de subsídios.
E, ainda, evitar o risco de se chegar ao tipping point (ponto de não retorno) em nossos biomas. Enquanto a nossa energia limpa nos dá uma margem muito favorável no balanço de emissões de gases que provocam o efeito estufa, no caso dos desmatamentos nossa contribuição é negativa. Então, acho que é preciso reforçar o policiamento, as punições, para de fato de se alcançar o desmatamento zero. Não podemos cair em descrédito nesse campo.
Você poderá conferir mais análises de Otaviano Canuto na Conjuntura Econômica de agosto.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.