Questão fiscal reativa papel do câmbio no processo inflacionário

André Braz, coordenador do IPC do FGV IBRE

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

No Boletim Macro de agosto, você aponta o setor energético como principal vetor da inflação em 2021. Essa pressão é toda da crise hídrica?

A crise hídrica afeta muito o preço dos energéticos. A energia elétrica compromete 4,5% do orçamento familiar. Isso significa que, para cada 1% de aumento de energia, há um impacto no IPCA de 0,05 ponto percentual. Fazendo as contas, significará que, da inflação prevista para este ano – de 7,8%, caso seja mantida bandeira tarifária vermelha até dezembro –, quase 1 ponto percentual estará relacionado à energia elétrica.

Se falarmos dos energéticos de modo geral, somaremos GLP, gasolina, diesel engrossando a participação dos energéticos na inflação deste ano. Até o etanol entrou nessa conta, já que a crise hídrica afetou os canaviais, provocando alta nos preços tanto desse combustível quanto do açúcar.

Em conversa recente para o Blog, Paulo Pichetti, pesquisador do FGV IBRE, afirmou que a incerteza sem precedentes provocada pela pandemia prejudicou a capacidade dos agentes de mercado em prever a extensão de problemas como o de problemas na cadeia de suprimento de insumos industriais, que ainda pressionam a inflação. Considera que hoje há mais previsibilidade sobre esse impacto e sua extensão nos preços?

Agora o cenário está mais limpo, mas também mais grave. Porque sabemos quais os pontos de incerteza que impactam os preços no Brasil. Sabemos da Covid-19, dos problemas e que as cadeias globais estão passando, os preços das matérias-primas, e da gestão da dívida pública. Mas em um mundo em recuperação, e projeção de crescimento do PIB brasileiro em 5,2%, o risco agora tem sido o espalhamento da inflação, que já está acontecendo e amplia a pressão.  O índice de difusão já supera os 70% dos itens que compõem a cesta de consumo das famílias dentro do IPC da FGV. Isso preocupa a autoridade monetária, pois amplia o risco de desancoragem das expectativas.

Antes tínhamos a inflação contida em cadeias com grande dependência de commodities, especialmente as agropecuárias. Em 2021, esse espalhamento passou a acontecer na medida em que o isolamento social foi se enfraquecendo. Então, a volta à normalidade vem abrindo espaço para que muitos preços que apresentavam estabilidade agora passem a se mover. E as razões para isso são claras, pois muitos negócios sentiram o aumento de custos tanto de matéria-prima, como as atividades relacionadas com o setor alimentício, construção, quanto da energia. A conta de luz para se manter um estabelecimento funcionando, como um restaurante ou um salão de beleza, já subiu 20% em 12 meses e pode subir mais até o final do ano. E são altas disseminadas por todo o país, pois estão relacionadas à aplicação da bandeira vermelha. Isso tem criado uma persistência inflacionária mais forte, identificada nos núcleos de inflação.

Sob esse contexto, a preocupação do Banco Central com a desancoragem é importante, dada a inércia inflacionária refletida na modificação das expectativas dos agentes. A evolução das estimativas inflacionárias registradas no Boletim Focus é um bom termômetro desse cenário. Desde o início do ano, as revisões são sistematicamente de alta, quando no geral o que se costuma ver é um movimento mais ameno: aumento em um relatório, que retroage no seguinte, se estabiliza. Incontáveis semanas de revisão para cima confirmam a hipótese de que a expectativa dada pela inercia inflacionaria está ficando mais forte, com o mercado se antecipando em uma inflação que ainda não se concretizou ainda. Esse é o maior estopim.

Qual o limite que o BC deve impor nessa trajetória?

Existe um tempo para a política monetária fazer efeito. Em 2021 ainda temos várias pressões, especialmente de preço de energéticos, para as quais não há Selic que contenha. As altas mais recentes da taxa de juros básica deverão se refletir na inflação do primeiro trimestre do ano que vem, em que o fator preponderante será a inércia. Veja, o salário mínimo é corrigido pela inflação passada, para preservar o poder de compra dos menos favorecidos. Várias categorias também são reajustadas pela inflação do ano anterior, ampliando o desafio de 2022. Sem contar que ainda existe uma forte indexação na nossa economia: o reajuste que vemos na energia, na água, na telefonia, na escola, no transporte público. Se este ano a inflação será o dobro da meta, é natural que tenhamos um cenário mais complexo em 2022 (a estimativa do FGV IBRE é de um IPCA em 3,7%, com viés de alta).

Para o qual a questão fiscal colabora negativamente?

Sim, é um agravante, pois aumenta a incerteza e cria muita volatilidade no câmbio. E parte dessa volatilidade também é influenciada por decisões importantes no cenário internacional, pelo risco de afrouxamento da política expansionista nos Estados Unidos e outras economias desenvolvidas, criando um ruído ainda maior. Hoje, por exemplo, a taxa de câmbio está encostando em R$ 5,50 exatamente pelo risco de reversão da política monetária nos EUA e, no âmbito doméstico, pela questão dos precatórios, já que o adiamento e parcelamento dessas dívidas pode afetar a credibilidade do governo no quesito contas públicas. Isso é ruim porque, mantendo-se uma trajetória de desvalorização cambial que já vemos agora por mais um, dois meses, poderemos ter novos aumentos na gasolina, no diesel, em matérias-primas importadas ou que tem preços colocados em bolsas internacionais. Real mais desvalorizado significa soja mais cara, milho mais caro, insumos da construção mais caros. Ou seja, o que já está ruim, pode ficar pior. Em geral, aumentos de juros atraem capital de fora em busca de melhor remuneração para seu investimento. Ainda que seja especulativo, é um movimento que ajuda a estabilizar o câmbio. Era um pouco o que estava acontecendo há poucos dias, quando o BC começou a sequência de altas da Selic, até trazê-la aos atuais 5,25%. Nesse período, vimos a taxa de câmbio chegar abaixo de R$ 5,20, e até especulou-se a possiblidade de um dólar a R$ 4,50, estimativas de fechar o ano em R$ 5,10. Se o câmbio ficasse estável, já era bom. Em um patamar um pouco baixo, melhor ainda, porque ainda não tiraria competitividade do Brasil, continuamos exportando muito, e reduziria a passagem do efeito câmbio para a inflação. Só que agora temos as contas públicas. A questão dos precatórios não agradou ao mercado, e agora ficou mais difícil pensar na sustentação da taxa de câmbio em um patamar mais baixo – o que pode realimentar o processo inflacionário por um outro canal que a gente pensava ter superado.

Estudos apontam que desemprego e inflação estão cada vez mais comprometendo a capacidade da população de baixa renda de honrar seus compromissos e até se alimentar adequadamente. A tendência inflacionária para daqui ao final do ano tende a acentuar esse problema?

A inflação esperada agora tende a ficar mais democrática, mas ainda elevada. No ano passado ela estava muito concentrada em alimentos, onerando mais as famílias de baixa renda. Este ano, como está mais espalhada, está atingindo produtos e serviços mais relacionados ao consumidor de alta renda. A energia é um problema, pois afeta todo mundo. O gás de botijão, por sua vez, que está sob um contexto de alta por conta do petróleo, atinge mais a baixa renda. Em compensação, aumento de gasolina atinge as classes mais altas. Na área de serviços, itens como hotelaria, passagens aéreas e excursões são os que têm chamado mais a atenção. Nesse campo, a frustração de consumo da classe mais rica pode agora gerar uma pressão de procura, o que naturalmente leva os preços a subir, além da questão dos custos.

Em média, entretanto, ainda não existe aumento real para os serviços. Mas, pela velocidade de recuperação, essa pressão de preços tem assustado o mercado e será um desafio que permanecerá em 2022.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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