“No Brasil, para criar despesa nova, não existe oposição”

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

A Zeina Latif, sócia da Gibraltar Consulting, é a entrevistada da Conjuntura Econômica de março. Selecionamos trechos dessa conversa em que a economista trata, entre outros temas,  do contexto de incertezas e como estabilizar a política econômica até 2026.

Há cinco anos do início da pandemia de Covid-19 no Brasil, que lições considera que esse período deixa para nossa macroeconomia?

Temos algumas coisas que aconteceram naquele ambiente e que hoje podemos ver as consequências, fruto da governança complicada que temos. Conseguimos criar muitas políticas públicas, mas na hora de eliminar ou reformar, a dificuldade é grande. Temos um problema de governança que está no cerne do gigantismo dos gastos públicos do país. O peso da responsabilidade fiscal cai nos ombros do Executivo mas, no final, os outros poderes, não só políticos, também têm muita influência nessas escolhas. Entretanto, essa dificuldade do nosso sistema fica ainda maior em conjunturas de presidentes fracos, quando o capital político do Executivo sofre deterioração, tornando-os mais vulneráveis. De qualquer forma, não vemos uma responsabilização compartilhada para o cumprimento das regras fiscais, o que, entre outros, mostra fragilidades da nossa Lei de Responsabilidade Fiscal.

Um exemplo ilustrativo desse período é o Bolsa Família, seja em termos de seu atual desenho, seja quanto ao montante do benefício concedido. Se pegarmos o que foi o auxílio emergencial na pandemia, veremos que já se tratava de um valor exagerado para as circunstâncias. Naquele momento, entretanto, era difícil avaliar a extensão da crise sanitária. O governo, entretanto, não conseguiu conter o ímpeto do Congresso, principalmente na renovação desse benefício - porque uma coisa era no momento de sua criação, sob o susto do choque sanitário, mas depois tivemos renovações até chegar ao que é o atual Bolsa Família. Mesmo que em princípio o PT tivesse legitimidade para fazer ajustes quando Lula foi eleito em 2023, não tratou de reestruturar o programa, o que era essencial. A gente sabe dos problemas de desenho no Auxílio Brasil os quais, por exemplo, possibilitaram um crescimento muito grande das famílias unipessoais entre os beneficiários. Mesmo com o pente-fino que foi executado posteriormente, percebemos que ainda há problemas de má focalização, o que ilustra essa dificuldade em fazer ajustes. O atual governo chegou a fazer o benefício ponderando pelo número de pessoas, não só de filhos, mas ainda se trata de uma mudança aquém da necessária.

Os fundos usados para apoiar políticas de socorro setoriais também refletem esse problema. O economista Marcos Mendes, por exemplo, tem tratado muito dos fundos garantidores criados no passado e que, ao invés de serem desmontados, essas estruturas para ajudar a reduzir a dívida pública, acabam fomentando gastos fora do orçamento. Ainda que não tenha relação com a pandemia, cito outro caso, do programa Pé de Meia. Essa política deveria ter sido questionada já no início das discussões, entre outros motivos, por ter sido criada fora do Orçamento. Houve agora a proposta de ajuste (o pacote do governo apresentado no final de 2024 previa a inclusão do programa no Orçamento a partir de 2026, dentro da dotação do Fundeb, mas o TCU suspendeu parcialmente os recursos do Pé de Meia já para este ano, até que seja incluído no Orçamento de 2025), mas isso ainda vai levar algum tempo para acontecer.

Além disso, fazemos política sem avaliação ex-ante, para identificar se de fato são boas, e nem preciso falar que o ex-post a gente também não faz. Ainda que o tema seja meritório, independentemente desse gasto acontecer acima ou abaixo da linha, será de fato que essa medida vai reter alunos nas escolas? Se a escola é de baixa qualidade e há uma economia paralela no Brasil, inclusive do crime, que torna a atividade fora da escola mais atrativa, será mesmo que se conseguirá resolver esse problema simplesmente criando uma ajuda complementar? Estudos que leio me levam a crer que poderá ser uma política de baixa eficácia. Além disso, novamente vem a questão: quais trabalhos serviram de base para esse programa? Essa política prevê um desenho que permita sua avaliação futura, como previsão de grupos de controle que servirão como base para saber se essa medida realmente funcionou? Parece-me que não. Tratou-se de uma aprovação em um Legislativo com ambiente polarizado, em que ninguém é contra uma política de cunho mais populista. Mas tudo isso também terá um ônus político futuro.

Precisamos reforçar mecanismos para barrar políticas públicas pouco eficientes. Isso já existe dentro da estrutura estatal, hoje está no Ministério do Planejamento, que é a Secretaria para Avaliação e Monitoramento de Políticas Públicas e Assuntos Econômicos, mas que não consegue de fato ter a necessária autonomia para fomentar o debate público, porque estão ali dentro da máquina estatal. Promover esses estudos de avaliação já foi um avanço, mas a capacidade política ainda é muito pequena.

Nesse ponto, acho que precisamos ter órgãos de perfil mais independente, com acesso a dados e capacidade de avaliação que não fiquem submissos àestrutura governamental. Poderia ser um Ipea remodelado, poderia ser uma rede de instituições abrindo dados e estimulando a pesquisa em organismos privados.  O ponto é que, dentro da estrutura do governo, acho que se perde essa capacidade de fazer circular a informação, checar, apresentar ao Tribunal de Contas da União (TCU) para que, com acesso a trabalhos desse tipo, amplie sua condição de bloquear políticas inadequadas de antemão, sem precisar de qualquer manifestação política, - porque no Brasil, quando é para criar despesa nova, não existe oposição.

Até onde considera viável ao Banco Central chegar como os juros para encaminhar a inflação para a meta?
O agravamento do risco fiscal é um fato concreto. A dívida pública está mais alta, e a gente sabe das muitas bombas fiscais que vão comprometer cada vez mais o espaço para despesas discricionárias. Tem problemas que não são para já, mas que já estão contratados e em uma década irão surgir, como o previdenciário e o dos Microempreendedores Individuais (MEIs). Além do fato de o governo ter aumentado a rigidez orçamentária com a regra de reajuste do salário mínimo e a volta da vinculação para saúde e educação. Essa rigidez também aumentou por problemas em outras frentes, que precisaremos rever, como a questão dos precatórios. Tivemos a postergação desses gastos no governo anterior (PEC dos Precatórios, em 2021), sem nenhuma medida para melhorar a governança, reduzir o nível dessa judicialização no país, que já estava atingindo números elevados. Naquele momento, havia limitações ao pagamento por causa da regra do teto, mas era possível fazer ajustes sem adiar pagamento, porque aquele período foi marcado por forte aumento de arrecadação. Faltou tratar também do diagnóstico. Empurrou-se o problema, e sabemos do grande risco de crescimento dessa conta.

Para completar, temos uma crise de confiança que tampouco saiu do nada. Houve erros do atual governo, sim, mas se trata de um nível de mal-estar não comparado a outros momentos. Por exemplo, também vimos muitos equívocos no governo anterior; naquele momento, porém, a arrecadação estava crescendo, entre outros motivos, fruto do descasamento do IPA e IPCA, e do fato de que a gente tinha um país em que as pessoas estavam em casa consumindo bens industrializados, que têm carga tributária maior. Diante desse quadro, o mercado teve uma postura mais benevolente aos furos do teto, ao tratamento dado aos precatórios, ainda que sob uma retórica mais conservadora na gestão fiscal.

A retórica do atual governo, por sua vez, colabora para comprometer a confiança dos agentes econômicos, e essa é uma questão essencial. Uma manifestação disso é a desancoragem das expectativas inflacionárias para o longo prazo, de difícil correção. A propósito, o Banco Central está fazendo um choque de juros, e mesmo assim as expectativas continuam piorando. O que fazer, então? O que a gente vê na literatura econômica sobre ganho de reputação de bancos centrais indica que se trata de um processo lento.  Não é com choque que se ganha credibilidade, mas em um jogo repetido, de consistência e perseverança da política. Por esse aspecto, quando o BC faz um choque por problema de confiança, ele acerta no diagnóstico, mas não consigo concordar com o remédio. Considero que, em dezembro passado, a sinalização de mais altas piorou as expectativas. Veja, o câmbio subiu para o patamar dos R$ 6,30 pós-decisão do Copom. Na minha visão, ao fazer o choque, sancionou-se as expectativas do mercado, de que o pacto fiscal havia sido tímido, ainda por cima incluindo a questão da desoneração do imposto de renda. Aí o mercado reagiu mal duplamente: por colocar uma medida de cunho populista no momento que o grande tema era a contenção de despesas, e financiá-lo de forma a atingir as decisões de investimento.

Em contrapartida, tiveram coisas ali importantes que o mercado simplesmente não considerou, que foi um governo de esquerda mexendo em política social. É simbólico. O fato é que o que era para ser boa notícia virou má notícia, e a reação do BC, na minha visão, devia ter sido mais serena. Por exemplo, apontando a necessidade de aceleração do ritmo de alta para 50 pontos-base, mas indicando que iria aguardar o desenrolar da conjuntura, em que havia muita poeira levantada, inclusive por conta da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. Sei que minha visão é polêmica, mas acho que ao ter feito um guidance tão forte de cara, em meio a tantas incertezas, sancionou-se o mau humor. Claro que a questão fiscal é grave mas, diante do choque, abriu-se a possibilidade do mercado começar a discutir o risco de dominância fiscal.

Como mencionei, a literatura aponta que choques, com forte corte ou aumento de juros, têm que ser guardados para uma situação excepcional. Como foi na pandemia, ou na passagem do governo Fernando Henrique para o Lula (em 2002, quando o petista derrotou José Serra). São situações muito específicas, para evitar a fuga de capital, por exemplo. Mas não acho que era a recomendação para dezembro do ano passado. É claro que em um quadro de baixa confiança, é usual que os canais de transmissão da nossa política monetária fiquem enfraquecidos. O que vimos, entretanto, foi que nem por isso a subida de juros desobstruiu o canal da credibilidade no BC. Ao contrário. Continuamos vendo a deterioração das projeções no boletim Focus.

Em sua opinião, qual seria a calibragem nesse processo lento de resgate de confiança, levando em conta o fato de ser o primeiro ano do novo presidente do BC, Gabriel Galípolo?

É difícil fazer uma recomendação sobre até que ponto é adequado subir os juros. Mas, como disse, acho que a política monetária não pode ser tão ativista. Acredito muito mais numa estratégia gradualista.  Ou seja, manter os juros elevados por mais tempo, ao invés de subir agora para cortar no segundo semestre, por exemplo. A suavização é uma tática mais interessante, em especial em um país que já tem tanta volatilidade, fator que machuca decisões de investimento. Cabe ao BC mostrar consistência nas ações, ter uma comunicação bem-feita. É algo muito mais difícil e complexo do que simplesmente fazer um choque de juros. Hoje o Focus aponta para uma Selic na casa de 15% ao ano no final de 2025, mas entendo que isso acontece porque se trata de um cenário muito volátil - característica que não é exatamente nova no Brasil.

Vale dizer que essa suavização não elimina a importância dos alertas do BC sobre a questão fiscal são necessários, e temos visto esses alertas desde a gestão do Ilan (Goldfajn, presidente do BC de 2016 a 2019). Lá em 2014, na gestão de Dilma Rousseff, por exemplo, faltaram esses alertas. Costumo dizer que, naquele momento, as ruas perceberam o problema na política econômica antes dos mercados. Demorou muito para os preços de ativos reagirem como deveriam aos erros da política econômica, bem como as instituições de controle também. Quando o BC apresenta o balanço de riscos, é claro que tem que envolver essa questão fiscal.

Diante do atual momento de incertezas, como estabilizar a política econômica até 2026?

A gente já tem observado uma melhora no preço dos ativos, mas o cenário político-eleitoral também cresce no radar. Vimos isso claramente quando saiu a pesquisa Datafolha mostrando a queda abrupta da aprovação do Lula, e a reação do mercado. A estratégia de Lula foi começar o governo gastando, com a ajuda da PEC da Transição. Sabíamos que o Orçamento herdado por seu governo não atendia às regras do teto, só com shutdown para cumpri-lo, sendo que no Brasil é impossível fazer algo do gênero. Se Bolsonaro vencesse, começaria seu governo furando o teto. Mas a PEC da Transição foi além - especialistas apontam o dobro do razoável para acomodar o benefício de R$ 600 do Bolsa Família e corrigir outras rubricas. Minha interpretação é de que já se tratava do desejo de Lula em resgatar sua biografia, em um país dividido, o que o fez inverter o ciclo usual de começar o governo com mais austeridade para acelerar gastos no final, visando às eleições. Então, tratou de buscar recursos. A tendência é de que não repita a alta de gastos daqui para frente. No meu cenário base, ele não será candidato. Mesmo assim, deseja sair com a biografia preservada e resgatar seus eleitores tradicionais. Sob esse ponto de vista, não dá para descartar medidas populistas, mesmo não concorrendo em 2026.

Veja, quanto mais se conseguir trazer a discussão dos problemas fiscais para ajudar o próximo presidente a se comprometer com reformas, melhor será para o país.  Já vimos a importância que foi a discussão da reforma da Previdência no governo Michel Temer para fomentar sua aprovação. Essa reforma não foi tema de campanha em 2018, mas já estava implícito que o próximo presidente, quem quer que fosse, teria que fazê-la, pois implicitamente o caminho estava trilhado. E assim foi, com méritos também do engajamento do Congresso.

A própria reforma tributária não foi compromisso do Bolsonaro. Não era uma agenda do Paulo Guedes, mas estava sendo fomentada na Receita Federal com o time do Isaías Coelho, com a Vanessa Canado, trazendo essa discussão para o campo da política, alimentando aquele projeto de relatoria do deputado Baleia Rossi (MDB-SP). Assim, acho que uma forma de se construir um caminho mais palatável, de confiança, até 2026, é reforçar o debate sobre pontos que são essenciais para a próxima gestão, os quais já mencionei e que passaram pelo fiscal, assim como por uma nova reforma da Previdência. Deixar uma agenda encaminhada é essencial para a formação de expectativas nos preços de ativos, para que os agentes pensem: “está ruim agora? Ok, mas enxergamos um plano de voo para o país”.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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