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Entrevistas 11 nov 2024
“Não é óbvio que uma China que cresce menos é um problema”
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Postado por Conjuntura Econômica
Livio Ribeiro, pesquisador do FGV IBRE
Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro
Entrevistamos Livio Ribeiro às vésperas da definição de quem seria o presidente dos Estados Unidos. Nossa pauta era China, e ainda que o resultado das eleições americanas fosse chave para delinear várias projeções para o país, Ribeiro mostrou que ainda havia muito a se analisar sobre a evolução da economia chinesa, lançando mão do conhecimento que o elevou a segundo melhor preditor do PIB chinês no mundo, e primeiro entre analistas ocidentais no ranking da Bloomberg em outubro. Leia, a seguir, trechos dessa conversa:
Nos últimos meses, o mercado internacional acendeu o alerta sobre a desaceleração do crescimento chinês, que também suscitou medidas contracíclicas da parte do governo. Quais desafios identifica para o país?
Vale lembrar que esse movimento acontece em meio a um processo de transição do modelo de crescimento chinês. Um pedaço dele é induzido pelo governo desde 2012, quando Xi Jinping toma o poder, com a transição de mercado externo e investimento para uma economia mais apoiada no consumo doméstico e serviços. Essa transição começa quando indústria e serviços tinham participação similar no PIB chinês, com 45% cada. Hoje essa divisão é 55% para serviços e 35% para a indústria, mas ainda se trata de uma transição muito delicada, pois asiáticos em geral consomem pouco – a China não é exceção –, e o país sofreu uma série de choques no meio do caminho não antecipáveis, como a pandemia, que foram atrapalhando o processo.
Essa transição de modelo tem características conflitantes. Por um lado, a mudança de perfil de crescimento leva a uma expansão menor, porque é mais natural crescer a uma velocidade menor quando se é uma economia de serviços do que uma economia de bens, que são mais exportáveis. Por outro lado, há uma questão estrutural, em termos de demografia. Ou seja, a transição para o consumo acontece numa sociedade mais velha, que naturalmente consome menos. Assim, trata-se de uma obra inacabada, e muito difícil. De uma forma ou de outra, a China vai crescer menos. Se no fim da década a China estiver crescendo 4,5% ao ano, será um desempenho estelar. Considero que esse crescimento estará mais para 3,5%.
Isso é ruim? Ainda perdura o cacoete de se pensar em velocidade de crescimento do PIB, mas para o mundo o que na verdade importa é quanto se compra. Uma China mais rica, mas que cresce a uma velocidade menor, pode ter uma demanda até maior do que uma China menor que crescia muito. Para mim, não é óbvio que uma China que cresce menos é um problema. Para o Brasil, o importante é reavaliar o tamanho desse mercado futuro para cada produto que exportamos – os mais relevantes são ferro, soja, petróleo, milho, proteína animal. Quanto será? Acho que um dos debates mais interessantes nesse exercício está no setor do minério, em que se espera uma queda de consumo, dado o avanço da urbanização chinesa. Essa é uma indústria cartelizada, e a tendência nesses casos é de uma redução de produção para manutenção de preços. Aí a pergunta que cabe fazer é se elas aceitarão ficar menores; se brigarão entre si para tomar market share, ou se vão fundir. Já há discussões de fusão nesse mercado. De que forma estamos nos posicionando nesse debate? Esse é um exemplo de questões com as quais de fato temos que nos preocupar.
Um modelo de menor crescimento com mais qualidade também atende a uma demanda da própria sociedade chinesa por bem-estar, especialmente entre os mais jovens?
Essa demanda de fato existe. É parte da formação do ethos do chinês moderno. Pense que o avô do atual jovem chinês passou fome, em uma época em que milhões de chineses morreram. O “Grande Salto para Frente”, programa de aceleração do crescimento da década de 1950, e a Revolução Cultural (1966-1976), que foi uma tentativa de Mao Tsé-Tung de se manter no poder a todo custo, trouxeram uma instabilidade social grande que também impacta a formação do pensamento dos chineses, até chegar aos valores de hoje. Quando Deng Xiaoping chega ao poder em 1978 e promove a abertura organizada, começa-se a mudar a forma não somente de como os chineses interagiam com o mundo, mas como interagiam entre si. Esse processo é muito mais lento do que as pessoas imaginam. Pense, por exemplo, que a população chinesa só passou a comprar ou vender um imóvel no final da década de 1990. Antes disso, não havia mercado. Essa geração da abertura também foi a que pôde trabalhar em atividades que não eram rurais ou estatais, e trabalhou duro na esperança de garantir uma vida melhor para o filho, bem como uma velhice segura para os pais, diante da ausência de um sistema previdenciário. Hoje em dia, até existem políticas previdenciárias regionais, mas nada organizado em nível nacional.
Os filhos dessa geração são os adultos que hoje têm entre 40 e 50 anos de idade. Eles cuidam de seus pais, que trabalharam arduamente, e também buscam garantir um horizonte melhor para seus filhos. O perfil desses filhos, entretanto, já é diferente. Caracteriza-se, em geral, por serem filhos únicos, mais mimados e mais qualificados – não raro, com formação fora do país –, mas que não encontram emprego. Moram na casa dos pais e sua aspiração é ser como um jovem coreano, ganhando a vida com atividades relacionadas à internet e às redes sociais. Ou seja, suas ambições, valores, são muito diferentes das de seu pai e avô. Esse choque é relativamente claro. Quando o governo decidiu revisar as estatísticas de mercado de trabalho ao perceber a forte alta do desemprego entre jovens, Xi Jinping escreveu um artigo para a agência de notícias Xinhua em que, grosso modo, dizia: “Garotada, pare de reclamar e vá trabalhar. Na minha época, eu não escolhia”. Só que os jovens agora querem escolher. O movimento tang pin, ou “ficar deitado”, que ganhou projeção em 2021, trata exatamente de se manifestar contra o trabalho exaustivo.
Entre esses jovens, também há um desejo, que tem sido mapeado em estudos, de se posicionar como um agente global, que consome coisas do mundo, mas também inspira o mundo. Apesar de a China ter optado por romper o isolacionismo econômico, ainda há um isolacionismo cultural – e isso está começando a ser questionado. Veja, hoje a Coreia do Sul projeta soft power com referências culturais como séries para streaming e grupos musicais de k-pop. Qual o soft power da China? Vai pouco além de algumas referências culinárias – por exemplo, comer pato laqueado em China Towns espalhadas pelo mundo. Um dos pontos dessa virada está sendo protagonizado também pelas marcas de luxo, nesse caso chinesas, que buscam projetar a rica herança cultural do país como diferencial de seus produtos. A nova geração quer promover esse soft power; o grupo político que hoje governa o país ainda é de uma geração anterior, mais resistente a essa mudança, mas a discussão está na mesa.
Como espera que o resultado das eleições nos Estados Unidos influencie a evolução da guerra comercial, especialmente a tecnológica, travada entre China e EUA?
No caso da guerra tecnológica, há uma tensão que é central, envolvendo Taiwan, China e Estados Unidos em torno dos semicondutores. China e Estados Unidos estão investindo muito dinheiro para montar suas próprias estruturas autárquicas de produção, desde a exploração de terra rara até o microprocessador. Taiwan já faz isso, com um núcleo hiperespecializado, altamente produtivo, que concentra 90% da produção mundial de microprocessadores. O setor de eletrônicos que é relevante para os Estados Unidos e para a China hoje, não existe sem Taiwan. É preciso criar essas estruturas que colocarão um dos países na dianteira da inteligência artificial, da internet das coisas. É aí que a briga se concentra, e ela acontece totalmente por baixo do pano, longe do debate oficial de políticas comerciais.
Quem está na frente dessa disputa hoje? A China, porque conta com mais dirigismo estatal: desde 2015, já foram lançados o China 2025, o China 2035, e em 2022 saiu o China 2049, marcando os 100 anos do Partido Comunista Chinês. Enquanto nos projetos anteriores os objetivos apontados eram aprimorar a cadeia de valor, ampliar o grau de desenvolvimento da sociedade, este último aponta à liderança chinesa no mundo de forma generalizada: econômica, cultural, geopolítica. Ou seja, já se trata de um plano de dominância estratégica, o que não é pouco.
O fato é que, mais do que pensar no impacto de um governo dos EUA democrata ou republicano, hoje o que se tem é uma contraposição de Estados, não de governo. O patamar mudou. Os Estados Unidos parecem ter entendido isso. Pode-se dizer que, nessa briga, Trump é pior, pois tem essa característica histriônica de fazer diplomacia no X, gritando com o Elon Musk. Mas o jogo já é outro.
Para 2025, quais os desafios que identifica para a China – levando em conta um novo governo nos EUA, e o impacto esperado dos pacotes de estímulo?
Hoje, com a informação que temos, sem entrar em hipóteses, projetamos um crescimento mais perto de 4,5% do que de 5%. Não chega a ser uma hecatombe. Como chegamos a ele? Construímos um modelo com dois passos. O primeiro, de alta frequência, atualiza a projeção do PIB chinês para o trimestre corrente e dois trimestres à frente, sete vezes por trimestre, em função dos dados qualitativos e quantitativos que vão sendo divulgados. Então, por esse modelo meu alcance hoje é até o segundo trimestre de 2025. Esse resultado depois é plugado ao de outro modelo mais estrutural, de contabilidade do crescimento, faço ambos resultados “conversarem”, e chego à projeção para o ano cheio.
Quando menciona que essa projeção não inclui hipóteses, significa que ainda não leva em conta possíveis efeitos do pacote de estímulo?
Isso. Esse pacote inclui três linhas: de crédito, monetário, e o fiscal/parafiscal. Na minha opinião, os pacotes monetário e de crédito apenas melhorarão preço de ativo, agradarão o mercado, mas não atacarão os problemas econômicos que a China tem hoje. A discussão é de demanda, tem que ser tratada pelo braço fiscal/parafiscal, cujo conteúdo tem obedecido a um rito até ser divulgado, algo que ainda alimenta a ansiedade do mercado. Se o pacote fiscal se limitar a ampliar cota de emissão de fundo, estimular os governos subnacionais e fazer infraestrutura, veremos a volta da Velha China para o resgate da economia. Também resultará em resultados no curto prazo, mas tampouco resolverá o problema estrutural.
Há vários anos você aponta em suas análises que o problema que o governo chinês precisa consertar está no lado da demanda, e o que se vê são medidas em geral concentradas no setor imobiliário. Como interpretar esse comportamento?
É preciso compreender a dinâmica do mercado imobiliário na China. Pense em um tripé: mercado imobiliário, finanças subnacionais e solidez no mercado de crédito. Quando se desmonta o mercado imobiliário, há impacto em leilão de terra, que é 30% da receita do subnacional na média e 50% da receita própria. Ou seja, gera-se uma crise fiscal, especialmente nas cidades foco da “Go-West Policy”, portanto mais pobres.
Quando se olha para o mercado bancário, além dessas instituições terem “encarteirado” títulos nas tesourarias das incorporadoras, há um pedaço gigante de shadow banking, instrumentos de curto prazo que são vendidos nos bancos, mas não são produtos dos bancos, com rentabilidade muito mais alta do que a poupança, e que estão tipicamente lastreados no mercado imobiliário. Então, se trata de outro risco importante de quebra. Além disso, lá em 2021, o governo desmontou a estratégia de deixar as incorporadoras se endividarem – resultando em uma dívida/PIB gigante – e fazer a roda girar. Mas desmontar essas externalidades tem consequências, e uma pode ser a confiança do chinês em tijolo. Cerca de 60% do estoque de riqueza das famílias que batalharam para dar uma vida melhor para seus filhos está em tijolo, e nesse momento ele viu a riqueza dele recuar cinco anos. Acha que esse chinês hoje está confiante para consumir? O fato é que se quebrou o espírito animal da economia.
Por isso, sempre digo que o caminho para se desarmar essa bomba não é estabilizar o mercado imobiliário, mas aumentar a confiança das famílias. Como? Cuidando de sua percepção de riqueza corrente, com transferência de renda, e futura, com a estabilização no mercado imobiliário, via um “fundo garantidor de tijolo”, somada a uma política previdenciária – que é o que o governo não dá sinais de que fará.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.