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Entrevistas 20 mai 2024
“A melhor abordagem fiscal é separar a discussão Orçamentária estrutural da ajuda ao Rio Grande do Sul”
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Postado por Conjuntura Econômica
Manoel Pires, coordenador do CPFO
Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro
A real dimensão dos prejuízos provocados pelas enchentes do Rio Grande do Sul ainda é uma incógnita, assim como o tempo que levará a reconstrução das estruturas prejudicadas. Na semana passada, em entrevista ao jornal Valor Econômico (link aqui, acesso restrito a assinantes do jornal), os pesquisadores do FGV IBRE Claudio Considera e Juliana Trece ilustraram a potencial dimensão desse evento, indicando que os 397 municípios afetados pelas chuvas (listados até o dia 7 de maio) respondem por 98% da indústria, 91% da economia de serviços, 88% da administração pública e 79% da agropecuária do estado. Conforme o nível das águas baixa, as demandas emergem e enfatizam questões quanto à capacidade fiscal para a reconstrução de infraestruturas públicas, recuperação de empresas e apoio a famílias que perderam casas e fonte de renda. Nesta conversa, Manoel Pires, coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público, defende que, do ponto de vista das contas públicas federais, o ideal é separar a discussão orçamentária estrutural, focada no equilíbrio das contas públicas, da administração dos recursos necessários para reerguer o Rio Grande do Sul. “É preciso criar uma institucionalidade funcional própria para esse evento, que obedeça a lógica dessa situação, com um mecanismo de controle fiscal que seja eficiente”, diz.
Conjuntura Econômica – Como avalia, até o momento, o apoio do governo federal ao Rio Grande do Sul?
Há algumas questões de fundo. A primeira é qual tipo de ajuda precisa ser feito; logo, como operacionalizar isso e quais são as consequências mais a médio e longo prazo. Do ponto de vista de atuação governamental, o que aconteceu no Rio Grande do Sul é relativamente parecido com o que aconteceu na pandemia, quando foi lançado um conjunto de políticas focadas na população afetada e nas empresas. No caso das enchentes, entretanto, vale destacar que a recuperação dos prejuízos levará um tempo maior. Enquanto na pandemia a maior parte da atividade foi retomada assim que o lockdown foi suspenso, reconstruir casas, infraestruturas danificadas pela enchente não acontecerá da noite para o dia. Então, o apoio governamental terá que ser um pouco mais duradouro do que aqueles incentivos que foram feitos por um ano, por exemplo. Para os empresários, retomar os negócios implica ao menos um processo de higienização, organização. Em outras situações, os impactos vão além, com destruição de capital físico como perda de estoques e máquinas. Esses casos vão requerer, provavelmente, suspensão de pagamento de imposto para adequar o fluxo de caixa das empresas, que terão seus custos majorados, e instrumentos de crédito adequados especialmente aos pequenos negócios, que têm menos condições de lidar com um impacto dessa dimensão.
Do ponto de vista das pessoas, quem perdeu o emprego ou atua no setor informal poderá ficar mais tempo sem conseguir trabalhar, afetado pelo mau funcionamento das cidades. Então, poderemos ver políticas como uma ampliação das parcelas de seguro-desemprego. No Brasil, essa é uma política de abrangência limitada, então ainda será preciso tratar com mais atenção a questão de quem está no setor informal, como algum benefício de transferência de renda temporário, que pode ser combinado com a ampliação do Bolsa Família. Diferentemente da pandemia, a enchente pega várias áreas de atuação do setor público, então será preciso um aumento de gasto com a viabilização de serviços de saúde, educação, obras públicas relacionadas a pontes, saneamento, dragagem, possivelmente teremos questões de relacionadas a reequilíbrio de contrato de serviços públicos, entre outras. Vale lembrar que, ponto de vista fiscal, os governos da região ainda vão sofrer com uma queda de arrecadação muito grande, então o fluxo de caixa do governo também vai piorar. Assim, o governo federal terá que ajudar em todas essas frentes, em algum grau.
Levando em conta esse contexto, até o momento, acho que a postura do governo federal tem sido bastante positiva em busca de ajudar os governos locais e a própria população para enfrentar o ocorrido da melhor forma possível. Um ponto importante é divulgar informações corretamente sobre as políticas, para aproximar a população dessas iniciativas. Uma preocupação que eu tenho é que as pessoas conheçam seus direitos para contar com a ajuda oferecida e melhorar sua situação, e não sejam confundidas com as fake News que tem se tornado frequentes.
No caso das empresas, o governador Eduardo Leite já expressou o desejo de criação, pelo governo federal, de um programa nos moldes do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (BEM), lançado na pandemia, que previa a possibilidade de redução parcial ou suspensão total da jornada de trabalho, com diminuição proporcional do salário, em que o trabalhador tinha direito a um benefício calculado com base na parcela de seguro-desemprego a que teria direito se perdesse o emprego. Seria uma alternativa?
Sim, foi uma medida que funcionou bem. Acho que nos próximos dias veremos iniciativas como essas se confirmando, na medida em que os impactos vão ficando mais claros. Por ora, a prioridade foi alocar as pessoas em lugares seguros.
Conforme as áreas alagadas forem sendo retomadas será possível analisar, confirmar a totalidade de municípios que terão decretada calamidade pública e poderão se beneficiar de políticas públicas. Ainda estamos no começo do processo. Outro efeito do qual ainda não se está falando muito é no sistema financeiro, com a perspectiva de um aumento da inadimplência. Na semana passada, o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central aprovaram uma série de resoluções visando amenizar esses efeitos. Por exemplo, mudou-se a regra de classificação de prejuízo para os bancos, visando mitigar uma redução da oferta de crédito (a resolução permite aos bancos não caracterizar como ativo problemático as reestruturações de exposições de crédito afetadas pelas enchentes). Há também a isenção do cumprimento do compulsório, por um ano, de instituições financeiras que tiverem mais de 10% de sua carteira de crédito concedidos a pessoas e empresas estabelecidos nos municípios nos quais se decretou calamidade pública (o efeito previsto com essa medida é uma liberação de R$ 8,3 bilhões).
Também será preciso pensar no impacto nas seguradoras, como é que estão as reservas do setor para poder lidar com esse choque, pois haverá um salto no volume de sinistros. Essa é uma dimensão de médio prazo que certamente se refletirá daqui para a frente na regulação desses setores.
Há estimativas de que as enchentes levarão a uma perda de PIB nacional de 0,4 ponto percentual. Como avalia essas projeções?
Esses cálculos são realizados porque é preciso ter um balizamento do que está acontecendo. Mas ainda estamos conhecendo o efeito dessa crise, mas a extensão do impacto ainda é difícil de ser prevista. Teremos que entender essas projeções como uma primeira aproximação em termos de ordem de grandeza, mas essa perda vai depender muito da duração do problema. Outro aspecto a se destacar é o efeito meio ambíguo que será observado, de queda da atividade num primeiro momento, e o impacto que a própria atividade de reconstrução poderá representar.
Os custos econômicos de um desastre natural são muito heterogêneos, uma pesquisa do FMI de 2016 estudou o impacto 29 episódios e concluiu que o custo fiscal do socorro que envolve reconstrução e apoio às famílias e empresas é da ordem de 1,5% do PIB. Mas, como mencionei, isso é muito heterogêneo dependendo do estrago deixado e também do vínculo que os governantes desenvolvem com o evento o que traz um sentido de responsabilidade maior.
Hoje analistas expõem na mídia a preocupação quanto a como o governo federal irá equacionar a necessidade de ajuste fiscal com a demanda gerada pela tragédia gaúcha. Como considera que esse tema deve ser monitorado?
Muito provavelmente as equipes do governo ainda estão analisando a evolução do quadro para bater o martelo quanto a medidas e valores necessários. O que há de efetivo, por enquanto, é a Medida Provisória (MP 1218/24) que abre crédito extraordinário de R$ 12,2 bilhões no Orçamento de 2024, a suspensão do pagamento da dívida do governo do Estado por três anos e alguns aportes de recursos em fundos garantidores de crédito para apoiar empresas. Outras políticas, por enquanto, antecipam recursos que já estavam previstos no orçamento.
Quanto à questão da restrição fiscal e de alocação adequada do gasto, é preciso tomar cuidado. Ter zelo com as contas públicas vale para qualquer situação. No mundo real, as coisas terão o nível de eficiência a que conseguimos chegar, é assim que vai funcionar. No plano estrutural da questão fiscal, os temas a serem tratados não mudam: a queda de arrecadação observada nas últimas décadas, problemas de gasto público que são evidentes, como a questão do sistema previdenciário e o alto grau de vinculações de receita que estão pressionando arcabouço. Tudo isso está posto, e foi analisado recentemente em artigo do pesquisador Braulio Borges, do CPFO (leia aqui). Da mesma forma, será preciso cuidado na gestão da ajuda extraordinária, que vai ser temporária. A melhor abordagem, inclusive, é separar essas duas dimensões: ter um processo para lidar com as questões do Orçamento que continuará sendo liderado pela equipe econômica, e outro para atender às demandas do Rio Grande do Sul, com um orçamento apartado, com sua lógica própria, suas regras próprias, e sua forma de fiscalização própria. Isso será mais transparente, flexível e tempestivo.
Nesse campo, aliás, há uma discussão que considero positiva é a de envolver o TCU em um mecanismo de controle e avaliação. Acredito que seria importante envolver outros atores, pois haverá muito aprendizado nesse processo que esse não parece um evento isolado. É importante contar com uma supervisão mais ampla desse processo, com um conjunto de regras específicas que o tornasse mais efetivo. Esse comitê poderia cobrar comprovações do governo executor, estadual e municipal, sobre a aplicação de recursos, seja de ampliação do Bolsa Família, seja para reconstruir uma escola afetada pela enchente. É importante que o dinheiro chegue a quem precisa.
Sobre regras específicas lembro que durante a pandemia, o governo teve que suspender o Auxílio Emergencial para obedecer ao teto de gastos e demais regras orçamentárias. Isso gerou insegurança enorme e depois o governo retomou a política mudando o teto. Esses eventos não respeitam o princípio da anualidade de alguns dispositivos orçamentários. Seria importante desenvolver uma lógica própria, porque a situação é muito urgente.
Total de recursos do governo federal destinados ao Rio Grande do Sul
(publicados no site Brasil Participativo até dia 19/5)
Suspensão de pagamento da dívida do RS
Fonte: Governo Federal/Brasil Participativo.
O governo federal criou o Ministério Extraordinário de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, sob o comando de Paulo Pimenta, mas a avaliação dessa iniciativa por ora tem se concentrado no âmbito político...
Acho que é importante ter uma estrutura com equipe dedicada a essa tarefa, e é preciso alguém que conheça a região e tenha interlocução de alto nível no Governo Federal, caso contrário, não terá sucesso em levar as demandas dos governos gaúchos, municipais e estadual. Espero que funcione. É preciso criar uma institucionalidade funcional própria, que obedeça a lógica dessa situação, com um mecanismo de controle fiscal que seja eficiente e apropriado a esse problema. E, como mencionei, é preciso pensar a questão fiscal contextualizando que são temas que devem ser tratados à parte. Assim, abandonamos a ideia de querer comparar a situação fiscal de agora com a da pandemia, ou mesmo quanto ao arcabouço fiscal de antes e o atual. A situação do Rio Grande do Sul é algo que tem de ser tratado separadamente, fora da regra fiscal, pois cada crise tem sua lógica. Na pandemia, por exemplo, suspendeu-se as regras fiscais por um ano e quando voltou os efeitos da pandemia ainda não haviam sido exauridos e a gestão foi dificultada.
Ainda do ponto de vista fiscal, levando em conta as estimativas de que eventos climáticos extemos tendem a ser mais frequentes, como considera que esse tema deve ser tratado mais a longo prazo?
Aí temos duas grandes questões. A primeira é como eu reduzo a vulnerabilidade do mundo às consequências do aquecimento global. Por enquanto, o debate sobre transição ecológica no mundo ainda está muito no campo da retórica. Como esse é um assunto de longo prazo, estamos sempre presos com as emergências do curto prazo, e não se consegue tomar decisões – e isso vale para o mundo inteiro. Ainda se faz pouca coisa para reverter esse processo. Os avanços acontecem conforme se aumenta o sentido de urgência sobre o tema.
Trata-se de uma agenda intensiva em recursos públicos, envolve áreas em que é difícil ver o setor privado entrando primeiro, pois gera custo. Então, é preciso desenvolver mecanismos fiscais, desenhos de política pública que garantam o financiamento apropriado, e que hoje não temos disponíveis. Novamente, isso vale para o mundo inteiro. Depois da crise financeira de 2008, e logo a pandemia, vemos governos altamente endividados, e resolver a crise climática implica mais endividamento no curto prazo. Então, essas decisões não são tomadas, seja por conta do elevado impacto fiscal que elas implicam e ninguém está muito preparado para isso, seja por conta do fato de que aparentemente todo mundo trata esse problema como sendo um problema de longo prazo, que vai bater no próximo governo e não no meu.
Tomando especificamente o caso do Brasil, temos uma série de desafios orçamentários. Não é só a questão da rigidez, mas também à questão previdenciária. Muitos especialistas já falam de uma nova reforma da Previdência, porque os gastos com aposentadorias e pensões continuam crescendo, bem como os gastos com saúde e educação, além da questão da vinculação de benefícios com um salário mínimo cujo reajuste permite ganhos reais. Com isso, algumas políticas públicas tradicionais acabam ocupando cada vez mais espaço no orçamento, e ficamos sem espaço para incluir outras despesas.
Não à toa surgiram agora críticas sobre a falta de recursos públicos para combater catástrofes, mitigação das mudanças climáticas. Nesse sentido, resgatar a ideia de um fundo é importante (desde 2012 o Brasil conta com o Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil – Funcap - que seria formado por recursos do orçamento da União, doações e multas por crimes ambientais, mas ainda não foi regulamentado).
Durante o Governo Dilma criou-se o Fundo Social com recursos do petróleo que já prevê aplicação para mitigação e adaptação às mudanças climáticas. É apropriado utilizar recursos da exploração de petróleo para financiar respostas à mudança climática, inclusive já naturalizando esse uso para combater as externalidades negativas que esse tipo de exploração gera. O mesmo com as demais atividades extrativas, incluindo os novos minerais da transição energética. Pode-se aprovar uma nova regulação no sistema de tributário para isso. O importante é que esse instrumento seja concretizado, pois é nítido que com o tempo vamos precisar de uma quantidade cada vez maior de recursos públicos para esse fim, que precisam ser poupados para esses episódios. Recentemente, uma fiscalização do TCU de meados de 2023 indicou que o Fundo Social tem sido esvaziado. É preciso corrigir isso.
Inscreva-se no X Seminário de Política Monetária, que contará com a presença do presidente do Banco Central e economistas convidados. Na ocasião será prestada uma homenagem ao professor Affonso Celso Pastore, falecido recentemente.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.