Em Foco

Manoel Pires, coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público (CPFO)

 

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Qual sua avaliação sobre a má reação do mercado diante do pacote fiscal do governo? Houve excesso?

Diria que existem três aspectos principais para se analisar essa reação, que vão além do risco fiscal: de timing, a incidência da tributação em si e outro macroeconômico.

Do ponto de vista do timing, o governo passou vários meses dizendo que iria apresentar um pacote de ajuste fiscal concentrado em gasto, buscando a redução de juros e apreciação do câmbio, mas o que o governo apresentou foi uma coisa diferente. Mercado não gosta de surpresa, em particular a parte do mercado que apostou no anúncio do governo e que se posicionou aguardando uma redução de juros, uma apreciação do câmbio, teve que reverter sua estratégia e mudar sua alocação de recursos. Então o câmbio deprecia, a taxa de juros sobe, e nesse momento o mercado se protege porque não era o que ele esperava. Essa é a primeira questão, fruto do erro de timing do governo ao anunciar a reforma do imposto de renda, misturando com a discussão que ele tinha preparado há tantos meses para produzir o efeito que ele desejava.

Sobre a questão tributária, o governo propôs desonerar a tabela do Imposto de Renda (IR) para quem ganha até R$ 5 mil, e vai pagar essa desoneração com uma alíquota mínima sobre o IR para pegar as pessoas mais ricas do país, que tem uma carga tributária baixa do ponto de vista distributivo. Temos muita regressividade no IR por conta do desenho do imposto, então essa iniciativa é louvável. O problema é que essa medida tem um efeito colateral, porque boa parte da redução de carga tributária que temos hoje decorre de isenção de LCA, de LCI, de alguns tipos de debêntures, como de infraestrutura, além da isenção na distribuição de lucros e dividendos. Essa mudança impacta o mercado, pois se trata dos incentivos para alocação da poupança da economia. A mudança mexe na política de investimento, no retorno de ativos.

Apesar de distributivamente ela ser correta, a incidência recai mais fortemente sobre o mercado, que precisa reavaliar toda a estratégia de investimentos. Dou um exemplo. Tem um resultado famoso em finanças que diz que o preço de uma ação é o valor presente dos dividendos que o acionista recebe. Ou seja, você só investe naquela empresa se ela garante um retorno condizente com o investimento que se está fazendo. Se você tributar dividendo, estará diminuindo o retorno do investidor. Então o preço da ação vai cair, porque a ação vai ficar menos atrativa. Uma pessoa que compra uma LCA com uma expectativa de retorno, se começar a ser taxada, ter de pagar imposto de renda, passará a cobrar um juro mais alto para fazer o mesmo investimento. Então, o que acontece no final das contas é que uma parte dessa tributação adicional acaba impactando as taxas de mercado, e você tem um pouco mais de juros. Isso significa que a parte tributária do pacote do governo recai de uma maneira importante sobre o mercado, e por isso ele reage mal a esse tipo de discussão. Esse efeito independe do timing do assunto. Em 2021, o então ministro da Economia Paulo Guedes tentou fazer uma reforma muito parecida, propondo tributar dividendos, acabar com o Juros sobre Capital Próprio (JCP). Nos dez dias seguintes à entrega da proposta ao presidente da Câmara o câmbio depreciou quase 30 centavos. Ou seja, atribui-se o atual movimento do câmbio a risco fiscal, mas há muito mais coisa envolvida. De fato, há um risco político na tramitação dos projetos, a isenção pode andar mais rapidamente do que a compensação, que pode sair diluída. Mas não é tudo.

Ainda tem o terceiro aspecto, que é macroeconômico. A economia está crescendo acima do potencial, o desemprego está caindo, e já tem pressões inflacionárias. Então, o que a economia pede hoje é ajuste fiscal, não mais estímulos. O que a proposta do governo faz é o seguinte: tributa poupança, e com essa arrecadação a mais, estimula consumo, desonerando a população de classe média baixa do país. Isso é mais demanda agregada e mais pressão inflacionária à frente. Se o cálculo é de pressão inflacionária mais alta, o mercado antecipará juros mais alto lá na frente.

Como mencionei, o risco fiscal é um ingrediente de um cenário muito mais complexo, do qual pouco se está falando.

Considera que faltou intensidade nas medidas propostas pelo governo?
Concordo que, em alguns casos de medidas que dependem de aprovação de uma emenda constitucional, não faz sentido enfrentar o custo político gigante de uma PEC para uma economia pequena. É o caso do abono salarial: a proposta ficou tímida, diante da decisão política de mexer nesse benefício. Não me parece que a relação de custo benefício justifica apesar de ser necessário mexer nessa política. Talvez a melhor solução fosse fazer algo um pouco mais significativo nesse caso. Mas sabemos que a piora das condições financeiras deu certo sentido de urgência para o pacote, mesmo sabendo que ajustes estruturantes são processos. Com a experiência que o tempo dá, não se podia esperar que o pacote resolvesse todo o problema fiscal de uma vez. É muito provável que o governo tenha que anunciar novas medidas, pois precisará mais do que R$ 30 bilhões no ano que vem para cumprir a meta. E mesmo sobre a economia esperada com o atual pacote, o calendário não ajuda. Já estamos em dezembro, então é difícil aprovar essas medidas a tempo de surtir o efeito para o ano cheio.

Por outro lado, o pacote mexe em coisas que não tinha visto antes, como transformar uma despesa obrigatória, os subsídios, em despesa discricionária. Este ano, a conta de subsídios prevista no orçamento supera os R$ 23 bilhões. Transformá-la em programação discricionária é uma decisão bastante significativa. Se o governo precisar cumprir a meta, ele poderá contingenciar essa despesa com subsídio, no lugar de outras políticas que sempre sofreram com contingenciamento. Geralmente, setores com poder de lobby sempre buscaram transformar o seu orçamento numa despesa obrigatória para não sofrer com contingenciamento. Não sei como isso será operacionalizado, mas é um movimento importante do governo, de buscar reverter essa tendência de engessamento do orçamento público.

Como avalia o risco fiscal apontado na medida de desvinculação do superávit financeiro dos fundos?

No passado, quando esses fundos eram desvinculados, eram direcionados para pagamento da dívida pública. Desta vez, a proposta não dá destinação específica para essa desvinculação. Por isso, apontou-se o receio de que esse dinheiro seja direcionado para o BNDES, para ampliação do crédito subsidiado. Para se analisar de fato esse risco, é preciso organizar a discussão.

Primeiro, vale explicar o que é superávit financeiro: o montante não gasto de um fundo, ao virar o exercício, se transforma em superávit financeiro. Como o dinheiro é vinculado, o Tesouro não tem como usar esse dinheiro para qualquer outra finalidade. Isso gera uma ineficiência de gestão enorme, porque o Tesouro às vezes tem que emitir dívida para pagar, por exemplo, a Previdência, que é deficitária, e não pode usar um recurso que ele tenha em caixa. Por isso essa desvinculação é feita de tempos em tempos, não é estranha. A única questão, desta vez, é a falta de direcionamento para pagamento da dívida.

Aqui, entretanto, é preciso destacar alguns pontos. O primeiro é que alguns dos fundos que foram desvinculados já fazem operação com o BNDES, então é difícil imaginar que o governo esteja desvinculando um fundo que já opera com benesses, para depois repassar o dinheiro, mesmo que a desvinculação permita uma aplicação mais ampla para o banco. Sendo assim, é natural imaginar que a intenção do governo seja fazer as duas outras coisas possíveis com essa desvinculação: ou pagar dívida, ou usar o recurso em caixa para custear despesas que já existem, como a da Previdência, que citei como exemplo.

Tem ainda outra questão, referente à natureza financeira dessa operação. Digamos que haja um montante livre em um fundo, e o governo decide usá-lo para pagar dívida.
O que acontece com a economia? Ao injetar dinheiro na economia com esse pagamento, aumenta a liquidez. Logo, o Banco Central precisa enxugar essa liquidez para não perder o controle da taxa de juros, emitindo dívida – a chamada operação compromissada. Assim, o fato de o governo usar o dinheiro para pagar dívida não quer dizer que a dívida vá diminuir. O determinante da dívida é o tamanho do déficit e dos juros pagos e não a forma como o déficit é custeado. Para reduzir dívida, é preciso reduzir déficit. Assim, a pressão para que esse dinheiro seja usado para pagar dívida não se justifica. Trata-se apenas de gestão financeira.

Quanto ao BNDES, ainda há outro ponto a se considerar. Quando o BNDES pega dinheiro de um fundo, do FAT ou do FMM, fica lá o registro no ativo do fundo de que esse recurso foi direcionado para o BNDES, e depois é preciso pagá-lo com juros. Como não há baixa no ativo, ele continua no fundo público, não há impacto primário. Trata-se de uma despesa financeira. Com a desvinculação, entretanto, se o governo encaminhar esse recurso para o BNDES, vai gerar impacto primário, pois é como se tivesse capitalizando o banco. Assim, esse uso terá restrições, pois muito provavelmente vai gerar um constrangimento enorme para o cumprimento da meta primária e do teto de gastos. Se optar pela via financeira, será necessário lei específica e incluir no orçamento, a relação não é direta. Apesar da repercussão que o tema tem gerado, se observarmos bem a natureza dessa operação, fica difícil enxergar que o intuito do governo seja esse. O mais provável é que esteja interessado em ter um fluxo mais adequado no caixa para fazer gestão da dívida ou para pagar as despesas que já estão contratadas. 

Há quem aponte que medidas como a prorrogação da Desvinculação das Receitas da União (DRU) não representam corte efetivo de gastos, o que ampliaria as dúvidas quanto à economia projetada pelo governo. Qual a sua análise?

No caso da DRU, ela tem um efeito muito parecido com a discussão dos fundos, que é desvincular os recursos da União para melhorar o fluxo de caixa e facilitar o pagamento das despesas do governo. Nesse caso, entretanto, ela atua na elaboração do Orçamento, enquanto a desvinculação dos fundos acontece depois da execução do Orçamento. Historicamente, a DRU não tem muito impacto, por isso muitos rapidamente atribuíram valor zero a essa medida. A questão que esses analistas desconsideraram é que, desta vez, a DRU terá impacto maior, de gerar economia de fato. A diferença é que de alguns anos para cá determinados fundos passaram a ter obrigatoriedade de execução. Assim, com o corte de receita representado pela desvinculação, naturalmente haverá uma despesa menor e, portanto, uma economia. Houve ainda uma ampliação do escopo de atuação da DRU, para pegar também algumas receitas patrimoniais que também podem gerar impacto relevante. Isso muita gente ainda está subestimando. Como exemplo, olhei os números relativos ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) disponíveis no Portal da Transparência e que havia deixado a partir de 2021 de ser contingenciável. Este ano, o Orçamento previu R$ 12,3 bilhões, dos quais R$ 11,9 já foram empenhados e R$ 9,5 bilhões já foram pagos. Em 2021, por exemplo, dos R$ 7,3 previstos no Orçamento, somente R$ 1,3 bilhão foram pagos. Essa DRU gera alguma economia.

Como avalia a mudança na regra de reajuste do salário mínimo?

Como já mencionei em entrevista, não é trivial que o governo tenha tomado a decisão de reverter uma política que ele mesmo fez há tão pouco tempo.
É uma coisa muito rara. Isso reflete algum compromisso com as regras fiscais. O salário mínimo tem impacto grande nas contas da Previdência, BPC, seguro-desemprego, abono salarial. Como se trata de despesas obrigatórias, ao crescer muito acima do permitido pelo arcabouço, o governo teve que ajustar a fórmula do mínimo. É um item importante dessa pauta, e o que vai gerar maior impacto, ao vincular a regra a alguns parâmetros do arcabouço. Este prevê que a despesa cresce aplicando-se o fator de 70% sobre a receita líquida ajustada, que é um conceito especial de receita, além de fixar um mínimo de 0,6% e um máximo de 2,5%. O que o governo fez foi manter a regra atrelada ao PIB, garantindo sempre um reajuste real positivo nos limites do arcabouço, de 0,6% a 2,5%, até os 70% da RLA. Então, por exemplo, se o PIB crescer 2%, mas os 70% da RLA for 1,5%, o aumento será de 1,5%. Como agora você tem uma banda móvel, a regra vai gerar economia para o governo, mas ao mesmo tempo ficou mais complexa, perdendo um pouco a funcionalidade que tinha de gerar previsibilidade para empresas e trabalhadores.

Recentemente foi lançado estudo de sua coautoria sobre gastos tributários brasileiros, tratando não só de seu aumento – de 2,3% do PIB em 2002 para 6,9% em 2024, somados os âmbitos federal e estadual – como de seus problemas de transparência e avaliação (leia mais aqui). Como avalia o tratamento desse tema no atual debate do ajuste?

Nesse trabalho, falamos da importância de se aprimorar a compreensão sobre esses gastos para melhor estimar o impacto desses benefícios, o que passa pela adequada mensuração, avaliação, e também por montar um sistema de governança e controle adequado. Na discussão do ajuste, o peso maior recai sobre o controle, e acho que o pacote poderia ter avançado um pouco mais nesse tema.
Sabemos que há gastos tributários muito difíceis de serem revertidos num curto espaço de tempo, mas outros sequer fazem parte do debate público.
No pacote do governo, foi apresentada uma proposta limitando a isenção de imposto de renda a portadores de doenças graves. Como é uma política que depende de avaliação médica, é mais difícil de controlar e fiscalizar, e há estudos que apontam ser alvo de muita fraude. De acordo à Receita Federal, essa política custa R$ 20 bilhões ao ano, portanto é importante avançar em seu aprimoramento. Apesar de ser um campo onde há muito a ser feito, há que se reconhecer que este governo tem atacado diversas questões. Uma delas, implantada este ano, é a Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária (Dirbi) que as empresas devem fazer, colaborando para a geração de um grande debate público em torno dessas renúncias.

É possível ter surpresas quanto à disposição do Congresso em aprovar esse pacote fiscal?

O governo tentou fazer um pacote em que ele pudesse oferecer uma visão mais ou menos equilibrada sobre onde o ajuste deve recair. Nesse aspecto dois itens chamam a atenção, pois envolvem setores sempre protegidos na discussão de ajuste fiscal. Um é a questão da tributação mínima, que gera impacto no mercado, e o outro é do subsídio agrícola. Sob esse ponto de vista, acho que o governo conseguiu distribuir o ônus do ajuste entre vários segmentos, tornando-o mais palatável.
Isso é importante, mas obviamente sempre existe a possibilidade de o pacote desidratar na tramitação. Por outro lado, vale lembrar das vezes em que o Congresso ajudou no processo, como aconteceu na reforma da Previdência, e mesmo na questão a desoneração da folha de pagamento. Apesar da relutância em por fim a essa política, o Congresso aceitou uma reversão gradual, indicando inclusive fontes de receita para para compensar o orçamento público esse ano. Setores mais atingidos serão mais relutantes, mas é um primeiro passo para se abrir uma discussão importante, cujo resultado final também refletirá a visão do Congresso.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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