Conheça como a tecnologia brasileira tem ajudado no desenvolvimento de projetos de hidrogênio verde do país

Daniel Lopes, diretor comercial da Hytron

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Na semana passada, o Ministério de Minas e Energia (MME) anunciou uma ampliação de quase sete vezes nos investimentos anuais em P&D para o hidrogênio de baixa emissão de carbono – de R$ 29 milhões em 2020 para R$ 200 milhões ao ano em 2025. Vários projetos começam a aflorar no Brasil em torno do chamado hidrogênio verde, e por trás de vários deles há a assessoria da Hytron, empresa criada em 2003 por cinco estudantes de doutorado da Unicamp, responsável pelo eletrolisador de onde saiu a primeira molécula de hidrogênio verde do Complexo de Pecém, no Ceará, no final de 2022. Em conversa para a Conjuntura Econômica, Daniel Lopes, um dos fundadores da Hytron, fala sobre os desafios de pesquisa e desenvolvimento industrial no Brasil e das perspectivas para colocar o país entre os líderes mundiais na geração de hidrogênio verde.

Como a Hytron começou?

A Hytron foi criada em 2003, com foco em tornar produto o que estávamos desenvolvendo no laboratório de hidrogênio da Unicamp, onde eu e os outros quatro sócios fazíamos doutorado. No laboratório, sempre prevaleceu o foco no mercado, e começamos buscando atender os projetos do laboratório de hidrogênio. Ainda lá, em 2002, conseguimos recursos para nosso primeiro projeto de P&D incentivado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), para geração distribuída de energia para a CPFL. Para o projeto, existia a necessidade de fornecimento de um reformador de gás natural, que compunha uma rede de geração distribuída. (reformadores são equipamentos que produzem hidrogênio a partir de um combustível hidrocarboneto, enquanto os eletrolisadores produzem hidrogênio a partir da quebra da molécula da água usando eletricidade)

Naquele momento, a ideia era adquirir um reformador de pequena escala para produção de hidrogênio e geração de eletricidade com célula a combustível. Tentamos comprar de todo jeito, mas quem fabricava fora do país não queria vender, devido à inteligência que tinha por trás. Quando nos deparamos com isso, entendemos que o grupo que estava  preparado para começar do zero aquela pesquisa era o do próprio laboratório. E foi a partir dessa dificuldade que tivemos a ideia de criar a Hytron.

Agências internacionais apontam que o mundo ainda não desenvolveu todas as tecnologias necessárias para se chegar a uma economia neutra em emissões de gases do efeito estufa. Considera que o Brasil pode contribuir para esses desenvolvimentos?

É justo dizer que temos muita coisa pronta no Brasil, com universidades e institutos de pesquisa muito bem-preparados. Em alguns momentos, desenvolvemos projetos até melhores do que fora do país. As limitações de recursos fazem com que muitas instituições lidem com a pesquisa de forma criativa, e o que conseguimos fazer com os recursos que temos nos traz um diferencial significativo também. Mas sempre é necessário ter mais recursos para a inovação, e acho que está chegando um momento em que as expectativas globais em torno da transição energética estão mudando, com o entendimento do uso do hidrogênio como um dos vetores que também pode viabilizar essas metas. O Brasil, que tem combustíveis renováveis, pode entrar com uma contribuição importante.

Projetos de pesquisa bem-sucedidos têm de ultrapassar o chamado vale da morte, onde a garantia de financiamento é fundamental. Qual foi o da Hytron?

Foram vários os pontos de inflexão, pois cada fase da empresa traz diferentes dificuldades. Ao menos por três vezes corremos o risco de acabar. Uma dificuldade que permeou nossa atividade ao longo do tempo foi a inconstância dos investimentos. O mesmo que acontece em todas as instituições de pesquisa: mudanças de governo, por exemplo, geram variações, o mercado trava à espera de quando entra a nova gestão. Isso trouxe inconstância e dificuldade de manutenção da equipe, por exemplo. Além disso, fazer inovação industrial é totalmente diferente de um desenvolvimento de software. Enquanto para este são necessários pessoal qualificado e computadores, no nosso caso há uma demanda mais complexa, com mais infraestrutura e equipamentos.

Quando decidimos sair da Unicamp, era preciso, por exemplo, encontrar uma sede que nos permitisse testar equipamentos que são relativamente grandes, do tamanho de um contêiner. Além disso, para se trabalhar com hidrogênio é preciso atender algumas características como a de um telhado aberto, pois o hidrogênio é menos denso que o ar e, se há algum vazamento, é preciso garantir esse escape. Não havia opções já prontas, e somente essa infra nos demandou um investimento em torno dos R$ 3 milhões, financiados por linhas de crédito que nós, naquele momento bolsistas, decidimos tomar.

Esse processo durou cerca de três anos, e conseguimos nos mudar em 2015. Houve um viés de atrevimento forte, mas, à medida que fomos evoluindo, os desafios e as dificuldades foram nos aproximando de parceiros que colaboraram para alavancar a Hytron. Veja, quando nossa empresa surgiu, ainda não havia um ecossistema de financiamento bem definido – por exemplo, conceitos de tipos de financiadores para cada etapa de um negócio como anjo, venture capital – e tivemos que entender na medida em que tudo foi acontecendo. Outra questão é que, quando estamos à frente de projetos de P&D, como da Aneel e da Agência Nacional de Petróleo (ANP), se trata de uma atividade que não pode envolver lucro. O primeiro eletrolisador que vendemos no modelo comercial de fato, em 2018, também era para um projeto de pesquisa de P&D da Cesp, mas no qual não tínhamos envolvimento na concepção. Tivemos de competir, mas dessa vez na condição de fornecedores – e foi uma disputa com empresas internacionais, na qual fomos competitivos para ganhar.

Em conversa para a Conjuntura Econômica (leia aqui), o ex-secretário de Desenvolvimento do Ceará, Maia Júnior, nos contou que a semente do projeto de criação de um hub de hidrogênio verde no estado saiu de uma reunião que teve com sua empresa. Como foi esse processo até chegar à produção da primeira molécula de hidrogênio verde no Complexo do Pecém, no final de 2022?

Nessa época, estávamos envolvidos, a convite do Ministério de Ciência e Tecnologia, na estruturação da iniciativa ProQR (promovendo Combustíveis Alternativos sem Impactos Climáticos), parceria de uma empresa federal alemã (GIZ) com o governo brasileiro, na área do hidrogênio. Quando o projeto passou a procurar o apoio de estados, pedi para apresentá-lo no Ceará, levando em conta pontos convergentes do estado com a iniciativa, como sua posição geográfica e geração de energia limpa (eólica e solar). Conheci no mesmo dia o time técnico da Secretaria – todos de altíssima qualidade, com nível de doutorado, muitos deles fora do país –, e assim começou.

O eletrolisador instalado na EDP Brasil (com capacidade de produzir 250 m3/h, no qual a empresa investiu R$ 42 milhões), alimentado por geração fotovoltaica três vezes maior do consumo do eletrolisador, nos trouxe um importante aprendizado. Dentro do setor elétrico, não existe outra forma de geração que esteja mais próxima da realidade de produção do hidrogênio do que as térmicas. Se observar, respeitadas suas devidas complexidades, na energia eólica não se converte o vento em nada que não seja energia cinética; na hidrelétrica, a mesma coisa; e na solar, entra sol e sai eletricidade. A térmica, por sua vez, também demanda combustível – carvão sólido, que produz gás, que produz vapor, que move turbina. Na hora em que se compara as disciplinas que estão dentro de uma usina térmica com as que estão numa usina a hidrogênio, percebe-se que se trata de um setor pronto para operar a geração de hidrogênio. Por exemplo: um eletrolisador precisa de água tratada: eles têm; precisa de gerenciamento térmico: uma termelétrica faz isso numa escala muito maior. Para mim, foi impressionante quanto eles estavam preparados do ponto de vista de engenharia. O hidrogênio gerado na EDP deve reduzir a quantidade de diesel usado na chama-piloto, mas há várias outras possibilidades que estão sendo estudadas.

Hoje a Hytron é uma empresa global, de capital alemão. Como avalia o desenvolvimento desse mercado?

De fato, em 2020 avaliamos que já tínhamos levado a Hytron para o nível máximo que conseguiríamos sozinhos. A Siemens e a Thyssenkrupp começavam a introduzir no Brasil a questão do hidrogênio, e aí vimos que seria difícil alcançar um nível acima sem uma fusão ou aquisição. Avaliamos alguns parceiros, e chegamos à Neuman & Esser Group (NEA Group), com quem já tínhamos parceria, pois a empresa comprimia o hidrogênio que produzíamos.

Temos ajudado a estruturar muitos programas, apoiado várias iniciativas sérias, diretamente com alguns governos, indiretamente com associações em que somos sócios, como a de máquinas e equipamentos (Abimaq) ou suporte a partir de Abeeólica (eólica) Absolar (fotovoltaica) e Abiogás (gás natural). Tal como no Ceará, ajudamos o governo de Minas Gerais a criar o programa Minas do Hidrogênio. E agora temos o apoio do governador Tarcísio de Freitas para um programa em São Paulo. Para nós, é uma experiência nova, é como um ímã, um ecossistema em que você doa e recebe ao mesmo tempo. Hoje, os projetos que a Hytron está discutindo somam em torno de R$ 120 milhões de reais. Tenho visitado muitas empresas, indústrias, e vejo quanto estamos preparados. Há uma atmosfera positiva, com cada setor se questionando qual o  papel de cada um.

No campo internacional, aproveitamos a capilaridade da NEA, que está em dez países, para a fabricação de equipamentos desenvolvidos pela Hytron. Temos focado estrategicamente Europa – acabamos de vender mais um equipamento para a Alemanha – Estados Unidos e América Latina, com projetos na Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Colômbia, estes dois últimos com projetos mais firmes. O mercado está amadurecendo. Hoje, a maior parte da demanda ainda é de setores querendo entender o todo, e uma pequena parte é que deve virar contrato, com a gente ou não. Ano que vem, queremos dar mais atenção a China, Índia e Japão.

O que considera fundamental para que o Brasil desenvolve o mercado de forma competitiva?

Além da questão da demanda, da qual todos falam, considero importante que se compreenda que a eletricidade para a produção de hidrogênio de baixo carbono tem que ser vista como um insumo, e ter custo de insumo. Não faz sentido, por exemplo, produzir hidrogênio a partir do etanol pagando o preço da bomba de combustível, porque se trata da mesma fase de agregação de valor, tal qual o carvão para uma usina térmica. E o custo do insumo – seja eletricidade na eletrólise, seja etanol na reforma – representam de 50% a 80% do custo de produção do hidrogênio. Ou seja, ainda que com avanço tecnológico o Capex tenda a baixar, o grande impacto no custo hidrogênio ainda é o da eletricidade.

Está claro que, para atrair a demanda, é preciso garantir um custo atrativo. O que considero dizer é que quem produzir o hidrogênio abaixo de US$ 2,5 o quilo vai sair na frente. Qualquer off-taker que acesse um valor desse para baixo vai querer esse negócio. Por enquanto, o mercado está se resolvendo, com projetos se estruturando verticalmente, gerando sua própria energia. Mas o Brasil pode aproveitar o que já tem pronto e propor que, ao invés de se construir uma solar, uma eólica para consumo próprio, se construa para o país, aumentando a renovabilidade da rede, reduzindo a dependência das térmicas, caminhando junto.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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