Como usar as compras governamentais para impulsionar a competitividade

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Na Conjuntura Econômica de fevereiro, José Roberto Afonso, professor do IDP, e Philip Yang, fundador do Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole (Urbem), tratam em artigo de como as compras governamentais, se devidamente articuladas, podem se transformar em vetor de crescimento e competitividade. Para se ter uma ideia, em 2023 essas compras consolidadas nas três esferas (federal, estadual e municipal), par consumo corrente e capital fixo, foi de R$ 727 bilhões, ou 6,6% do PIB. “O Governo geral brasileiro é dos maiores do mundo, dos que mais compram, e pode usar esse poder de importação para tentar atrair para o país desde a instalação de datacenter, que armazene os seus dados, até a fabricação de medicamentos, dos mais demandados pela rede pública”, afirma Afonso, em conversa para o Blog.  Do total contratado em compras, os municípios são responsáveis por metade. “Mesmo nas pequenas prefeituras, já há experiências de compra de insumos, por exemplo, para merende escolar em que se procura o mais próximo da comunidade. Creio que se pode evoluir para capacitação e contratação de outros profissionais, inclusive na área de TI”, cita Afonso.

No texto, Afonso e Yang destacam o tamanho do mercado brasileiro como importante poder de barganha para a negociação de contrapartidas em prol de benefícios como transferência tecnológica, entre outras contrapartidas que colaborem para o desenvolvimento local, através de programas conhecidos como offsets. Um dos exemplos bem-sucedidos nesse campo, citam, foi o “acordo que governo brasileiro estabeleceu para a transferência completa da tecnologia de produção de vacinas humanas de última geração, nos anos 1990, como contrapartida da compra das vacinas por prazo de cinco anos”.

No texto, os autores reconhecem avanços institucionais no setor de compras governamentais, da criação do portal ComprasNet nos anos 1990, por onde o governo realiza processos licitatórios e pregões eletrônicos ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), de 2003 e a Lei de Licitações e Contratos em 2021, que substituiu a Lei de Licitações e deu origem ao Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP). “Maior avanço da nova lei foi criar um portal nacional para reunir e disseminar dados sobre os processos que se passam por todo país, que é fundamental dada sua dimensão continental e profunda descentralização da administração pública”, diz Afonso. Mas defendem que é possível avançar muito mais em estratégias para explorar os potenciais implícitos nessas compras, “sabendo se identificar e combinar claramente prioridades e interesses nacionais no âmbito técnico-tecnológico, social, educacional, numa escala de prioridades”, dizem, transformando essas compras em “uma ferramenta sistêmica de uso do poder de mercado do setor público”. Os autores defendem que, para uma experiência bem-sucedida, é preciso visão clara das prioridades. “Não se trata de criar uma central dirigista de compras governamentais. Trata-se exclusivamente de criar diretrizes estratégicas, capazes de a um só tempo abrir o mercado brasileiro e condicionar o aumento da concorrência aos interesses permanentes do país, tendo (e utilizando) como recurso de poder o tamanho do nosso mercado”, afirmam.

A convite do Blog, Yang também respondeu algumas perguntas sobre o artigo, transcritas a seguir:

Em quais segmentos considera que o governo poderia tirar mais proveito das compras governamentais – levando em conta ganhos potenciais com programas de offset ou mesmo atração de empresas?

No passado, o Brasil explorou as compras governamentais (CG) no setor de defesa e aeroespacial. Mas a transição digital e a transição verde abrem oportunidades em diversos outros segmentos. 

Por exemplo, o governo pode usar suas compras para acelerar a transformação digital, garantindo maior eficiência e transparência nos serviços públicos mediante a aquisição de sistemas de gestão pública inteligentes, com a exigência de softwares e plataformas integradas com vistas a estimular o desenvolvimento de soluções nacionais e a impulsionar certos segmentos da indústria de TI no Brasil. China e Índia usaram com inteligência esses mecanismos para chegarem onde estão. 

A compra de sistemas de inteligência artificial e automação pode reduzir custos operacionais e melhorar a prestação de serviços ao cidadão. Licitações para sistemas de proteção de dados poderiam exigir centros de pesquisa e capacitação em segurança digital no Brasil, reduzindo vulnerabilidades. No âmbito da computação em nuvem e data centers, o governo pode direcionar aquisições para fortalecer empresas de infraestrutura digital e reduzir a dependência de servidores estrangeiros.

No campo das cidades, os alvos naturais se situam no campo da infraestrutura e mobilidade urbanas. Governos municipais podem direcionar compras e concessões para tornar as cidades mais eficientes, sustentáveis e tecnológicas. Licitações de semáforos e sensores inteligentes podem induzir o desenvolvimento de tecnologia nacional para sistemas de trânsito inteligente e mobilidade urbana sustentável. Nas frotas públicas, governos podem condicionar a compra de veículos à produção nacional e a metas de redução de emissões. Licitações para infraestrutura podem incluir exigências de eficiência energética e geração própria de energia solar em escolas, hospitais e órgãos públicos.

A lista é longa. Governo deve usar a imaginação e a criatividade. Da compra de insumos médicos e equipamentos hospitalares a soluções de infraestrutura digital para escolas, de telemedicina à gestão de dados, o mercado brasileiro é grande e deve ser usado como vetor de poder com vistas à obtenção de contrapartidas: investimentos, atração de empresas, inovação, geração de empregos qualificados, capacitação.

Quais os principais avanços identifica na nova Lei de Licitações e Contratos em relação à 8666?

A nova Lei de Licitações e Contratos, instituída pela Lei nº 14.133/2021, trouxe diversas inovações em relação à antiga Lei nº 8.666/1993. Entre eles, podemos destacar a digitalização e a simplificação dos processos licitatórios. Talvez a mudança mais significativa tenha sido a ampliação dos critérios de julgamento de propostas, que passaram a incluir, além do menor preço (critério tradicional, já existente na Lei nº 8.666/93), a melhor técnica ou técnica e preço, relevante para projetos de inovação e engenharia complexa e o maior retorno econômico, que permite que contratos sejam avaliados pelo impacto financeiro ao longo do tempo.

Levando em conta que metade das compras governamentais brasileiras estão a cargo dos municípios, quais boas práticas podem ser impulsionadas para potencializar esse canal com a devida qualidade?

De novo, a imaginação é o limite. Nas atribuições municipais, que envolvem escolas e creches, concessões de transportes, serviços de saúde, etc, as compras governamentais têm um enorme potencial para transformar serviços públicos e impulsionar o desenvolvimento local. Exemplos de possibilidades incluem a formação de consórcios intermunicipais de saúde, para reduzir custos com aquisições conjuntas em escala de produtos como equipamentos de telemedicina e sistemas digitais para facilitar diagnósticos e ampliar a cobertura médica, ou o estabelecimento de contrapartidas para fornecedores, voltadas para a capacitação de profissionais de saúde locais.

No campo da educação, as compras governamentais podem induzir a produção de materiais didáticos digitais e infraestrutura de conectividade, de modo a garantir ensino híbrido de qualidade. Elas podem também estimular a compra de alimentos da agricultura familiar para merenda escolar, de modo a reduzir o consumo de ultraprocessados e a fortalecer a economia local. No campo da mobilidade urbana, municípios podem fomentar o surgimento de novos modais e soluções de transporte.  

Neste tópico, vale talvez concluir com referência a soluções de governo digital e automação de serviços que possam reduzir burocracia, custos e prazos administrativos e aumentar a transparência. A democracia liberal está em crise, entre diversas razões, por conta da ineficiência do aparelho do Estado. Nesse sentido, os municípios, que estão em contato mais direto os cidadãos na provisão de serviços públicos, devem levar ao extremo a indução de inovações pelas compras governamentais.

Quais os erros a se evitar?

O texto visa contribuir para a construção de uma estratégia de compras governamentais que evite oito erros básicos. Simplificadamente:

i. Foco apenas no menor preço, sem considerar qualidade, impacto econômico e possibilidade de induzir novas soluções em bens e serviços

ii. Falta de planejamento e visão estratégica nas aquisições, que leva a aquisições fragmentadas, que não aproveitam o potencial de barganha do governo e resultam em desperdícios.

iii. Ausência de concorrência e do mercado internacional, decorrente da dificuldade imposta à entrada de empresas estrangeiras e novos concorrentes, o que reduz a competitividade e incentiva a formação de monopólios ou cartéis no fornecimento ao setor público.

iv. Descaso com o potencial das compras governamentais para fomentar inovação e transferência de tecnologia

v. Falta de monitoramento (KPIs) e controle da execução dos contratos, que permite que contratos sejam descumpridos sem consequências.

vi. Excesso de burocracia e regras rígidas que travam a inovação e afastam empresas inovadoras.

vii. Falta de integração entre políticas públicas e compras governamentais

viii. Uso político das compras governamentais, de forma que a escolha de fornecedores e contratos seja influenciada por critérios políticos e não técnicos, favorecendo empresas sem qualificação e resultando em desperdício de recursos.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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