Estratégia de impulsionar a economia pelo crédito não é isenta de riscos

Luiz Guilherme Schymura – Pesquisador do FGV IBRE e doutor em Economia pela FGV EPGE

A economia brasileira andou em marcha lenta desde 2017, mas o mesmo não aconteceu com o crédito. Segundo números do Banco Central, o saldo de crédito ampliado total saiu de 125,6% do PIB em janeiro de 2017 para 141,5% no mesmo mês de 2020, um salto de 16 pontos percentuais do PIB em três anos. Essa medida inclui o crédito total ao setor não financeiro da economia, público e privado, bancário e não bancário.

O Brasil não está sozinho no crescimento do crédito. Dados do Banco Mundial indicam que a dívida total em países emergentes vem crescendo com força desde 2008, aumentando de 95,7% do PIB naquele ano para 165,1% em 2018. Essa alta, no entanto, é muito influenciada pela China, cujo PIB é uma grande parcela do tamanho total das economias emergentes. O país asiático, como é sabido, tem um problema sério de superendividamento. Quando se tira a China da conta, o nível da dívida dos demais emergentes subiu de 82,4% em 2008 para 107,3% em 2018. Como se vê, em comparação ao mundo emergente fora a China, a dívida de 142% do PIB do Brasil fica bastante acima da média.

Quando se toma o crédito bancário no Brasil, percebe-se que o impulso recente veio das famílias, e não das empresas. O saldo da carteira de crédito dos bancos com as famílias saiu de 25% do PIB, no início de 2017, para 28%, em setembro de 2019. No mesmo período, o saldo com as empresas andou em sentido oposto, caindo de 25% para 22% do PIB. Na verdade, esta queda foi bem mais expressiva quando se toma o pico de 28,5%, em dezembro de 2015. As famílias brasileiras, ao contrário das empresas, já deixaram para trás a fase de desalavancagem financeira pós crise financeira global. O comprometimento da renda com o serviço de dívidas das famílias subiu de 19,7% para 20,8% ao longo de 2019. No pico, em outubro de 2011, esse indicador chegou a 23%. Cerca de um terço da queda a partir do pico, portanto, já foi “devolvida” pela alta posterior (o nível de 19,7% do início de 2019 é o ponto mais baixo desde janeiro de 2011). Em termos de endividamento bancário total das famílias, como proporção da renda, o pico, desde 2005, foi registrado em maio de 2015, com 46,5%. Depois disso, o indicador recuou até um mínimo de 41,5% em fevereiro de 2018. Em novembro de 2019, já estava em quase 45%. Neste caso, o caminho de volta já foi quase todo percorrido.

O governo e o Banco Central parecem se sentir bastante confortáveis, e mesmo animados, com a expansão do crédito às famílias. A economia brasileira, desprovida dos motores da demanda pública e externa, vem contando com a demanda doméstica privada para crescer no horizonte deste e do próximo ano. O investimento, afetado pela incerteza, custa a arrancar, e o vetor de crescimento que resta é o consumo das famílias. Como a massa salarial também vem crescendo modestamente, o impulso do crédito é necessário para fechar a equação.

Diversas iniciativas estão sendo tomadas pelo governo, com protagonismo do Banco Central, para “limpar e ampliar as tubulações” por onde flui o crédito, para empregar o tipo de metáfora que vem sendo utilizado pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto, para caracterizar esta agenda.

Na área de crédito imobiliário, por exemplo, a agenda BC# estimula o uso do IPCA, em vez da TR, como indexador, para facilitar a securitização das carteiras (o que alavanca a capacidade de os bancos gerarem empréstimos imobiliários). Em 20 de fevereiro, a Caixa Econômica Federal lançou a linha de crédito imobiliário com taxa fixa, sem correção, com juros na faixa entre 8% e 9,75% ao ano, com cota de financiamento de até 80%. Dessa forma, a Caixa passou a oferecer linhas de crédito imobiliário em três modalidades: TR mais juros, IPCA mais juros e taxa fixa. Medidas do BC para facilitar a portabilidade do crédito também visam alavancar os empréstimos imobiliários.

Outra frente é o “home equity”, o uso do imóvel como garantia para tomar empréstimos, mercado especialmente promissor para as fintechs. Há ainda a agenda de criação de mecanismos que permitam precificar todos os títulos e empréstimos, de debêntures até as operações de crédito mais simples. A dívida precificada poderá ser aceita como colateral pelo Banco Central (dentro de dois anos) nas operações de refinanciamento das instituições financeiras, o que deve trazer ampliação da dívida e da sua liquidez, além de queda de spreads. Adicionalmente, foram tomadas medidas para azeitar os mercados de crédito, relacionadas a cooperativas, microcrédito, inovação financeira etc. Uma das últimas notícias é que o Banco Central autorizará o uso de investimentos em PGBL ou VGBL como garantia de empréstimos. E, finalmente, há a liberação de compulsórios de R$ 49 bilhões, que vai a uma injeção potencial de R$ 138 bilhões se for somado o aumento da parcela de recolhimentos compulsórios que os bancos podem contabilizar para efeitos do seu indicador de liquidez relacionado aos acordos de Basileia. Fica claro, portanto, que a ampliação do crédito é objetivo relevante da atual política econômica. É, em princípio, uma diretriz muito meritória, pois não se trata de uma agenda de forçar a expansão do crédito via subsídios, mas sim de aperfeiçoar os mercados e remover entraves, o que, inclusive, conduz a uma melhor alocação de capital.

De qualquer forma, é uma agenda que deve colocar ainda mais gás na expansão do crédito no Brasil. E essa expansão, como apontado anteriormente, já é muito expressiva em termos totais, e também considerando especificamente o endividamento das famílias. E é aqui que surgem algumas preocupações. No seu famoso livro Fault lines: how hidden fractures still threaten the world economy, o economista indo-americano Rhaguram Rajan mostrou como o crescimento da desigualdade nos Estados Unidos e a relativa estagnação da renda da classe trabalhadora encorajaram uma política de expansão e facilitação de crédito, como as hipotecas subprime.

O crédito fácil e excessivo, por sua vez, levou a uma das piores crises da história do capitalismo. No Brasil, o atual contexto histórico é muito distinto, mas é sempre recomendável analisar os aspectos políticos dos ciclos de crédito. Como observa Armando Castelar, pesquisador do FGV IBRE, a economia brasileira vem crescendo a um ritmo de pouco mais de 1% desde o fim da recessão de 2014-16. No final de 2019, houve um momento de maior animação com a retomada cíclica, mas agora as projeções para 2020, depois de terem ido para o nível de 2,5%, recuaram para perto de 2%, e há quem veja a possibilidade de um crescimento abaixo disto (a projeção do IBRE para este ano é de 2,2%). A Selic já penetrou fundo em território de baixa mínima histórica, e a taxa real de juros de um ano nas operações financeiras entre grandes “players” é hoje inferior a 1% (mas a maioria dos tomadores paga um spread acima deste juro). Em resumo, a ferramenta clássica do juro básico já está sendo usada com intensidade inédita na história econômica brasileira e a atividade custa a reagir.

Com o desemprego ainda em níveis extremamente elevados, é mais do que compreensível que o governo busque alavancas para reanimar a economia. Há inclusive uma base na teoria econômica a justificar ações desse tipo. No argumento keynesiano clássico, impulsos à demanda podem desatolar a atividade econômica, rendendo mais adiante o bônus do crescimento que pode compensar o ônus do empurrão inicial. No caso do impulso fiscal, a aceleração da atividade amplia a receita tributária e “paga” o custo da largada. Quando a impulsão se dá via crédito, o crescimento aumenta a renda do trabalho e reduz o peso relativo do aumento da dívida.

O mesmo raciocínio pode ser estendido às empresas. O risco, entretanto, é que, mesmo com o empurrão creditício, a economia continue em marcha lenta. Neste caso, o “bônus” pode não chegar e termina-se numa situação de excesso de endividamento, que freia ainda mais a atividade econômica, numa espécie de círculo vicioso. O crescimento do crédito habitacional, especificamente, deve ser visto com certa cautela. Em termos ideais, os bancos e o mercado de capitais deveriam emprestar para empresários fazerem novos empreendimentos, os chamados projetos “greenfield”. O serviço da dívida seria honrado com recursos gerados pelos novos projetos.

Isso é muito mais seguro do que emprestar para pessoas físicas adquirirem imóveis, pois o retorno dos empréstimos teria de vir dos salários das famílias, ou seja, não seria proveniente de acréscimos de renda. Antes da grande crise financeira global de 2008/2009, a parcela dos ativos dos bancos dedicada a imóveis residenciais no mundo desenvolvido cresceu muito, o que tornou o sistema bancário mais vulnerável. Em suma, incentivar crédito habitacional é uma política pública com consideráveis riscos. Além disso, como nota José Júlio Senna, pesquisador do IBRE, apesar de muitos enxergarem o crescimento do crédito para pessoas físicas como algo bom, capaz de impulsionar o consumo, há uma hipótese alternativa não tão positiva: crédito sendo contratado para completar orçamento familiar.

Há uma indicação de que esse pode ser o caso atual no Brasil: o crédito começou a crescer em momento de economia ainda muito fraca. Em resumo, não há dúvida de que remover distorções que entopem os canais de crédito na economia brasileira é uma boa diretriz de política econômica, tanto em termos estruturais como conjunturais. A dúvida, entretanto, é se o estímulo à expansão do crédito, especialmente das famílias, numa situação em que o fardo do serviço das dívidas já está esticado em termos de padrões históricos, é de fato uma estratégia sensata e segura para tirar a economia do atual marasmo. Como argumentado nesta Carta, há riscos nesse caminho, que não deveriam ser desprezados pelas autoridades econômicas.

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O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.

Publicada na edição de março da revista Conjuntura Econômica

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