Apesar do nó fiscal, ainda é possível acertar o rumo da economia

Luiz Guilherme Schymura – Pesquisador do FGV IBRE e doutor em Economia pela FGV EPGE

É quase lugar-comum dizer que a situação fiscal brasileira no final de 2020 e início de 2021 é crítica. Basta comparar as projeções do FGV IBRE para indicadores fiscais em 2020 com os resultados de 2019. O déficit primário do governo central e do setor público consolidado devem saltar de, respectivamente, 1,2% e 0,9% do PIB para 12% e 12,5%. Já o déficit nominal do setor público consolidado sobe de 5,9% para 16,9% do PIB; a dívida bruta do governo geral, de 75,8% para 97,5% do PIB; e a dívida líquida do setor público, de 55,7% para 67,3% do PIB.  

Se o problema é evidente, menos óbvio é saber qual a melhor estratégia de política econômica para lidar com essa piora dramática da situação fiscal em apenas um ano. Em 22/10, com mediação de Fernando Canzian, repórter especial da Folha de S.Paulo, dois pesquisadores associados do FGV IBRE, Nelson Barbosa e Samuel Pessôa, debateram precisamente os diagnósticos e as saídas relativas ao atual impasse fiscal. Na conversa, houve convergência quanto à existência de um grande nó, mas diferenças surgiram em relação a como desatá-lo. O debate fez parte da parceria firmada entre o FGV IBRE e a Folha, com o objetivo de trazer reflexões sobre a economia brasileira, e foi o quarto realizado de julho para cá.

Para começar, Barbosa crê ser contraproducente cumprir da maneira que for o teto constitucional dos gastos em 2021. Ele pondera ainda sobre os efeitos na atividade econômica da redução abrupta e de enorme dimensão do impulso fiscal, saindo-se de um déficit primário de 12% em 2020 para 3% no próximo ano. 

Em relação ao teto, Barbosa nota que o nível de despesas discricionárias orçadas para 2021 já é extremamente baixo para padrões históricos. Adicionalmente, diversos gastos relacionados à pandemia, como na área de saúde, terão que ser estendidos para 2021, e há a questão da elevação maior do que a prevista do salário mínimo atrelado ao INPC. Esse último tema será tratado com mais detalhe adiante nesta Carta. Nesse cenário, na visão do economista, respeitar o teto de gastos exigirá grandes cortes das despesas discricionárias, que já estão em nível bem reduzido. 

Segundo Barbosa, um possível caminho para o impasse é encontrar uma saída transparente para gastos extrateto em 2021 e 2022, com limite e execução fixados pelo Congresso, que venha acompanhada de discussões consistentes de reformas estruturais visando à construção de um arcabouço definitivo que garanta a solvência a médio e longo prazo. 

Essa nova arquitetura fiscal deve ser flexível e ter um caráter contracíclico. Ela deve incluir um teto de crescimento de despesas, não necessariamente o congelamento real atualmente em curso, que seja fruto de negociação entre o Executivo e o Congresso. A curto prazo, uma flexibilização controlada da política fiscal, com autorização do Congresso, em conjunto com reformas graduais no gasto público e arrecadação de tributos, ajudaria a manter a máquina do Estado com um nível mínimo de funcionamento, e colaboraria via demanda para a recuperação da economia. 

O economista considera que um plano fiscal robusto, que seja percebido como factível pela sociedade e mercados (ao contrário do que julga ser o teto), deve fazer o real voltar a se apreciar e a curva de juros a desempinar. Ele observa que os ativos brasileiros estão baratos, e que, se um caminho fiscal crível e consistente for adotado, e a incerteza se dissipar, a situação econômica pode se estabilizar ainda no primeiro trimestre de 2021.

Uma primeira diferença entre o entendimento de Pessôa em relação ao de Barbosa é na construção do orçamento de 2021. Para o primeiro, a montagem orçamentária deve ser feita independentemente da determinação de um novo regime fiscal. Pessôa considera que são temas distintos. Por essa visão, o orçamento de 2021 deve ser compatível com a realidade orçamentária que vigorava em 2019. Paralelamente, pode-se discutir em 2021 e 2022, se for o caso, um novo regime fiscal para vigorar a partir de 2023. 

O economista vê como necessário estabelecer uma transição suave entre o orçamento de guerra de 2020 e um orçamento normal em 2021. Ele lembra que foram feitos inúmeros investimentos na área de saúde este ano, que serão utilizados no enfrentamento do que sobrar de epidemia em 2021 – o Brasil foi o país emergente relevante com maior gasto em 2020, como proporção do PIB, em medidas associadas ao combate à epidemia. A compensação da União aos estados, por exemplo, suplantou a queda de receita e não faltam recursos a esses entes subnacionais.

Pessôa defende a manutenção do teto de gastos e até possivelmente algum aumento da carga tributária para fazer frente à crise fiscal. A sua leitura sobre o atual descontrole das contas públicas é de maior alarme que a de Barbosa, com a possibilidade de impactos muito danosos em prazos mais curtos. Pessôa nota que a explosão da dívida pública em 2020 e o cenário ainda duvidoso sobre a política fiscal de 2021 já têm efeitos deletérios: na depreciação do câmbio (maior no Brasil do que em países semelhantes frente ao dólar); na curva de juros empinada; na dificuldade de colocação de LFTs pelo Banco Central; e no encurtamento da dívida pública. 

A maior ameaça, entretanto, é a volta mais intensa da inflação, que exija elevação mais forte da taxa básica de juros – o que por sua vez piora o componente financeiro das contas públicas, atiçando o risco país, a desvalorização e a inflação, num círculo vicioso que, na pior das hipóteses, deságua em dominância fiscal. Ainda não se está perto desse cenário, mas em cerca de 2 meses o front inflacionário mudou de extremamente confortável para preocupante. A razão principal foi um choque de preços de alimentos de múltiplas causas, domésticas e externas. 

O temor deriva do fato de que já há sinais de que o choque está se disseminando para produtos comercializáveis de forma mais ampla e até, ainda de maneira incipiente, para alguns serviços. A onda de consumo de alimentos, materiais de construção e eletroeletrônicos, puxada pelos programas de transferência da pandemia, aliada à desvalorização por causa do risco fiscal, pressiona a inflação. Assim, mesmo que não haja uma espiral de total descontrole inflacionário e fiscal, o não acerto das contas públicas para 2021 implicaria cenário de maior estresse nos mercados, câmbio mais desvalorizado, juros mais altos, menor crescimento e inflação mais elevada. 

Adicionalmente, Pessôa se inquieta menos do que Barbosa com a retirada dos estímulos fiscais em 2021, embora, evidentemente, não minimize a questão. Para Pessôa, há evidências de que os estímulos dos diversos programas do governo vinculados à pandemia substituíram de certa forma a retração da demanda privada, especialmente no setor majoritário de serviços. Assim, a progressiva normalização da circulação de pessoas e da economia (salvo se houver uma “segunda onda” no Brasil), somada ao gasto da poupança acumulada durante o isolamento social, especialmente da classe média para cima, poderia “pegar o bastão” do impulso à demanda quando a política fiscal se contrair em 2021, em termos relativos. 

Uma redução de 9 pontos percentuais no déficit primário entre 2020 e 2021, nessa ótica, torna-se mais viável. Pessôa acredita que, com essa transição gradativa entre a demanda pública e privada até o início do próximo ano, é possível crescer até 4% em 2020. Mantendo-se o teto de gastos, ele vê condições de o país chegar “mais ou menos inteiro” às eleições de 2022.

As análises e prescrições de Barbosa e Pessôa, na verdade, descrevem pontos de um espectro possível de cenários, e é difícil determinar exatamente por onde a realidade vai se manifestar. Mas é possível partir da preocupação de ambos com a imperiosa necessidade de uma solução política para o imbróglio fiscal para tecer algumas considerações adicionais. Os dois consideram a discussão de um regime fiscal mais factível e permanente como válida uma vez que se equacione a situação imediata de desarranjo das contas públicas (para a qual veem soluções diferentes). E é aí que há elementos para nutrir alguma esperança de que o impasse político e fiscal possa ser resolvido.

Na verdade, houve desde a redemocratização uma evolução de mentalidade da sociedade e do sistema político em relação às contas públicas, como já pontuado neste espaço em Cartas anteriores. A aprovação de um teto de gastos proibindo aumento real de despesas por pelo menos 10 anos, medida sem dúvida drástica quando se pensa em mecanismos desse tipo em outros países, é um sinal de maior impregnação do senso de responsabilidade fiscal nos políticos e em seus eleitores. A reforma da Previdência também foi surpreendente por seu escopo e profundidade. Há que se enfatizar: em um contexto no qual tentativas semelhantes eram vigorosamente rechaçadas pelo eleitorado em diversos países. 

Hoje, a sociedade convive com certa naturalidade com o fato de que o salário mínimo não tem reajuste real há vários anos e os salários dos servidores estão em princípio congelados em seu valor nominal até 2021. É claro que a recessão de 2014-2016 e o baixíssimo crescimento desde então estão na raiz tanto de uma coisa como da outra. Ainda assim, em boa parte do período pós redemocratização, manter o mínimo no seu nível real e o salário do servidor em seu valor nominal provocaria um barulho político que não se escuta hoje. 

A questão fiscal, que por muito tempo só foi considerada crucial por um grupo de tecnocratas com ligação com uns poucos partidos, hoje faz parte das preocupações e discussões de todas as agremiações políticas, dos mais diversos tons ideológicos – embora a abordagem do tema, naturalmente, difira de acordo com as diversas percepções sobre a natureza dos problemas econômicos. No debate sobre o teto de gastos, por exemplo, a grande maioria dos que defendem o fim do mecanismo ou alterações no seu formato advogam, em contrapartida, que algum dispositivo de controle de despesas seja colocado no lugar.  

Nos últimos anos, o sistema político percebeu com clareza que o desenvolvimento econômico é inviável com descontrole fiscal, que é a raiz das pressões inflacionárias mais perniciosas. A inflação foi domesticada com o Plano Real e, desde então, sempre que ensaiou algum descontrole, como na gestão da presidente Dilma Rousseff, o governo acabou sendo punido. Dilma não sofreu impeachment por causa da inflação, evidentemente, mas esse foi um dos elementos do coquetel de fatores que acabou por desestabilizar politicamente seu governo. É inimaginável hoje um governo ter apoio popular em um contexto de alto índice inflacionário.

É sob esse ponto de vista que devem ser analisados os últimos capítulos da novela fiscal e seus possíveis desdobramentos. A pandemia e o auxílio emergencial, por exemplo, cristalizaram na sociedade a urgência de se ter algum programa que torne menos insegura a vida material da legião de trabalhadores informais no Brasil, anteriormente desassistidos numa faixa intermediária entre os muito pobres – acolhidos no Bolsa Família – e o mercado de trabalho formal. Foi assim que surgiu a ideia do programa ora pré-batizado de Renda Cidadã. É muito sintomático que diversas formas de financiamento do novo programa tenham sido descartadas, depois de aventadas, pelo clamor social e político de que burlavam o teto e as boas práticas fiscais. Mais um sinal de maturidade no trato das contas públicas.

Dessa forma, é possível dizer que o ambiente político, ao contrário do que muitos julgam, é propício à engenharia fiscal necessária para o país superar a atual crise. A grande questão é saber de que maneira o possível desfecho positivo vai se materializar. Até as eleições, naturalmente, nada de mais significativo deve acontecer, o que é compreensível do ponto de vista político. Em seguida, haverá muito pouco tempo em 2020 para se viabilizar uma solução orçamentária e legislativa (neste caso, relativa a reformas já enviadas ao Congresso) mais duradoura para o problema fiscal. 

Nessas condições, alguma solução mais improvisada terá que ser construída. Há conversas sobre prorrogação do estado de emergência ou manobras que permitam despesas extrateto, mas não é definitivamente a intenção desta Carta se enfronhar no desenho específico desta ou daquela saída para o impasse fiscal. A intenção é examinar as condições e apontar princípios para que isso possa ocorrer.
Não parece restar dúvida de que gastos extrateto terão que ser realizados em 2021 no sentido econômico, seja por contorcionismos que mantenham formalmente a regra, seja por abandoná-la ou alterá-la. Como vem apontando Manoel Pires, pesquisador associado do FGV IBRE, não só o valor de R$ 96,1 bilhões orçado para as despesas discricionárias é, de longe, o mais baixo em termos nominais desde pelo menos 2012, como é certo que será ainda mais reduzido, e de forma substancial.

Em primeiro lugar, há a questão de que o IPCA acumulado entre julho de 2019 e junho de 2020 ficou apenas em 2,13%, e é esse o valor que vai reajustar o teto dos gastos. Como é bem sabido, no entanto, a inflação acelerou desde então. Junta-se a isso o fato de que o INPC, índice que corrige o salário mínimo, tem uma cesta de produtos mais focada na baixa renda, e, portanto, na qual o impacto da alta recente dos alimentos se fez sentir de forma mais pronunciada, na comparação com o IPCA. É o INPC acumulado no ano que vai corrigir o salário mínimo, que indexa ou é referência para dezenas de milhões de benefícios previdenciários e sociais. Naturalmente, essas transferências obrigatórias vão subir mais que o teto, espremendo ainda mais os gastos discricionários. A diminuição destes pode variar entre R$ 10 bilhões e R$ 12,1 bilhões, explica Pires, dependendo de se o INPC deste ano vai ficar na atual projeção mediana do Focus ou se subirá ainda mais – como já projetam alguns analistas. 

Outra “mordida” provável no orçamento do gasto discricionário ocorrerá se, como previsto, o Congresso derrubar o veto do presidente Jair Bolsonaro à prorrogação da desoneração da folha de um conjunto de setores. Caso o veto caia, são mais R$ 4,9 bilhões a retirar do orçamento discricionário. Assim, na hipótese mais otimista, os R$ 96 bilhões viram R$ 86 bilhões e, na mais pessimista, R$ 79 bilhões.

Tratam-se de níveis incompatíveis com a manutenção de um governo operante, ainda mais em um ano em que ainda se farão sentir os efeitos da pandemia, e que certamente levarão à deterioração acelerada dos ativos públicos, com destaque para a já combalida infraestrutura. Fica claro, portanto, que a solução política a ser encontrada terá de contemplar gastos suplementares ao teto, e possivelmente uma queda menor do déficit primário do que os citados 12% para 3% do PIB. Para que isso ocorra, contudo, é fundamental um acordo político, entre Executivo e Legislativo, em torno de um plano factível de consolidação fiscal que seja crível para uma ampla maioria dos formadores de opinião. Naturalmente, o desenrolar desse processo promoverá capítulos eletrizantes com debates políticos acalorados. Não será uma construção simples. Na verdade, exigirá muita criatividade, negociação, empenho e paciência. Tudo leva a crer que o caminho será conturbado, com muitas idas e vindas.

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O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.

Publicada na edição de novembro da revista Conjuntura Econômica

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