“Voltar com mecanismo de controle de preços seria um tiro no pé por parte do governo e da Petrobras”

Fernanda Delgado, coordenadora de pesquisa da FGV Energia

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Qual sua avaliação sobre o episódio que culminou na troca de comando da Petrobras? Após o impacto inicial – do início da crise até segunda-feira (22/2), a companhia havia perdido R$ 102,5 bilhões em valor de mercado –, qual comportamento se pode esperar entre investidores do setor de óleo e gás?

Estamos em uma fase delicada, pois a troca do sistema de precificação de combustíveis aconteceu exatamente para atrair investimento externo, dar um fim de fato ao monopólio. Acho que esse episódio em parte foi suscitado por uma falha de comunicação, pois é difícil para as pessoas entenderem por que um país que produz mais de 3 milhões diários de barris de petróleo, que é praticamente autossuficiente – não em qualidade, mas em volume –, tem que ficar exposto à variação externa de preços. O Brasil não tem o preço mais alto de combustível como todo mundo apregoa. E em várias economias há alteração de preços diária e isso não vira manchete de jornal.

Estamos fazendo um phase-out de um mercado fechado para um aberto, e tropeços fazem parte desse processo, como por exemplo aconteceu no mercado de gás da Europa. Mas há uma debilidade da Petrobras, do governo, em comunicar qual é o planejamento energético do país. Pois tudo é um plano: tenho que desinvestir da Petrobras porque ela é altamente endividada, porque a intenção é focar no pré-sal, que tem uma margem maior de lucratividade. E por isso também está vendendo refinarias, além de uma série de pequenos campos maduros no interior do país (onshore), o que muitas vezes gera a sensação de que aquela região ficará sem emprego, sem a economia que gira em torno da Petrobras. Dou um exemplo. Anualmente, participo de uma feira de óleo e gás em Mossoró, interior do Rio Grande do Norte, para falar sobre faturamento hidráulico (shale gas), que aqui no Brasil ainda não podemos explorar. A Petrobras sempre foi a grande patrocinadora, mas quando saiu dos campos daquela região (o projeto de desinvestimento foi lançado em 2017 e concluído em 2019), surgiu o temor sobre o futuro da feira. Mas no ano seguinte o evento estava lá, com uma série de patrocinadores, companhias que compraram os campos da Petrobras e outras empresas prestadoras de serviços que entraram no lugar. Então, as economias em transição têm seus tropeços, e se reacomodam. Por isso é preciso que as pessoas entendam o porquê dessas mudanças, através de uma comunicação bem-feita. Senão gera confusão.  

Além da questão da comunicação no plano de desinvestimento da Petrobras, específica deste período, que outros fatores nos tornam tão mais sensíveis à volatilidade de preços – a ponto de o combustível ser elemento de pressão?

Há duas vertentes. A primeira é a de sermos um país relativamente novo, uma democracia nova. Ainda é preciso maturação da nossa construção como sociedade, e o setor energético se insere nesse processo. Além disso, diferentemente de nós, em outras economias que lidam melhor com essa volatilidade há concorrência. No Brasil, ao contrário, temos a Petrobras responsável por 98% do refino nacional e 70% da produção de petróleo. Isso é impactante. E aqui entra o plano de desinvestimento para entrada de novos agentes seja no refino, seja no upstream. Apesar de termos as grandes companhias participando, como Shell, Exxon, há poucas empresas menores, e estas geram muito emprego. Pode não parecer, mas elas agitam muito as economias locais.

Há outro elemento que é uma questão cultural sul-americana, onde muitos países se dizem liberais, mas possuem um espectro populista. No livro Como as democracias morrem, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt descrevem bem essas características das democracias latino-americanas. Em geral, são países que identificam que uma economia liberal os fará deslanchar, então copia modelos liberais, mas ao mesmo tempo lidam com governos com atitudes populistas. Aqui no Brasil, hoje vivemos uma incongruência, pois dentro do mesmo sistema vemos os importadores alegar que a Petrobras ainda não atingiu a paridade de importação, então para eles o preço do combustível estava muito baixo, e ao mesmo tempo a pressão dos caminhoneiros de que não aguentavam mais reajuste de preços para cima.

Mas hoje estamos sob risco de uma intervenção direta no preço dos combustíveis, em um contexto extremamente difícil – em meio à pandemia, dependendo de uma reação da atividade econômica, no qual não poderíamos correr mais riscos de afugentar o investidor...

Tem razão. E isso certamente passa um sinal equivocado para o mercado, com vários riscos associados. Um deles é o de que essa tendência de alta do preço internacional continue. Na semana que vem haverá reunião da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), porque os russos e os sauditas voltaram a divergir sobre cota. Tem essa oferta internacional de petróleo que está artificialmente controlada, abrindo margem a um novo desequilíbrio externo. Por outro lado, há uma enxurrada de dinheiro nos Estados Unidos, tanto do pacote de recuperação econômica do presidente Joe Biden quanto dos investimentos em energias renováveis que ele está propondo, colocando quase US$ 4 trilhões na economia americana, o que vai gerar aumento de gastos, inclusive do governo, e provavelmente um aumento da demanda de petróleo antes da substituição por renováveis como Biden quer. Ou seja, existe a possibilidade de que esses movimentos de saída da crise da Covid-19 levem a um aumento de demanda por energia, e no momento em que se reaquece a economia, o que se tem à mão é petróleo. Aí o preço sobe. Então, se estamos achando que está ruim o preço a US$ 66 o barril, é preciso se preparar para possibilidade de que ele suba ainda mais – fora o efeito da taxa de câmbio, que não é meu foco de análise.

Além disso, essa sinalização errada para o mercado, de possibilidade de mudança de estratégia no processo de desinvestimento, coloca em risco tudo o que os atores do mercado estão esperando. Veja o caso da refinaria comprada pelo Fundo Mubadala (na Bahia, por R$ 8,87 bilhões), que era para ter saído em fevereiro, e deve acontecer agora em abril. O mercado está todo em alerta. E você tem, por outro lado, o acionista controlador forçando a Petrobras a subsidiar preço de combustíveis.

Mas, no meio disso tudo, temos instituições que são bastante solidas, e gosto de lembrar que elas salvaram o setor de óleo e gás no Brasil até agora. Porque durante toda essa maré ruim que o setor vem surfando desde o petróleo a US$ 20, e nos Estados Unidos, a –US$ 11, o setor petrolífero brasileiro tem crescido, tanto da Petrobras quanto de outras petroleiras. Porque nossas instituições, independentemente de qualquer colocação do presidente, são solidas, nossos contratos são respeitados, a Agência Nacional de Petróleo (ANP) tem uma reputação boa no mercado internacional, assim como o Ministério de Minas e Energia (MME). Existe santidade nesses contratos, uma regulação muito sólida, e técnicos muito competentes que coordenam isso.

Então é possível ser otimista?

Temos ao que se apegar para sê-lo. Estudo muito a relação e atração de investimentos no Brasil em relação aos seus pares do entorno estratégico. Ou seja, quando uma empresa vai fazer investimento, se escolhe entre Brasil e Argentina, Brasil ou México, Brasil ou Colômbia, como ela se comporta. E vejo que sempre o Brasil é preferido, é o destino dessa carteira de investimento, e entre os motivos estão os marcos regulatórios, as instituições, por incrível que pareça, a facilidade de se trabalhar no Brasil, porque ainda é mais fácil do que trabalhar em outras economias latino-americanas. Acho que a gente ainda tem essas instituições como último bastião de alguma garantia de que as coisas podem funcionar em prol de evitar uma intervenção ou qualquer problema maior nesse sentido. Recebo relatórios de alguns bancos, e vejo indicações completamente divergentes para este momento. Um manda vender ações, outro manda comprar. Os que mandam comprar alegam algo parecido ao que estou dizendo: que existem instituições muito sólidas que respaldam e entendem que um movimento no sentido de uma intervenção não seria saudável para o resto da economia.

Então, independentemente se o petróleo é nosso ou não, os royalties ficam aqui, as participações ficam aqui, os contratos são respeitados, e esses regulamentos que temos ajudam de alguma forma a que se entenda que voltar com um mecanismo de controle de preços seria um tiro no pé muito grande, por parte do governo e da Petrobras. Acho que finalmente há consciência de que abertura de mercado é benéfica para todo mundo. Que um monopólio não vai gerar emprego para todo mundo. E que, independentemente da empresa que estiver operando, há possibilidade de alavancar muito mais capital, renda e receita se o mercado for aberto. Acho que isso vai nos respaldar contra outra intervenção. De qualquer forma, vocês têm razão de que esse episódio deixa um espectro, uma contaminação dos agentes de mercado. É preciso deixar passar um pouco essas primeiras medidas para pensar nas atitudes que estão vindo em sequência. Mas não acredito que nada aconteça nesse sentido.

Artigo da Conjuntura Econômica de fevereiro do qual é coautora elenca alternativas para lidar com as oscilações do preço do petróleo. E o governo parece discutir o tema, com ideias que vão de uma “bolsa caminhoneiro”, especificamente para o setor, à criação de um fundo com excedentes de royalties para compensar Petrobras e importadores dessas oscilações. Qual sua avaliação?

Existem mecanismos sólidos economicamente para acomodar essa volatilidade do sistema. Abrir mão da arrecadação de tributos (PIS/Cofins) agora é complexo. Mas realmente se poderia trabalhar em algo para o caminhoneiro, que tem sido o foco da crise, na linha do Cartão do Caminhoneiro, que garante o preço do diesel por um período pré-determinado.

De forma mais ampla, como mencionamos no artigo, existem várias formas de fazê-lo. Voltar com a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), por exemplo, era uma forma interessante de acomodar a flutuação, fazendo um colchão econômico. Mas isso teria de ter sido feito quando o petróleo estava a US$ 20 o barril. O ponto principal é que, para qualquer alternativa não há solução rápida, pois elas mexem com interesses difusos. Então não há solução milagrosa, e demanda um tempo de aprendizado.

Uma outra forma de lidar com esse tema é criar concorrência não só pelo lado do refino, mas trazendo outros energéticos para o país, ampliando as opções de combustíveis, como o uso de gás natural nos caminhões. Hoje, por exemplo, temos discussões sobre como endereçar o gás produzido no pré-sal, como criar demanda para ele. Poderia ser uma solução nesse sentido.

Preço do diesel nos Brics – (US$/litro)

Fonte: Marcelo Gauto

Reação do mercado nas trocas de liderança na Petrobras

Fonte: Welligence Energy Analitics

 

Link de interesse:

Entrevista de Roberto Castello Branco à Conjuntura Econômica em setembro de 2019 sobre o plano de desinvestimento da Petrobras

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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