“Veremos se a vacinação contra Covid-19 gera consciência para restabelecermos bons padrões de vacinação para outras doenças”

Maurício Zuma, diretor Bio-Manguinhos/Fiocruz

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Esta semana, o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fundação Oswaldo Cruz (Bio-Manguinhos/Fiocruz) promove um simpósio internacional que, entre outros temas, discute o futuro da vacinação depois da Covid-19. Em conversa para o Blog, Maurício Zuma, diretor de Bio-Manguinhos, fala sobre os desafios de se recuperar a cobertura vacinal no Brasil e dos planos de ampliação da capacidade produtiva do instituto. Hoje, Bio-Manguinhos/Fiocruz produz mais de dez vacinas, além de biofármacos e kits para diagnósticos, sendo o maior produtor mundial do imunizante contra febre amarela, que exporta para cerca de 75 países. Zuma também trata da escolha, pela OMS, de Bio-Manguinhos como hub latino-americano para fabricação de vacinas com base no mecanismo do RNA mensageiro (mRNA), como o usado na vacina da Pfizer contra a COVID-19. Confira:

Como é a estrutura de produção de Bio-Manguinhos hoje, e como conseguiram adaptá-la para dar conta da demanda de vacina contra Covid-19?

Hoje respondemos por cerca de 30% da demanda do Ministério da Saúde, e também exportamos o excedente de produção. No momento, inclusive, estamos no processo de certificação internacional para ampliar nossos produtos exportados. Hoje somos pré-qualificados pela OMS para exportar a vacina de febre amarela e meningite, e agora buscamos para Covid, duplo viral e meningite C. Em 2021, fornecemos 233 milhões de doses, sendo 153 milhões de Covid. Conseguimos ampliar a produção devido a uma mudança no mix. Muitas das nossas vacinas são liofilizadas – processo que retira a umidade, para conversar a vacina, que depois é reconstituída com diluente. Esse processo é mais longo. Então, quando substituímos parte dele pela de Covid, que é líquida, permitindo acelerar a produção.

Este ano Bio-Manguinhos passou a fabricar a vacina da Oxford/Astrazeneca com IFA nacional. Como o domínio dessa tecnologia impactará no fornecimento da vacina contra Covid-19 para o sistema de saúde brasileiro, e quais suas aplicações potenciais?

É importante dizer que existe muita dúvida sobre a necessidade de vacinas para reforço contra a Covid-19 quando a pandemia for controlada, ainda que esteja se criando um consenso de que a doença vai permanecer e demandará vacinação anual. Para este ano, por segurança, tínhamos comprado mais IFA importado. O Ministério da Saúde, por sua vez, foi reduzindo a previsão de doses, de 180 milhões para 105 milhões. Com essa demanda, para este ano entregaremos 57% de doses com IFA importado, e 43% com IFA nacional. Nossa capacidade, entretanto, é de produzir 120 milhões de doses. Em breve inauguraremos uma linha para envasamento de produtos líquidos que facilitará esse processo. E para o ano que vem estamos ampliando nossa capacidade de produção, quase duplicando-a, visando a produção de outros produtos líquidos. Somente para Covid-19, deveremos chegar a uma capacidade de produção de 200 milhões de doses/ano.

Quanto ao aproveitamento do uso dessa plataforma, uma vacina que poderá vir em seguida será para chikungunya. Estamos em discussão, ainda primária, sobre esse uso. Tem outras vacinas que entendemos que são possíveis, como para influenza, vacinas para vírus respiratório sincicial, malária. São vários produtos que estão numa linha de desenvolvimento que podemos aproveitar e explorar nessa plataforma, que permite um desenvolvimento mais rápido – até para se preparar para uma pandemia ou epidemia futura e dar uma resposta mais célere.

Cobertura Vacinal em queda – Brasil (%)


Gerado em 04/05/2022 as 18:53:46. Fonte: Datasus.

 

Vacinação contra Covid-19 na América Latina
(doses aplicadas até 25 de abril de 2022 - países selecionados)


Fonte: OurWorldInData.

Bio-Manguinhos foi eleito pela OMS para ser um dos hubs – junto à empresa argentina Sinergium – para desenvolvimento e produção de vacinas com base no mecanismo do RNA mensageiro (mRNA), como o usado na vacina da Pfizer contra a COVID-19. O que muda no trabalho do instituto com essa escolha?

Quando a OMS abriu chamada para o hub na América Latina, já estávamos desenvolvendo nosso projeto, apresentamos, e ele foi escolhido. Já era uma estratégia nossa, pois vemos que tanto a plataforma de vetor viral quanto a de mRNA são plataformas de futuro. E não só para vacinas como para produtos terapêuticos para câncer, por exemplo. Já estamos desenvolvendo uma vacina usando essa plataforma, está em fase pré-clínica, e a perspectiva é de tê-la pronta no final do ano que vem. Mas essa aposta se concentra menos na vacina da Covid-19 em si – para qual o horizonte de demanda por imunização ainda é incerto – do que em outras aplicações futuras. Por isso, dominar essa plataforma para nós é estratégico. É importante termos uma vacina para Covid-19 numa plataforma diferente para colaborar com o esforço de imunização na América Latina, para acelerar o ritmo de imunização. Mas o objetivo se estende ao desenvolvimento de outras aplicações, como para influenza, vírus sincicial respiratório, para câncer. Ou seja, é uma plataforma do presente, com bastante futuro. E não poderíamos ficar de fora para dominar esse conhecimento. 

A OMS está promovendo a criação desses hubs na África e na América Latina para fomentar a produção local, já que a produção de vacina contra a Covid-19 ficou concentrada em um número pequeno de grandes farmacêuticas, com a maior parte da produção absorvida por países ricos, deixando um quantitativo limitado para os mais pobres. Assim, o objetivo da OMS é garantir uma produção mais rápida de vacina para esses países. Aqui estamos trabalhando em cooperação com um hub da África, que está desenvolvendo uma cópia da vacina da Moderna. A nossa, de mRNA, é de desenvolvimento próprio. Mas há coisas comuns nesse desenvolvimento, e temos a OMS apoiando tecnicamente, com especialistas, consultores, ajudando na coordenação das reuniões de alinhamento, colaboração, para que as vacinas saiam o mais rápido possível. Já a empresa argentina Sinergium irá utilizar a vacina que sair mais rápido – a brasileira ou a africana. De nossa parte, estamos nos comprometendo a licenciar nossa vacina e até apoiar a produção dela em outros países, transferir tecnologia, ainda que sejam poucos os que têm condições técnicas para absorvê-la. O esforço, agora, é avançar no desenvolvimento da vacina.

O painel que moderou no primeiro dia do Simpósio tratou dos desafios da vacinação no mundo pós-Covid-19, e citou a queda na cobertura vacinal no mundo. Como avalia essa questão no Brasil?

A queda nos índices de vacinação é preocupante, pois são imunizantes essenciais, que ajudaram em muito a combater a mortalidade, especialmente a infantil, reduzir custos hospitalares de tratamento de doenças que se pode prevenir com vacina. Nos últimos anos, vivemos esse paradoxo: o mundo, com algumas exceções, se conscientizou da importância da vacina para se combater uma doença tão perigosa como a Covid-19, o que levou à administração de mais de 11 bilhões de doses. Por outro lado, vemos as taxas de imunização para outras doenças caindo. Agora que não precisaremos mais de uma taxa tão rápida de vacinação contra Covid-19, temos que voltar nossa atenção para como recuperar os índices de vacinação das demais doenças para as quais há vacina. E veremos se a vacinação contra Covid-19 gera consciência para novamente se estabelecer bons padrões de vacinação para outras doenças especialmente no Brasil, porque já tivemos índices de cobertura bastante elevados. Nosso Programa Nacional de Imunizações (PNI) já foi considerado, por muito tempo, um dos melhores do mundo. 

Para isso, precisamos entender por que essa cobertura vem caindo. Estamos participando de um projeto, junto ao Ministério da Saúde, estudando essas causas. São várias, e vem desde lá dos municípios, de quem aplica a vacina. Entre as questões estruturais, há problemas de logística, de armazenamento. Mas também há questões como a necessidade de adequação dos horários de vacinação das crianças para os horários de disponibilidade da família. E tem questões culturais, de informação. Veja, no passado, todos tínhamos algum contato com pessoas com problemas físicos devido à poliomielite. Hoje não temos. A vacina funcionou tão bem para a pólio, o sarampo, que as pessoas não falam mais dessas doenças, e isso de certa forma contribui para elas pensarem que não se precisa mais de vacina para isso. Há também a questão das fake news. São vários fatores que não podem ser desprezados.

Em qual estágio está o projeto de construção do novo Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde (Cibs), com investimento de R$ 5 bilhões, e o que ele representará em termos de aumento de produção?

A demanda pela construção do Cibs foi gerada por conta de que nossa planta atual está ficando antiga, demandando mais manutenção para manter os padrões de qualidade necessários para a produção, o que torna o processo mais caro. Além de estarmos saturando nossa capacidade de processamento final, tanto para liofilizados quanto para líquidos e outros biofármacos. A primeira parte do complexo, à qual estamos dedicados hoje, tratará especificamente de atividades de processamento final. Não haverá produção de IFA. Mas temos uma área ampla, com diversos espaços bloqueados para futuras ampliações.

Como é um empreendimento grande e sempre tivemos dificuldade em tocar obras, resolvemos buscar um modelo novo dentro da gestão pública, que é o de construção sob medida, ou built to suit, em que elegemos um investidor que vai financiar, contratar e realizar a obra. Com isso, também eliminamos outra dificuldade comum no setor público, para garantir um fluxo financeiro contínuo que impeça que paralisemos no meio do caminho. Nosso pagamento se dá depois, na forma de aluguel, que pagaremos em 15 anos, a contar do início de operação da fábrica, e no final desse período o patrimônio se reverte para a Bio-Manguinhos novamente. Levamos um bom tempo discutindo com órgãos de controle para que a licitação saísse da melhor forma possível, e o ganhador foi o grupo de investimentos GRT Partners, que já selecionou uma empresa internacional responsável pela construção. A FGV Projetos nos apoiou em toda a modelagem econômica, e atuando na avaliação dos parceiros. Agora estamos na fase de fechamento de contrato, que é delicada, envolve o BNDES, que também tem seu tempo para a aprovação de crédito. Mas tão logo a operação financeira esteja finalizada, assinamos contrato e começamos a obra. Nossa expectativa é de, iniciada a construção, em menos de quatro anos já tenhamos os primeiros prédios entregues para certificação.

Os aspectos técnicos da planta são definidos por nós. Contemplamos tecnologias mais modernas para garantir os padrões necessários de manutenção, o que nos proporcionará um custo operacional menor do que o atual. Com o Cibs, quadruplicaremos a capacidade de produção que temos hoje – podendo ser até mais, dependendo do mix a ser produzido –, inclusive em apresentações diferentes das de hoje. Por exemplo, frascos com menos doses – hoje só produzimos com 10 doses – que é uma demanda do Ministério, que reclama de perda de vacina no campo. Além de permitir a fabricação de mais produtos. Quanto mais conseguirmos produzir, menos o Ministério terá de importar o que hoje não temos no país.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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