“Uma direita civilizada pode crescer sobre o desgaste de Bolsonaro”

Claudio Couto, professor da FGV Eaesp

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Recente pesquisa da XP/Iespe mostra que a CPI da Covid não abalou a aprovação do governo Bolsonaro, que registrou aumento – dentro da margem de erro – na parcela que considera sua gestão ótima e boa (27% para 29%). Também cresceu a aprovação de sua gestão da pandemia (21% para 22%). Como interpretar esse resultado? 

A resiliência desse um terço do eleitorado é realmente impressionante. Os dados desagregados mostram que os núcleos de maior resistência são os de sempre: região Sul, homens, evangélicos, de renda e educação média. Mas nessa pesquisa tem outras coisas que chamam a atenção. Primeiramente, que essa oscilação positiva coincide um pouco com duas outras coisas. A primeira é uma melhora também da avaliação dos governadores, com exceção das regiões Norte e Centro-Oeste, o que poderia sugerir um estado de ânimo mais positivo dos entrevistados com relação à pesquisa anterior, no geral. E, em segundo, uma certa melhora, ainda que pequena, mas perceptível, de avaliações relativas à economia. As pessoas parecem mais otimistas a respeito do emprego, da melhora econômica futura, com respeito a suas dívidas. Talvez esse ânimo um pouco melhor justifique essa melhora de avaliação do governo Bolsonaro.

Isso posto, eu diria que mais importante do que essa pequena melhora é o fato de que o presidente continua resistente. O que, a meu ver, tem a ver com os elementos que sustentam o bolsonarismo. Em um dos meus programas (Fora da Política Não há Salvação), o professor Ednaldo Ribeiro, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), fez uma análise da avaliação de governos a partir da natureza destes, se populistas ou não populistas, com base em artigo dos norte-americanos Ryan E. Carlin e Gregory J. Love. Esses pesquisadores apontam maior resiliência de governos populistas, o que, a meu ver, está relacionado com a questão dos afetos, das identidades. Bolsonaro consegue criar uma identificação com certa base social que passa muito por essa questão de valores comuns, crenças comuns, por uma questão inclusive afetiva do líder carismático. Tudo isso se soma nos 30% que ainda resistem, e que lhe dão força para chegar em 2022, muito provavelmente, com um pé no segundo turno.

Da mesma forma que esse apoio é apontado como fator contra a sustentação de um processo de impeachment, ele também pode influenciar o rumo das investigações da CPI da Covid?

Acho que a CPI avança independentemente do que as pesquisas estão mostrando agora. Mesmo porque, o cálculo que seus membros fazem – pensando na oposição que chamou a CPI – é de que a própria CPI possa servir como instrumento de desgaste do governo. E, nesse caso, a manutenção da aprovação do governo e do presidente no mesmo patamar há muitos meses não é motivo para recuo. Claro que isso mantém a percepção de que não dá para avançar em um processo de impeachment. Nessa situação, um impeachment tem até com chance de ser discutido, mas não de ser aprovado. Pois hoje as pessoas não vão para a rua. Quem vai para a rua é bolsonarista para apoiar o governo, não o atacar.

Mas há outro elemento que nem tem tanto a ver com a questão da popularidade, nem com a disposição dos congressistas, que é o vice-presidente. O general Hamilton Mourão não é visto como alternativa plausível para muita gente no sistema político. Afinal, por que colocar alguém de posições muito próximas do ponto de vista programático, ideológico, ainda que mais sofisticado nas relações, e que de alguma maneira pode sair fortalecido no final? Acho que a ideia, entre a oposição, é de que é melhor apostar no enfraquecimento do Bolsonaro do que na criação de um substituto dele no mesmo campo. E, sob esse ponto de vista, Mourão não vira alternativa. Diferentemente do que aconteceu com o Itamar Franco, ou mesmo com Michel Temer.

Se a situação piorar, se além da CPI da Covid tiver a CPI do Bolsolão, uma CPI da Boiada, chamemos assim, relacionada ao meio ambiente, talvez produza algum desgaste. Na verdade, não faltam frentes onde o governo possa enfrentar problemas. Mas aquelas razões que apontei, afetivas, identitárias, de crenças profundas, seguem presentes. Então, quem acredita em Bolsonaro não deixará de fazê-lo agora porque estão dizendo que ele compra congressista. Para este, ele é um mito, um cristão contra o comunismo. E isso não necessariamente muda com esses eventos.

Não é contraditório que esse grupo – que foi às ruas no 1º de maio – defenda intervenção em favor de suas liberdades individuais?

Isso faz parte do lema ‘pimenta nos olhos dos outros é colírio’. Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim. Essas pessoas consideram que uma intervenção agirá em favor delas e será ruim para os outros. Por isso que não a percebem como problema. No fundo, acho que a noção de democracia que essas pessoas têm é deturpada. É um grupo que não vive bem com a ideia de pluralismo. Mesmo quando dizem aceita-la, é dentro de seu subgrupo. Uma diversidade entre iguais.

No caso das manifestações de 1º de maio, acho que ali tinha também pequeno e microempresário, também microempreendedores individuais (MEI), que se vê como empreendedor, mas que na realidade é um profissional precarizado.  Bolsonaro está capitalizando o cansaço que as pessoas têm da situação: ficar em casa, não conseguir trabalhar, ter sua empresa fechada. Para essas pessoas, o discurso do governo começa a fazer sentido. Mas acho que não é esse o principal caldo de cultura. Há quem veja seu negócio fechar e nem por isso concorda com o governo. Quem vai é quem tem identificação, e que é uma parcela muito maior do Brasil do que talvez gostássemos de admitir. E que, além de tudo, se mobiliza por ele.

Qual base de apoio a Bolsonaro considera menos permeável para a oposição?

Não é um campo fácil. Como disse sobre a corrupção, tenho lá minhas dúvidas de que seja uma questão para o bolsonarista raiz. A cabeça destes é como a dos velhos malufistas, para quem isso nunca foi problema. Corrupção vira pretexto quando se trata de criticar o outro. Isso não passa por uma avaliação racional das questões. Produzir uma quebra nesse apoio, portanto, é difícil, pois teria que acontecer no plano do afeto, não no cognitivo.

Acho que entre os militares não há muito espaço para esse diálogo, pois eles acabaram amarrando seu próprio destino ao destino desse governo. No que considero que eles cometeram um imenso erro, porque no final de contas os militares são uma categoria de Estado, não deveriam estar relacionados a um governo específico. Todo desgaste que esse governo vier a sofrer, será inevitavelmente um desgaste dos próprios militares, ainda que se mantenham como uma instituição com razoável prestígio, maior que o do Supremo e do Executivo.

No caso dos evangélicos, do ponto de vista dos valores, Bolsonaro tem sinalizado claramente que é um presidente deles, que defende a família tradicional, no que os próprios evangélicos acreditam. Não será fácil um candidato de esquerda se colocar aí. Talvez em alguns setores mais progressistas, mas que certamente não são majoritários. Em termos seccionais, é o grupo que mais apoia bolsonarismo. Quem poderia entrar aí? Talvez um candidato de direita moderada, que fale contra a questão das armas, por exemplo. Já entre empresários, é preciso saber de qual grupo estamos falando. Entre os mais pragmáticos, racionais, Paulo Guedes é um cristal que se quebrou, e o próprio Lula já está se movimentando na direção deles. Um candidato ao centro também pode tomar esse caminho.

No caso do centro, como avalia a saída de nomes do DEM para o PSD? Pode-se fortalecer uma frente de oposição?

Pelo que deu para ver até agora, essa terceira via está com dificuldade de se construir. É uma tese mais do que uma realidade. Tem gente tentando se colocar. Quem está em estágio mais avançado de construção da própria candidatura é Ciro Gomes, mas ele já vem candidato de muito tempo, saiu das últimas eleições já como candidato para 2022. A diferença é que está mudando de posicionamento, tentando se colocar como candidato mais ao centro para ganhar o eleitorado antilulista. Mas acho que, por sua trajetória e perfil, Ciro não tem capacidade de ganhar confiança desse eleitor mais à direita. Se hoje tivesse que fazer uma aposta de candidato a ser construído nesse campo, apostaria no ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, que hoje não aparece bem nas pesquisas, mas tampouco se oficializou como candidato. 

Por enquanto, entretanto, estamos claramente para uma polarização entre Lula e Bolsonaro. Mas muita coisa ainda pode mudar. Havendo um desgaste maior de Bolsonaro – o que não é tão fácil de acontecer, pelas razões que apontei –, até poderia haver um segundo turno, daqui um ano e meio, de Lula com esse candidato de terceira via. Porque essa terceira via pode vir a tirar o lugar não do Lula, pois no campo da esquerda não há mais espaço, mas do candidato da direita. Se uma direita civilizada se apresentar com seu candidato, tem espaço para crescer em cima do degaste de Bolsonaro.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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