Um projeto que une gastronomia e inclusão

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Em 2007, William Silvério de Freitas, soldado da polícia militar em Maresias, na costa sul de São Sebastião, no litoral de São Paulo, preocupado com a segurança das crianças que circulavam pelos acostamentos da Rio-Santos, começou a dar aulas de noções de trânsito. Conseguiu arrumar 12 bicicletas e ensinar a garotada a andar de magrela com mais segurança.

Nascia aí o Projeto Buscapé, mais tarde transferido para Boiçucanga, que passou a ganhar musculatura. Em 2016, foi erguida uma sede própria, onde são ministradas aulas de natação, judô, gastronomia, música, atletismo, artesanato, entre outras atividades, para cerca de 170 crianças da região. Muitas em situação vulnerável, sofrendo abusos sexuais, violência física, em famílias desestruturadas.

O projeto ganhou grande impulso quando Eudes Assis, caçula de uma prole de 14 filhos de dona Madalena, se incorporou ao projeto. Caiçara, como a maioria dos habitantes da região, tempos atrás – antes da chegada da estrada asfaltada e dos turistas –, sua mãe secava peixes no varal e estocava carne em latões de gordura de porco para conservar os alimentos. Eudes, então com 13 anos, vendia bolo na praia de Camburi, colada a Boiçucanga, para ajudar no orçamento doméstico. Mas sempre foi fascinado pela culinária.

Depois de fazer um curso de padeiro no Senac, aos 18 anos, entrou no mundo das panelas. Trabalhou em restaurantes famosos, como o Fasano e o Gero, e zarpou para a Europa onde cursou a Le Cordon Bleu, estagiou com Ferran Adriá, do El Bulli, eleito por seis vezes o melhor restaurante do mundo, e trabalhou em restaurantes estrelados.

De volta ao Brasil, explicou para sua mãe que o que ela fazia com os alimentos se chamava confit, palavra francesa derivada do verbo confire, que significa conservar, uma forma antiga de preservar alimentos, aprimorada pelos franceses. Depois de dar consultorias e trabalhar em restaurantes, começou a se engajar no Projeto Buscapé, que é apoiado pela Polícia Militar de Boiçucanga e pelo Ministério Público, ministrando aulas de culinária.

Anualmente, por três dias, organiza o Arraial Gastronômico, onde chefs conhecidos de restaurantes famosos do Brasil preparam pratos à legião de turistas que vão à cidade. Toda a renda é revertida para o Projeto, que sobrevive também de doações. O último Arraial ocorreu nos dias 13 a 15 últimos.

Além de dedicar boa parte de seu tempo ao Buscapé, Eudes e sua esposa, a chef de cozinha Val Matos, estão mergulhados de quinta a domingo no Taioba Gastronomia, restaurante de 44 lugares localizado no Sertão de Camburi, em São Sebastião, numa estradinha despretensiosa, às margens da Rio-Santos, que tem nome de rua Tijucas.

O Taioba mistura a comida caiçara, raiz do chef Eudes Assis, com a sofisticação da comida francesa, passando por construções de pratos que misturam mais um ingrediente: a comida nordestina. Como o nome do restaurante, a taioba, também conhecida como taioba mansa, é uma hortaliça de folhas grandes, rica em nutrientes como fibras, vitaminas A, B e C, e minerais como fósforo, cálcio, potássio e magnésio. É bastante consumida na região, bem como a mandioca, e integra boa parte dos pratos preparados por Eudes e Val. A camisa de todos que atendem no restaurante, jovens da região, tem estampada uma folha de taioba. O filho do casal trabalha como garçom.

Ir ao Taioba Gastronomia é uma experiência única. É um lugar meio escondido, com poucas mesas, despojado de qualquer luxo, mais parecendo uma antiga oficina mecânica adaptada, com portas de aço pintadas “por uma nossa amiga”, me disse Eudes, depois de vir à nossa mesa perguntar se o que havíamos pedido estava bom.

Modéstia e humildade enormes. A lula à provençal, com um molho divino, desmanchava na boca. O camarão na moranga, com arroz com taioba e chips de batata doce, estava indescritível. E a cocada de abacaxi, com sorvete de coco, quase nos fez ajoelhar. A parte ruim é que fica longe do Rio.

Com certeza, a criançada que está tendo aulas com Eudes no Projeto Buscapé pode ser tornar grandes chefs. Ou, no mínimo, saborear delícias que só ele sabe preparar.

Mas, o mais importante: terem alguma perspectiva de vida, numa região onde boa parte da população sobrevive com grande dificuldade.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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