A tributação pós pandemia

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

A pandemia trazida pelo coronavirus colocou o mundo de cabeça para baixo. Um enorme desafio foi colocado para os governos para enfrentar a pandemia, liberar vultosos recursos para manter a economia minimamente funcionando, dar assistências aos mais vulneráveis. Países tradicionalmente conservadores na questão dos gastos públicos, como a Alemanha, por exemplo, abriram os cofres públicos, liberando milhões de euros. Na outra ponta, países mais pobres e em desenvolvimento, com elevadas dívidas, tiveram que implementar programas de assistência, mesmo com o risco de piorar significativamente o já debilitado quadro fiscal, como foi o caso do Brasil.

José Roberto Afonso, articulista da revista Conjuntura Econômica, pesquisador da Universidade de Lisboa, em artigo na edição de fevereiro ressalta que a pandemia carregou em seu bojo um “desafio terrível foi posto às políticas sociais e sua interface com a fiscal e mesmo a tributação. Como reorganizar e financiar, tanto os serviços e as ações de caráter público, bem como os benefícios vinculados a contribuições de empregadores, de empregados e do Estado? O atual estado do bem-estar social, que se consolidou e se espalhou pelo mundo quando da segunda guerra mundial, se apoiava em um pilar: emprego-salário. Antes da chegada da pandemia, já estava delineado um novo fenômeno: cada vez mais usar o trabalho sem carteira assinada. Começou como mera terceirização de mão-de-obra não essencial a um negócio e se espalhou rapidamente, chegando aos salários mais elevados, até como forma de resposta tributária dos empregadores ao peso elevado de impostos e encargos sociais sobre os salários. Por ser dos mais onerados do mundo, o fenômeno brasileiro é mais antigo e avançado do que em outros países. Mas foi ignorado na recente e estrutural reforma previdenciária -  tendo aparecido marginalmente no novo debate da reforma tributária”.

Para Afonso, os pilares dos atuais sistemas tributários estão abalados e, no caso da tributação da folha, constitui o risco mais grave para o Brasil, seja porque aplica alíquotas muito mais altas, seja porque é dos que mais dependem da contribuição previdenciária. Já é certo que com o tempo a automação destruirá, cada vez, mais postos de trabalho, não havendo sinais quantos e quais novos postos que criará – e destruirá. Hoje, na área tecnológica, de trabalhos mais qualificados, já há um grande contingente de pessoas trabalhando fora da CLT, sem um único empregador. Além da digitalização acelerada e tornada irreversível pela pandemia, ela trouxe novos desafios com o tele trabalho que, por sua própria natureza, quebra de vez o vínculo com local e horários fixos, mesmo para os empregados. Mais que isso, surge a figura do trabalhador transnacional, muitos que viram nômades digitais, nas quais aí se quebra de vez o vínculo agora também com a residência, de modo que ele poderá morar em outro país, ser contratado em segundo outro país e prestar serviços a quem está em um terceiro outro país. É certo que o trabalhador irá demandar gastos públicos de segurança, saúde e talvez ensino, dentre outros, no país em que estiver residindo, ainda que temporariamente. É incerto quais e quantos impostos esse trabalhador recolherá e para qual ou quais dos quatros países da hipótese citada.

Não só para saúde pública, explica, e para relações internacionais, nunca o multilateralismo em matéria de administração e também de política tributária se tornou tão necessário - ou até indispensável. Já tem sido levantada a hipótese de imposto de renda sobre corporações com algum padrão mundial – inclusive no FMI e, mais recente, pelas novas autoridades econômicas norte-americanas. Debates e decisões da OCDE e da União Europeia se tornarão mais necessárias e importantes nesse novo normal econômico do antes da pandemia.

Depois que o mundo virou de cabeça para baixo, o que estava no cerne de um dos pecados capitais do pior sistema tributário do mundo, o brasileiro, de ter um sistema paralelo de contribuições que não se incidem apenas sobre salários, agora isso pode se transformar em uma tremenda vantagem. Nenhum outro país no mundo não apenas cravou a seguridade social na Constituição, como diversificou seu financiamento, e contempla diferentes bases de cálculo – também sobre faturamento e sobre lucro, e suas variações.

Contribuições sociais por tributo
Em % do total (2020)

Fonte: RFB. Elaboração: José Roberto

Afonso ressalta em seu artigo que há “oportunidade de se pensar finalmente em criar uma nova política tributária das contribuições que vise não apenas arrecadar por arrecadar, fugindo da descentralização dos impostos e desvinculando parcelas de recursos para orçamento fiscal. Cada uma das atuais contribuições tem uma distribuição entre setores de atividade e entre contribuintes bem diferenciada

O ideal seria reca librar alíquotas e repensar bases de modo a aproximar benefícios de quem contribui para sua geração. Uma contribuição poderia ser remanejada tendo em conta outra. Uma hipótese é se tributar o faturamento, mas permitindo deduzir a folha salarial. Ou mais: o que foi efetivamente recolhido de contribuição sobre esta base, o que permitiria premiar quem contrata com carteira assinada. Também se poderia exigir um tributo tendo em vista uma despesa pública – como a proposta de que o empregador deduza de sua contribuição patronal o que antes era pago pelo Estado como bolsa família ou auxílio emergencial a quem deixou de ser seu beneficiado. Há enorme leques de alternativas por se explorar, mas sempre respeitando o princípio que diferencia impostos de contribuições, que resumidamente pressupõe que se paga em troca de receber, individual ou coletivamente, um benefício ou um serviço estatal”, conclui.

 


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