Três questões sobre a crise na chinesa Evergrande e suas implicações para o Brasil

Livio Ribeiro, pesquisador associado do FGV IBRE

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Desde setembro do ano passado você tem ressaltado em suas análises sobre a mudança regulatória promovida no setor imobiliário chinês, com a qual o governo buscava mitigar a formação de bolhas no setor. Como o episódio da Evergrande deve afetar a linha de ação do governo e as perspectivas de crescimento do país?

As medidas que foram implementadas, especialmente no final do terceiro trimestre de 2020, com a limitação ao endividamento adicional das incorporadoras, eram muito claras na busca por reduzir a alavancagem do setor. No topo da lista das empresas desenquadradas, que não podiam ter nenhum aumento de endividamento a partir da entrada em vigor das novas diretrizes de governo, estava a Evergrande. Ao fazer isso, com duas rodadas adicionais regulatórias este ano - uma com impactos menores, mas que existem, sobre a limitação de empréstimos imobiliários na carteira dos bancos, e logo a mudança de requisitos de classificação de risco para colaterais elegíveis em produtos no shadow banking, nos wealth managements, o governo criou essa forte restrição de fluxo de caixa pela qual a Evergrande está passando hoje. Não acho que essa situação afetará a linha de ação do governo, mas vale lembrar que ela foi gerada por essa atuação. 

Veja, esta não é uma crise igual à do sistema imobiliário americano de 2008/09, em que havia o empacotamento de colaterais muito arriscados dentro dos MBS (mortgage backed Securities, títulos lastreados em hipotecas). Estes eram vendidos como coisas não arriscadas, e aí houve o efeito multiplicador em que pessoas físicas hipotecavam suas casas, compravam títulos, os bancos emitiam, empacotavam, passavam adiante. No caso da China, sabemos exatamente onde estão os passivos na parte do balanços, e não existe esse canal multiplicador. 

Quanto à perspectiva de crescimento, haverá um efeito no setor imobiliário, evidentemente na intermediação financeira, e na parte de real state dentro de serviços. Qual o tamanho? Depende da crise de confiança que vier associada, o que por sua vez depende da atuação do governo, por excelência.

Que nível de intervenção do governo considera adequado para uma melhor absorção do episódio pelos mercados e para a economia chinesa? 

Acho que há três cenários possíveis. O primeiro é aquele em que o governo salva a empresa, que considero ter chance zero de acontecer. O segundo é onde o governo deixa todo mundo se arrebentar - empresas, encadeamentos da cadeia produtiva, pessoas que compraram imóveis e ficaram a ver navios. Acho que esse cenário tem chances baixas de se concretizar, porque tem implicação na confiança, correndo-se o risco de perder o controle, podendo transformar uma crise que não é sistêmica financeira em uma crise sistêmica de confiança. O terceiro cenário, que considero mais provável, é aquele em que o governo não salva a Evergrande; dá-se um jeito na medida do possível na situação dos fornecedores, passando compulsoriamente as obras para outras incorporadoras, cobrindo o prejuízo via fundo de estabilização ou algo do gênero. E se busca salvar o valor do investimento feito pelos compradores dos imóveis, evitando que se desmonte a confiança na poupança em tijolo, que é a poupança por excelência da China. Onde há repressão financeira, tipicamente se busca poupança em ativos reais. A própria Evergrande está tentando fazer esse resgate,  propondo swap de dívida por por imóveis. Mas claramente não está dando certo, porque as pessoas estão com medo de trocar dívida por imóveis que correm o risco de não serem concluídos. Hoje, para se ter uma ordem de grandeza, a Evergrande possui cerca de 800 obras na China, das quais metade está parada. Não é pouca coisa, mas, como disse, considero que haverá um arranjo nesse sentido, que não poderá ser feito diretamente via empresa, mas com participação do governo, alguma instituição paraestatal, ou ao menos forte patrocínio do governo para que outras empresas menos endividadas assumam essas obras e as concluam. 

Como o risco de calote da empresa pode se refletir na economia brasileira no curto prazo, seja quanto à demanda de minério, seja por efeitos vindos do sistema financeiro? E no longo prazo?

O canal óbvio para o Brasil é o efeito no preço dos minérios, que já estava sendo observado e deve continuar, com a chegada desse choque imobiliário. Também é preciso somar a esse cenário o efeito da consolidação do setor siderúrgico, seja pela questão ambiental, seja pela necessidade de corrigir o excesso de capacidade. É um movimento que já registrou diversas rodadas, em 2015, 2017/18, e agora outra. O minério teve uma forte alta no ano passado, devido ao movimento forte capitaneado pelo para uma recuperação em V, via construção civil. Mas já no terceiro trimestre de 2020 o setor andava de lado, e agora possivelmente irá contrair. Não será um tiro de morte, mas vai machucar o setor siderúrgico e a produção de minério de ferro. Quando falamos de efeito secundário, via sistema financeiro, vemos agora esse contágio provocado pelo susto e pelos questionamentos sobre a Evergrande. Isso bateu na moeda brasileira, houve um sell-off (onda de venda de moeda), o que não aconteceu de maneira tão forte com a moeda australiana. É a história de sempre. Em um evento de estresse, entre dois países expostos mais ou menos da mesma forma, o menos organizado perde mais. 

Os efeitos de longo prazo ainda dependerão. Se a crise da Evergrande sair do controle e provocar uma crise de confiança que derrube o mercado imobiliário chinês - cujas chances de acontecer considero muito baixas - começaremos a flertar com um cenário de recessão local e global. Provavelmente, o que acontecerá é que teremos um curto prazo ruim, com mortos e feridos no meio do caminho, mas sem razões objetivas para sair do controle. Relembrando: obviamente o fato gerador é o superendividamento da Evergrande, mas a fagulha desse processo de colapso controlado quem acende é o governo, quando passa as diversas medidas regulatórias que comprimem a capacidade das incorporadoras de maneira geral de girar a manivela. E essa é uma atividade que precisa da roda girando, de endividamento, de turnover, e tudo o que o governo fez na verdade foi colocar areia nessa engrenagem, expondo mais empresas ao risco de quebrar.

 


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