Sem definição de trajetória da despesa futura, melhora de indicadores fiscais não acalmará curva de juros

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

O Brasil tem enfrentado o período de pandemia com indicadores fiscais melhores do que as projeções iniciais apontavam. O reflexo na curva de juros das incertezas quanto à trajetória futura das despesas, entretanto, deixa claro que o país hoje está sob risco de comprometer seu horizonte de recuperação. O alerta foi deixado pelo ex-secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, e os secretários Renê Garcia (Fazenda-PR) e Cristiane Alckmin (Economia-GO) no encerramento de dois dias de webinars em comemoração dos 60 anos da FGV EPGE.

Funchal, que pediu exoneração do cargo dia 21/10, após o governo anunciar a intenção de furar o teto para garantir um benefício do Auxílio Brasil de R$ 400 em 2022, ressaltou no evento online que este ano o governo tem conseguido um desempenho melhor que o esperado nas três variáveis importantes de precificação da dívida: o resultado primário, a razão dívida/PIB e o nível de reservas internacionais. No caso do primário, ele lembrou que a atual previsão do governo é de fechar 2021 com um déficit de 1,6%, menos da metade da estimativa do início do ano, de 3,5%. “Deveremos fechar a despesa primária como proporção do PIB em 19%, mesmo patamar do último ano do governo Temer. Em 2022, poderíamos chegar a 17,5%, mas isso ainda depende da discussão sobre precatórios e Orçamento. Na pior das hipóteses, deve-se chegar a cerca de 18,5%, o que ainda assim é uma redução em relação a 2018”, apontou. No caso da projeção para a dívida bruta, cuja atual previsão do governo é de fechamento do ano em 81,2% do PIB, Funchal ressaltou que os três principais elementos que colaboraram para esse resultado foram a recuperação econômica, o efeito preço e a redução do déficit primário. “Com isso, a dívida tomou a trajetória próxima da imaginada antes da pandemia”, afirmou. No caso das reservas internacionais, o ex-secretário lembrou que a queda observada no período mais crítico da pandemia em 2020 reduziu drasticamente a capacidade de cobertura, chegando próxima ao limite prudencial, de três meses de vencimentos à frente. Mas que, com o trabalho de aceleração de emissões, entre outras medidas como a de desvinculação de recursos de fundos, o governo conseguiu recuperar esse colchão de liquidez.

Funchal destacou que esse desempenho melhor que o esperado, entretanto, não é suficiente para acalmar o mercado, que hoje reflete na curva de juros sua insegurança quanto ao futuro das despesas. “É a discussão que temos agora sobre precatórios, Auxílio Brasil e o Orçamento. O dever é endereçar o mais rápido possível esse debate para trazer previsibilidade sobre a trajetória de gastos para reduzir essa curva”, diz.  

Os secretários Renê Garcia e Cristiane Alckmin apontaram a preocupação, tanto no nível federal quanto no subnacional, de se aproveitar uma conjuntura de receita favorável para assumir responsabilidades de cunho permanente. “Nos estados, é evidente que a aparente melhora das contas públicas (ajudada pela alta da inflação, como anteriormente apontado por Garcia ao Blog) está sendo percebida pelos governadores como permanente, e isso é perigoso”, afirmou o secretário do Paraná. Alerta que também foi destaque da seção fiscal do Boletim Macro IBRE de outubro, que apontou, entre outros riscos, o da pressão que essa melhora na arrecadação gera para recomposição salarial de servidores, especialmente nos estados em que os governadores concorrem à reeleição. No evento, Garcia ressaltou a armadilha das vinculações constitucionais, que obrigam a ampliação de gastos em educação e saúde na proporção do aumento da receita, por exemplo, havendo ou não necessidade. “Se aumenta a arrecadação, as vinculações aumentam, o que gera incentivo à criação de mais gastos . Então aquele recursos que deveria formar um caixa transitório para fazer frente a políticas anticíclicas acaba virando despesa permanente, contaminando esse processo”, descreveu, indicando que essa dinâmica afeta negativamente a percepção dos investidores.

Cristiane, por sua vez, alertou para o risco de se criarem novas medidas de cunho temporário, como o indicado pelo governo para o benefício de R$ 400 do Auxílio Brasil, que acabaria no final de 2022. “Sabemos que qualquer medida de incentivo fiscal, por exemplo, que se coloca de forma temporária depois é difícil de tirar. Veja o caso da desoneração da folha. No campo social, a situação fica ainda mais delicada frente à conjuntura que vivemos, de aumento da parcela da população economicamente mais vulnerável”, afirmou Cristiane. A secretária defendeu a necessidade de se perseverarem nas reformas estruturais, em especial a administrativa, para a contenção dos gastos com pessoal. “O grande problema fiscal que temos hoje é a folha de pagamentos. E, para isso, é necessário que se reduza o teto para gastos com pessoal no longo prazo, para irmos ajustando. Se não fizermos reformas estruturais, ano que vem já teremos outro cenário, em que a arrecadação não será ajudada pela inflação da forma como vimos este ano” afirmou.

Garcia defendeu o avanço, assim que se consiga um debate produtivo entre Executivo e Congresso, da reforma tributária, indicando que as renúncias fiscais de ICMS acumuladas ao longo dos anos desestruturaram o poder de arrecadação dos estados. “O cálculo dessa renúncia não obedece a uma metodologia única, e por isso é difícil de mensurá-la. No Paraná, quando cheguei, ela era declarada em R$ 1 bilhão; hoje, calculamos essa renúncia em R$ 30 bilhões”, afirmou. “É preciso modernizar o sistema, com uma revitalização dos impostos com um IVA moderno que amplie a capacidade de arrecadação, em um ambiente mais racional e progressivo." Entre os riscos fiscais para 2022, além de uma queda na perspectiva de arrecadação e as pressões por gastos decorrentes de ano eleitoral, Garcia alertou para a aprovação do PLP 11/20, que altera a base de arrecadação do ICMS sobre os combustíveis  - e pode gerar uma perda de arrecadação em torno de R$ 32 bilhões, montante semelhante ao do pacote de ajuda do governo na pandemia - e do PLP 32/21, que regulamenta cobrança do diferencial de alíquota de ICMS em operações envolvendo produtos e prestações de serviços ao consumidor final localizado em outros estados. O secretário também citou a reforma do Imposto de Renda, com impacto na arrecadação dos estados estimado em R$ 13 bilhões.

 


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