“Sem ajuda, metade das empresas de ônibus urbanos não chegam ao final de 2021”

Otávio Vieira da Cunha Filho – presidente executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU)

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Se para o PIB brasileiro o fechamento de 2020 foi menos pior do que o estimado no período mais crítico da pandemia, para as operadoras de ônibus urbanos e metropolitanos essa experiência foi inversa. De acordo ao Boletim lançado nesta quarta-feira (27/1) pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), no segundo trimestre do ano passado as estimativas eram de terminar 2020 com 80% do número de viagens realizadas por passageiros em relação a 2019, e 100% da frota operando. Mas o ano fechou com 61% da demanda usual e 80% da frota em circulação.

De acordo à NTU, essa queda resultou em um saldo de empregos negativo em 61,4 mil postos, e um prejuízo real acumulado de R$ 9,5 bilhões de março a dezembro de 2020. “Isso já descontadas as ajudas que o governo deu de forma horizontal em termos de redução de jornada, salarial, e suspensão de contrato”, diz Otávio Vieira da Cunha Filho, presidente executivo da NTU.

Cunha conta que desde o início da pandemia o setor buscou ajuda direta do Governo Federal, junto ao Ministério da Economia. Os esforços resultaram no PL 3364, que prevê um repasse emergencial de R$ 4 bilhões a estados e municípios com mais de 200 mil habitantes, além da concessão de benefícios fiscais para o setor com vigência até o fim de 2022. O PL foi aprovado, mas integralmente vetado pelo Executivo, veto esse que deverá ser analisado pelo Congresso até 18 de fevereiro. “O que estamos vislumbrando é um crescimento do endividamento. Sem essa ajuda, metade das empresas atuais não chegam ao final de 2021”, afirma.

O presidente da NTU afirma que o impacto da pandemia veio agravar o efeito de uma série de fatores, alguns estruturais, que já vinham corroendo a sustentabilidade do setor. Entre eles, uma queda significativa da demanda, especialmente na última década. “De 1994 a 2013 – época das manifestações cujo mote inicial foi o aumento da passagem –, o transporte coletivo urbano registrou uma queda de 25% no número de usuários; de 2013 a 2019, perdeu outros 26%. A queda até 2013 foi menos sentida porque foi de certa forma compensada pelo aumento das cidades, um crescimento vegetativo da população. Mas a de 2013 para cá foi mais abrupta, e sem condições de ser equilibrada via tarifa”, diz. Dentro dessa transformação, ele aponta outros elementos que intensificaram o impacto para o setor, da redução da velocidade comercial com o trânsito – fruto do aumento de carros, pressionando o custo e reduzindo a previsibilidade das chegadas e partidas – à influência do transporte por aplicativo. “A entrada desse transporte sob demanda também alterou nosso equilíbrio porque, diferentemente do apregoado, ele não se limita a complementar a primeira milha, ou a milha final, como dizem. Ele feriu de morte a demanda de curta distância que financiava o sistema, por ter mais renovação de passageiros e compensar a operação deficitária das linhas longas”, afirma.

Cunha defende que a saída para o transporte urbano coletivo depende de um trabalho em duas frentes: insistir na necessidade da ajuda emergencial vetada pelo presidente, para salvar as empresas no curto prazo; e defender a aprovação de um novo marco legal para o setor que dê sustentabilidade à operação, cuja proposta já foi apresentada ao Ministério de Desenvolvimento Regional e à Secretaria de Infraestrutura do Ministério da Economia. O Marco Legal defendido pelo NTU, além de outras associações como a dos transportadores de passageiros sobre trilhos (ANPTrilhos), é formado por um tripé temático. A primeira ponta é de mudança dos contratos do atual modelo em que o risco da queda de demanda recai todo ao concessionário para um tipo de concessão patrocinada em que o setor passe a ser remunerado pela produção do serviço, e não mais por passageiro transportado. “Nesse modelo, parte dos recursos seria originário da passagem paga – mas sem guardar relação com o custo real do serviço – e outra parte viria de recursos da União estados e municípios, ou fundos extra tarifários que possam ser constituídos para subsidiar o passageiro e melhorar a qualidade do transporte”, explica. Ele afirma que esse tipo de concessão patrocinada, que estaria no âmbito de proteção da Lei das PPPs, poderia abrir caminho para que obras de infraestrutura como a construção de corredores preferenciais também pudessem ser transferidas para a iniciativa privada, “permitindo prazos de concessão mais longos, com as empresas assumindo a responsabilidade dessas obras”.

A segunda perna trata do financiamento do sistema. Do lado do custeio, a proposta prevê desonerações, mudança no financiamento de gratuidades – “que poderiam ser bancadas por fundos dentro das políticas públicas para estudantes e idosos, como o FNE e o contemplado no Estatuto do Idoso”, explica Cunha –, e a criação de fontes extra tarifárias, como uma sobretaxa no licenciamento de automóveis. “A ideia de o transporte individual ajudar a bancar o transporte público é assumida em vários países. E não precisa ser uma taxa expressiva. Se a taxa de licenciamento aqui de Brasília, por exemplo, passasse os atuais R$ 79 para R$ 100, sozinha já bancaria 15% do custo do transporte urbano”, afirma. Nesse campo, a proposta também contempla linhas de financiamento para modernização de frota, “o que inclui a possibilidade de mudança de matriz energética e novas tecnologias para a gestão do transporte”.

A terceira parte da proposta de marco legal trata da qualidade e produtividade, e inclui diversas frentes. Entre elas, o incentivo a que municípios promovam um escalonamento do horário de funcionamento de atividades comerciais. “Hoje se faz a conta de seus passageiros por metro quadrado no horário de pico, mas todas as atividades em geral começam no mesmo horário. Isso implica grande necessidade de equipamento para transportar as pessoas nas duas horas de pico pela manhã, e outra duas à tarde, com ociosidade no restante do dia. Estender esses horários de pico, com um reescalonamento das atividades possibilitaria um melhor atendimento com uma frota menor”, diz Cunha, ressaltando que essa regra favoreceria também as condições dadas pela pandemia, que podem perdurar. O projeto também prevê o estabelecimento de padrões de eficiência, qualidade e desempenho, que seriam determinados pela União e perseguidos pelos municípios.

Cunha afirma que os poucos casos de operações no Brasil ainda mantêm algum equilíbrio levam algum desses princípios adiante. “Há alguns anos a cidade de São Paulo já possui regras de subsídio que preveem uma cobertura de 30% dos custos do transporte pelo orçamento da prefeitura. Em Brasília, essa cobertura é de 50%. São dois municípios que hoje se destacam. Curitiba e Belo Horizonte, que desde os anos 1970 fizeram o dever de casa de construir redes bem racionalizadas, portanto com custos menores, também possuem uma situação melhor. Salvador, Vitória e Goiânia vêm trabalhando para evitar um colapso. Mas precisamos de uma mudança mais ampla”, diz, reiterando que a situação da maioria dos 2.901 municípios brasileiros que hoje contam com transporte público organizado é de preocupação. “Há operações que ainda se sustentam criando endividamento, às vezes tomando recursos para capital de giro, outras criando dívidas tributárias, às vezes às custas da depreciação da frota. Este último é o pior dos mundos, pois a frota é o principal ativo de uma companhia. E assim o setor se descapitaliza a olhos vistos”, conta. Para a maioria das operações, Cunha afirma que o colapso é iminente. “Não acontecerá em todos os lugares ao mesmo tempo, mas existirá. O Rio de Janeiro é um exemplo. Nos últimos três anos, 14 empresas já fecharam as portas, e há outras para fechar. Isso não foi muito sentido porque os consórcios tiveram que absorver os deficitários, mas aconteceu”, diz. “Em Salvador também houve um caso recente, de um consórcio de 800 ônibus que entregou as chaves das garagens para o prefeito operar, porque não tiveram mais condições.” O presidente da NTU destaca que a gravidade da situação forjou as empresas para um cenário de mudanças, e defende a urgência na discussão do novo marco legal. “É preciso ter uma única visão de melhoria de comportamento, e até de racionalização das redes públicas. Hoje há muitos municípios sem pessoal qualificado para estabelecer uma rede enxuta, o que aumenta os custos para todos. Mas todos estamos sofrendo, das empresas a ponto de fechar, ao passageiro insatisfeito com a qualidade do serviço. E, para a sobrevivência do transporte público, temos que mudar.”

 


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