“Se o desejo é a retomada econômica, o caminho é a vacina”

Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (Ibá)

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Suas gestões como prefeito e governador são marcadas por ajustes fiscais - um dos principais desafios atuais do país. Levando em conta que 2021 será um ano decisivo para a manutenção do teto de gastos como âncora, considera que será preciso privilegiar reformas que foquem resultados de curto prazo?

Ao longo de minha trajetória, conduzi três programas de ajustes fiscais. O primeiro, no início da década de 1990, na Prefeitura de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo. Os outros dois foram no governo estadual, que liderei entre 2003-2010 e de 2015-2018.

Depois de entregar um governo super ajustado em 2010, tive de operar um ajuste fiscal que reorganizasse novamente as contas estaduais, durante o meu terceiro mandato.

Essa recorrente necessidade de se fazerem ajustes evidencia que há alguma coisa errada no setor público nacional. O diagnóstico é claro: trata-se de uma estrutura onde as despesas obrigatórias se ampliam em percentual superior ao crescimento da economia e até da inflação do período. Isso mostra que nós estamos desafiados a reformar a estrutura pública brasileira, para que ela deixe de ser aprisionada por interesses de grupos organizados e passe a estar a serviço do conjunto da sociedade.

Dito isso, acerca da desafiante agenda 2021, é importante notar que, antes mesmo da pandemia, o país já não estava bem. Estava muito endividado, com crescimento medíocre, baixo investimento público e privado, alto desemprego, entre outros. A pandemia trouxe importantes demandas, como financiamentos do SUS e auxílios emergenciais, ampliando o tamanho do problema no Brasil. Assim, o país vai sair desta crise extremamente endividado, com um alto desemprego e sem estrutura para dar suporte a uma retomada sustentável. E toda essa situação, dramaticamente agravada, só aumenta a urgência das medidas a serem tomadas.

Sobre o tipo de intervenção que precisa ser feita, é preciso dizer que o governo vem perdendo tempo pelo menos desde setembro, quando estava claro o que precisava ser empreendido. Não há solução mágica, indolor. A superação de crises depende de decisões e ações humanas, considerando que, muitas vezes, há custos. O maior erro é achar que um problema se resolve sozinho e que há saídas fáceis para problemas difíceis. Mas é preciso lembrar que, politicamente falando, não há custo maior do que aquele pago por quem se dispõe a vender terreno na Lua, ou seja, vender ilusões.

E qual é o dever de casa que está sendo negligenciado? Podemos falar de ações de curto prazo, como a PEC emergencial e a introdução dos gatilhos. Temos a necessidade de reestruturar a política de transferência de renda. E isso precisa ser feito com dinheiro do orçamento, pois não tem dinheiro novo. Assim, é necessário buscar recursos em programas sociais ineficientes que estão no orçamento. É, ademais, preciso fazer pelo menos duas reformas estruturantes para garantir o aumento da produtividade da estrutura econômica do Brasil, as reformas administrativa e tributária.

Mas, para isso, é necessário colocar a mão na massa e exercer a liderança. É preciso enfrentar o debate e, muitas vezes, passar por algum desgaste de curto prazo, para que haja alguma colheita de médio e longo prazo. Esse é o processo da vida democrático-republicana.

Analistas preveem um início de ano duro, com pressão inflacionária no primeiro trimestre, baixa reação inicial do mercado de trabalho, e um horizonte de incertezas que vão da extensão do contágio e início da vacinação à necessidade de ser mais austero nos gastos. Como, em sua opinião, seria possível construir uma narrativa otimista no país que ajudasse a reverter expectativas negativas sem ampliar as incertezas?

Diante da tragédia humanitária que é a perda de 190 mil irmãs e irmãos brasileiros, diante da gravíssima retração da atividade econômica, o otimismo hoje se resume a uma palavra: vacina. E nesse caso, estamos com pouca possibilidade de inspiração. Isso porque sequer temos calendário de vacinação. Estamos nas piores posições planetárias quanto à efetivação da imunização, que demanda variedade de imunizantes e muito tempo.

O Brasil está vivendo uma sucessão de crises: econômica, ético-política, sanitária... Como disse, já estávamos mal antes da tragédia da pandemia e, se não bastasse, estamos fazendo a travessia deste tempo infame sob uma desarticulação inaceitável. Como estava dizendo, ignoramos a única solução para a pandemia, que é a vacina. Ao contrário da maioria dos países, apostamos as fichas num único imunizante, que teve de refazer a terceira fase de testes. E os insumos para a vacinação?    

Assim, o grande desafio é, em algum momento, a liderança deste país mudar o rumo das coisas, porque se o desejo é a retomada econômica o caminho é a vacina. É um processo longo, mas que precisa ser iniciado já. Só isso cria condições para a plena retomada. E aqui também já estamos perdendo um tempo precioso, vital, para as vidas e para a economia.

Em entrevista à Conjuntura Econômica em janeiro de 2020, o senhor afirmou que, para quebrar polarizações e desenvolver um ambiente adequado à discussão de políticas públicas, seria preciso evitar o estigma em torno da palavra centro. Como acha que essa construção de uma forma mais equilibrada de política poderá se desenvolver, tomando em conta o atual cenário? Qual relação isso teria com os atuais partidos de centro?

As categorizações, classificações ou rotulagens que organizaram a vida ao longo dos últimos séculos perderam o sentido neste novo milênio. Diante de um novo modo de viver, produzir, pensar e projetar o futuro, é preciso imaginar novas formas de nomear os movimentos que englobam a sociedade civil (organizações) e a sociedade política (instituições). Os antigos rótulos (direita, centro, esquerda e suas variantes) não contemplam a diversidade e a complexidade deste tempo que nós estamos vivendo.

Mas se não temos ainda como nomear os movimentos sociopolíticos, já podemos ter uma visão clara de quais são eles. No caso do Brasil, são três: aqueles que ocupam o governo central, aqueles que estiveram recentemente por lá, e os que não participam desses contingentes, que são a maioria no país. Assim, o desafio é, nesse campo que é majoritário do ponto de vista da sociedade, estabelecer um líder ou líderes que representem esse segmento perante o conjunto da população brasileira.

Líder ou líderes que consigam pensar e defender a modernização da economia, a refundação do estado brasileiro e ao mesmo tempo assumir um forte compromisso de quebrar a coluna vertebral da desigualdade social que marca a história do país. Um líder ou líderes que consigam chegar neste país de carne e osso e se mostrarem como alternativa competitiva, viável, bem articulada, em sintonia com a alma e as demandas da maioria dos brasileiros.

Mas se poderia perguntar: há tempo para isso? Sim, até 2022, e não é janeiro de 2022, há uma eternidade. Mas é preciso ter em mente que 2021 será essencial nesse processo de fermentação que nos legará um líder ou líderes que compreendam, assumam e expressem os mais fortes desejos da maioria dos brasileiros.

Aqui acho importante uma outra ponderação, acerca do pragmatismo cívico que deve orientar esse processo. Eu não tenho nenhuma restrição a ambições pessoais. Isso faz parte de um ambiente de liberdades democráticas e mesmo de fomento da vida política, além de o desejo ser o motor mais imprescindível para qualquer movimento que se faça na vida. Mas o que não faz sentido é tentar impor uma vontade pessoal a qualquer custo.

Na vida, mas especialmente na política, o desejo precisa estar condicionado à sua viabilidade. Então, se em algum momento uma liderança altamente motivada por seus anseios se colocar inviável numa disputa, tem de abrir espaço para aquela que, igualmente motivada, esteja competitiva. A responsabilidade com o presente e o futuro do país deve inspirar e organizar os nossos desejos, ainda que eles tenham origem na nossa motivação mais pessoal, sem a qual não se sustentam.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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