“Se não tivéssemos um governo tão errático, estaríamos sem ameaça inflacionária”

Raul Velloso, consultor econômico, presidente do Fórum Nacional INAE

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Qual sua avaliação da PEC emergencial que vai liberar a nova rodada de auxílio emergencial?

No formato em que segue para a Câmara, a PEC aprovada no Senado limita em R$ 44 bilhões a verba para o auxílio emergencial em 2021, valor esse que não precisará se submeter aos limites estabelecidos pelas metas fiscais, ao teto dos gastos e à regra de ouro. Considero um erro impor esse limite. Lembre-se que no início da pandemia Paulo Guedes declarou que com 3, 4 ou 5 bilhões de reais aniquilaria os efeitos da pandemia (entrevista à revista Veja, 13/3/2020). Só com auxílio, gastou-se cerca de R$ 300 bilhões. É muita diferença entre 300 e 44. Como faremos se a pandemia não ceder?  Com a população vivenciando mortes, desemprego, passando necessidade, você acha que o Congresso não aumentará essa verba? Por isso, considero que esse limite deveria ser mais alto desde já.

Além disso, o projeto estabeleceu gatilhos que serão acionados se, futuramente, as despesas obrigatórias ultrapassarem 95% do total sujeito ao teto - algo que, se estima, tenderá a ocorrer em 2025. Nesse caso, ficarão proibidas uma série de ações especialmente na área da política para o pessoal em atividade, e se prevê ainda uma redução expressiva de incentivos fiscais. Acho que uma pandemia de tamanha gravidade deve ser tratada como tal, separadamente, sem se colocarem cláusulas de compensação para contrabalançar os efeitos expansionistas sobre o gasto público. Além de se tratar de uma visão equivocada, dispersam-se as ações do mundo político, normalmente refratário à aprovação de medidas de forte impacto negativo sobre o bem-estar dos grupos atingidos, pondo em risco a viabilização da parte mais importante, que é o auxílio financeiro às classes menos favorecidas.

Vários economistas defendem a necessidade dessas contrapartidas. O pesquisador do FGV IBRE Fernando Veloso, por exemplo, afirmou recentemente que a ausência dessa sinalização no campo fiscal poderia resultar em pressão inflacionária, que hoje já está no radar dos analistas, o que acabaria anulando o benefício de auxílio. O senhor concorda que é preciso dar um aceno de responsabilidade fiscal?

A ameaça de inflação que vemos decorre basicamente dos erros do governo, que fica tomando decisões a esmo, como a da mudança da presidência da Petrobras, o que se reflete na taxa de câmbio. A visão que predomina no mercado brasileiro é a de que se não cortar gasto, mesmo tendo a quantidade de reservas internacionais que temos, a inflação sobe. Mas o que vemos hoje não é porque estamos gastando mais. Se não tivéssemos um governo tão errático, estaríamos sem nenhuma ameaça inflacionária.

Essa ideia é completamente inadequada diante de uma pandemia de tamanha gravidade, num contexto de mudança de percepção nos meios acadêmicos mundiais sobre quanto se pode aumentar o gasto público sem efeito relevante sobre a inflação. Com exceção de casos em que a economia esteja superaquecida, o papel das taxas de juros no combate à inflação é praticamente inexistente, mas provoca recessão. 

Assim, se as medidas de compensação do efeito expansionista do auxílio sobre o gasto total não funcionarem no curto prazo, não há tanto problema. O que precisamos é fazer com que o PIB cresça um pouco mais que a Selic real. Se a economia crescer um pouquinho, e a taxa de juros real estiver próxima de zero, a dívida cai. 

Veja, mesmo com ameaça inflacionária, acho que subir a taxa de juros e desaquecer a economia é burrice. Como dirigente, nunca faria isso. Preferiria correr o risco de ter mais inflação do que ver gente passando fome na rua. Com o acirramento da pandemia, a dificuldade das pessoas em realizar alguma atividade, ainda que informal, é grande.

Ao invés de abrir espaço para um auxílio mais longo, não deveríamos priorizar a revisão do Bolsa Família?

Acho besteira. Esse é um assunto que tem que ser discutido entre especialistas, com exposição de técnicos a parlamentares, até se chegar em uma alternativa. O sentido de urgência é evitar tanta morte e tanta gente passando fome. Mas o tempo inteiro queremos tratar de tudo ao mesmo tempo.

Veja o que está acontecendo em outros países, como os Estados Unidos. O Congresso esteve concentrado em discutir o auxílio.

Não seria mais adequado tomar como comparação outras economias similares ao Brasil?  

Não. Talvez não possamos comparar a intensidade, mas a natureza tem que ser igual. Dias atrás o ministro da Economia disse que se não houvesse controle de gastos, em seis meses viraríamos a Argentina, e a Venezuela em um ano e meio. Como isso pode acontecer com um país que tem US$ 350 bilhões em reservas? Então, posso fazer o mesmo tipo de política que os Estados Unidos, variando a disponibilidade de caixa. Não vou aumentar a base monetária em 15 vezes, mas talvez em 8. A diferença é de grau, não da definição do que fazer.

Esta semana, representantes dos estados brasileiros estiveram em Brasília preocupados com a gestão da pandemia, incluindo a aquisição de imunizantes. Considera que, diferentemente de 2020, em que esses entes fecharam com um superávit maior do que em 2019, na média, este ano os estados enfrentarão mais pressão fiscal? 

O que a União vai fazer e os países estão fazendo é emitir moeda, e depois transformar parte disso em dívida. O Japão tem mais de 200% do PIB de dívida, aqui trememos nas pernas porque está perto de 90%. Mas os estados não conseguem emitir moeda, nem aumentar a dívida, sem autorização da União, e o presidente está em enfrentamento direto com Doria, furioso porque o STF deu a governadores e prefeitos o direito de definição de lockdown. Criou-se uma disputa em vários aspectos que não deveria acontecer diante do grave quadro pelo qual passamos. Acho que o ideal hoje seria permitir que os estados recebessem recursos, ou deixassem de pagar o serviço da dívida, desde que esses recursos fossem usados no combate à Covid-19, seja para comprar vacinas, seja para equipar hospitais. E a União ficaria responsável por monitorar o devido uso desse dinheiro. 

O senhor faz parte do conselho de especialistas que está assessorando o governo do Rio de Janeiro na elaboração de um plano para continuar dentro do Regime de Recuperação Fiscal (RRF). O que tem aconselhado ao Estado? 

Tivemos a primeira reunião esta semana, e o que propus foi fazer uma discussão nacional, pois as exigências previstas na lei complementar 178, aprovada em janeiro, são duríssimas de se aprovar. Muitas tarefas de ajuste têm sido feitas pelos estados candidatos ao RRF. Mas o que resta é o mais complexo. Por exemplo, como esperam demitir funcionários dos poderes Legislativo e Judiciário? Para mim, são medidas sem noção de viabilidade política.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Subir