“Se continuarmos aprovando uma reforma por governo, perderemos definitivamente o bonde da história”

Fabio Giambiagi, economista do BNDES

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Fabio Giambiagi é conhecido por sua incansável provocação do debate sobre determinantes do crescimento sustentável do país. O livro O Futuro do Brasil, lançado há poucas semanas, é a sétima coletânea que o economista organiza – entre dezenas de livros de sua autoria –, focada na reunião de planos e defesas de reformas necessárias para colocar o país nos trilhos. Para compensar sua frustração sobre inúmeros temas que se repetem depois de 20 anos da primeira coletânea, Giambiagi laçou mão de duas premissas. “Perguntei a líderes de hoje quem acham que poderia estar sentado em sua cadeira daqui 15 anos. E convidei os indicados para escrever”, diz, reforçando a ideia prospectiva do título da obra. A segunda premissa foi incluir novas temáticas, que vão da expansão dos meios de pagamento ao big data e à “uberização” das relações trabalhistas. Nesta conversa, Giambiagi afirma que seu trabalho o ensinou que a tecnocracia não vence o jogo sozinha, mas defende que a política brasileira precisa absorver o senso de urgência de algumas reformas.

O que a seleção de novos autores trouxe de diferente na abordagem de sua nova coletânea?

Quando se trata dos temas históricos, como os desafios da questão fiscal que discutimos há 25, 30 anos, a análise não difere tanto, pois são os mesmos problemas. O que eu noto é uma preocupação muito grande da nova geração da defesa de políticas baseadas em evidências, muita preocupação em olhar o que os dados dizem. E no último bloco do livro, que trata do que chamei de novos desafios, é natural que eles os desenvolvam com muito mais facilidades do que por especialistas que pertençam à minha geração.

Alguns desses temas históricos, como as reformas tributária e administrativa, hoje fazem parte da agenda do Executivo e Legislativo. Considera que haverá condições de avanço?

Em geral, tecnocratas como eu nos formamos com um tecnicismo arrogante, e só na vida é que vamos aprendendo como o resultado daquilo que efetivamente pode ser aprovado vai depender da interação entre a técnica e a política. Aprendemos, ao longo das últimas décadas, que as reformas andam quando a política funciona. A não ser que haja uma situação de percepção de o país está à beira do abismo. Nesse caso, mesmo que a política não funcione muito bem, às vezes se consegue aprovar reformas, pelo temor das consequências de não se fazer nada. No caso brasileiro, no período recente, a política conseguiu entregar um pouco no começo do governo Temer, antes do famoso Joesley’s Day, e em 2019 quando houve uma coincidência feliz entre os interesses do Executivo e Legislativo naquela votação fantástica de 380 votos na Câmara de Deputados em favor da reforma previdenciária. Agora a política está um pouco conturbada, particularmente no contexto da disputa da liderança das casas legislativas. Veremos se depois de fevereiro, uma vez dirimida essa questão, seja possível retomar a agenda. Sou parcialmente cético em relação à possibilidade de se aprovar uma agenda ambiciosa – tampouco acho que haja razões imaginar que 2021 seja perdido. Provavelmente, vamos aprovar um escopo restrito de reformas. 

Depois da Previdência, qual projeto de reforma considera que amadureceu mais?

Há uma frase do romancista francês Victor Hugo que escolhi como epígrafe de um livro de coletâneas que publiquei há 12 anos, da qual gosto muito: “Nada é mais poderoso do que uma ideia cujo o momento tenha chegado”. No caso da questão Previdenciária, fiz parte desse debate desde a década de 1990. Por um tempo, eu, Paulo Tafner, Marcelo Caetano, entre outros colegas, nos sentimos pregadores no deserto, pois defendíamos a reforma antes de seu tempo ter chegado. Por outro lado, nesses mais de 20 anos acabamos ajudando para o amadurecimento desse debate. Tanto que, nos últimos anos, o tema previdenciário parecia estar mais maduro do que outras reformas da quais se falava muito, mas de que havia pouca clareza.

Com a aprovação da reforma previdenciária em 2019, me parece que o primeiro lugar da fila passou a ser assumido pela reforma tributária, que também é um assunto que já vem sendo discutido há muitos anos, chegou a um grau de clareza maior do que existia há alguns anos, mas onde, de qualquer forma, o papel de coordenação do governo federal para avançar em questões controversas e complexas é absolutamente fundamental. Lembremos novamente a situação da reforma previdenciária: quando o governo atual assumiu em 2019, havia uma proposta colocada que tinha sido objeto do relator e deputado Arthur Maia (PPS-BA) que tinha encontrado dificuldades para avançar no governo Temer. E o governo atual ouviu as diversas propostas, negociou com Rodrigo Maia (DEM-RJ), e com o papel-chave na época desempenhado pelo então secretário Especial da Previdência Rogerio Marinho (hoje Ministro do Desenvolvimento Regional), avançou-se muito no diálogo e se conseguiu costurar uma proposta apoiada em larga margem. Até agora, no caso da reforma tributária, esse papel não foi exercido, ainda não há uma proposta integrada, prevalecendo um contexto de certa confusão que precisa ser resolvido para que se possa avançar. Acho, modestamente, que o governo perdeu seis meses chaves entre outubro de 2019, no fim do debate da reforma da Previdência, e março deste ano. E aí veio a pandemia, que atropelou literalmente o mundo inteiro, e gerou um contexto onde era difícil avançar.

Começamos 2020 com o consenso entre governadores em torno de uma proposta de adequação da PEC 45 (que une os impostos 5 impostos sobre consumo em um só IVA), e terminamos com o questionamento desta pelos municípios, especialmente as grandes cidades, que passaram a aderir ao Simplifica Já, por este preservar o ISS em sua esfera de poder. E sem o apoio do governo a alguma das reformas mais amplas. Podemos chegar a bom termo?

Considerando que o assunto tem complexidade que vai além da minha expertise, pois está associado a questões fiscais mais amplas, tenho uma simpatia maior pela chamada PEC 45, ainda entendendo que nos processos de negociação é natural jogar cargas ao mar e fazer concessões para aprovar a proposta. O debate tem sido prejudicado por certa falta de foco do governo. Na verdade, o foco do governo parece ter se concentrado na defesa da CPMF, que tem todos os problemas que a gente conhece. Além disso, no campo político, também foi prejudicado por uma certa disputa de protagonismo institucional entre Câmara e Senado. Mas se essa situação persistir – cada uma das duas Câmaras apostando em sua reforma e o governo não apostando em nenhuma, mais preocupado com a CPMF, que não tem passagem, o que veremos em 2021 será uma repetição de 2020, e chegaremos ao fim do ano com nada tendo sido aprovado. O que seria realmente muito negativo para o país.

Depois de fevereiro, com a eleição da liderança das duas mesas legislativas, não teremos tempo a perder. Quando começar o ano que vem o país e o governo já terão perdido dois anos. Por se tratar de uma PEC, o processo é naturalmente lento. E esse tema de matéria tributária já é difícil por si só, não se pode pensar em uma aprovação em ano eleitoral, especialmente intenso como promete ser. Há uma janela que se abre em fevereiro e provavelmente vai fechar em dezembro, e se não avançarmos rapidamente com isso, o que requer uma decisão prévia sobre qual linha seguir, a reforma não será aprovada em 2021, nem em 2022. E aí me preocupa a concentração de temas para o próximo governo. Veja, se a gente pensar na situação que estávamos em janeiro de 2019, com exceção da reforma da Previdência e de alguns marcos regulatórios que têm sua importância, o fato é que as reformas vão se empilhando, e a pauta para o próximo governo, seja ele qual for, já está bastante intensa. Temos pela frente, provavelmente, uma revisão da regra do teto de gastos – defendo que o teto seja mantido até 2022, mas não me parece que seja viável conservá-lo intacto até 2026. Junto com isso, terão que vir medidas de ajuste pelo lado do gasto, para que essa mexida na regra do teto não tenha uma repercussão muito negativa no mercado. Pessoalmente, entendo que no próximo governo também será inevitável um debate sobre algum aumento de impostos. Chegaremos a 2022 com uma carga tributária do governo federal mais de 2% inferior à que o país tinha em 2011, e continuaremos com déficit primário durante toda a década. E ainda temos o debate, sobre o qual considero que não conseguiremos avançar muito em 2021, mas que deverá ser cobrado pela sociedade nas próximas eleições, que é o de uma política social para os chamados informais. Então, se não avançarmos na pauta tributária agora, teremos uma agenda já muito congestionada para o próximo governo. E já aprendemos que, em virtude da fragmentação de nosso quadro partidário, reformas importantes em geral tendem a ter maior espaço de aprovação no começo de um governo. Só que tampouco dá para aprovar muitas reformas grandes ao mesmo tempo. Algo que me preocupa, nesses meus 58 anos de idade, é a impressão de que falta senso de urgência no país, que faz com que o ritmo das reformas se dê a uma velocidade pouco compatível com a em que o mundo evolui. Ao longo de minha vida profissional, desde a década de 1980, já perdemos várias oportunidades. E se continuamos nesse diapasão de aprovar uma reforma por governo, acumulando as demais, perderemos definitivamente o bonde da história.

Nesta conversa, bem como em artigo da Conjuntura Econômica de outubro, o senhor defende uma reforma do teto de gastos somente em 2023. Frente ao agravamento da pressão fiscal, e sem a possibilidade de aprovação da PEC Emergencial este ano, considera possível chegar até o fim de 2022 com o teto preservado?

Nos últimos meses, aconteceu uma coisa que mudou um pouco a situação, que foi a aceleração inflacionária. Até pouco tempo atrás, vinha-se raciocinando com a ideia de que o teto poderia ser respeitado em 2021, e o grande desafio seria respeitar o teto em 2022, o que demandaria uma PEC. O que acabou acontecendo é que houve uma aceleração inflacionária importante nos últimos meses, que levará o reajuste das aposentadorias (calculada com base na inflação de janeiro a dezembro) provavelmente para cima de 4%, enquanto o teto será reajustado em 2%, em função da inflação em 12 meses observada até junho, conforme a regra. Isso fez com que a situação se invertesse, colocando o maior desafio de cumprimento do teto para 2021, que em 2022, já que nesse ano espera-se que a assincronia entre os indexadores do teto e das aposentadorias seja oposta ao que temos para 2021. Isso porque teremos uma inflação muito alta no primeiro semestre podendo chegar a um acumulado de 12 meses em junho entre 5,5% e 6%, ao passo que a inflação no segundo semestre deverá cair substancialmente, de modo que no começo de 2022 as aposentadorias sejam aumentadas entre 3% e 3,5% apenas.

Sob essas circunstâncias, eu passo a ter dúvidas sobre a conveniência ou não de se aprovar a PEC Emergencial, ainda mais em um contexto no qual o governo claramente não controla bem a pauta do Legislativo. Seja no sentido de aguar seu conteúdo, como de fato aparentemente começou a acontecer – alguns falam que o relatório era bem menos ambicioso que a proposta original –, ou ocorrerem aberrações como aproveitar a PEC para pegar carona e aprovar gastos através do chamado extra teto, que é o oposto do que o Ministério de Economia pretende. Essas reformas têm que ser aprovadas quando o governo controla com pulso firme, como foi o caso da reforma Previdenciária quando havia um diálogo fluido entre a presidência da Câmara dos Deputados e o Ministério da Economia, através do secretário Rogério Marinho, e se conseguia bloquear iniciativas que tendia a distorcer o conteúdo da reforma. Eu não sei se o governo terá esse controle em 2021.

Se conseguirmos obedecer ao teto no ano que vem, que será um ano fiscalmente duro, essa dicotomia de indexadores de Previdência e teto em 2022 vai facilitar o fechamento das contas em 2022. Portanto estou tendendo a concluir que, nas atuais circunstâncias, talvez o melhor seja não aprovar nada nesse campo também em 2022, cumprir a regra do teto strictu sensu como está hoje, o que me parece viável. E deixar essa discussão para ser encarada pelo próximo governo, com a vantagem de estar recém-saído das urnas em 2023.

Considera que a discussão do teto em 2023 poderia se dar nas bases da proposta de reforma do teto que defendeu em 2019 – essencialmente, de criação de um teto duplo, separando os gastos correntes do gasto total?

Sim, ressaltando que o fato de mudar a regra do teto não significa que não haverá teto, mas que a restrição será ligeiramente relaxada. Ou seja, a credibilidade macroeconômica continuará exigindo que o país dê sinais de que haverá limites à expansão do gasto. Sem esses limites, todo o processo de redução dos juros longos a que assistimos nos últimos anos poderá ser perdido.

A recuperação do mercado de trabalho tem sido um dos principais focos de preocupação no pós-pandemia. Especialmente quanto aos jovens, penalizados pelo aumento da informalidade na economia desde o fim da recessão de 2014-2016. Identifica debates consistentes à mesa para endereçar esse tema?

Esse é um assunto que me preocupa muito. Está associado à tendência que tenho notado de forma crescente, ao longo dos anos, em minhas palestras sobre previdência, que é a de a juventude não confiar no INSS como provedor de sua aposentadoria futura. E, ao mesmo tempo, não se preparar adequadamente para esta. Sobre esse ponto, acho que o país tem uma deficiência enorme no campo da educação financeira e previdenciária, e as pessoas muitas veze só começam a se preocupar com isso numa etapa já relativamente avançada da vida adulta. Ou seja, se a pessoa tem uma vida contributiva que genericamente, grosso modo, vai dos 25 aos 65 anos, mas começa a contribuir aos 45 anos, não digo que não vai adiantar, mas o fato é que ao fazê-lo você não apenas perde metade de sua vida contributiva, como perde a possibilidade maior de capitalizar o rendimento dos juros dessa contribuição.

Isso é algo que envolve as famílias – no caso em que estas têm alguma possibilidade de poupança –, e fica obviamente fica mais restritivo quando se trata de famílias humildes, um número de filhos muitas vezes maior. Mas, para os jovens de classe média também estão enfrentando esse problema sério do desemprego estrutural que afeta mais esse grupo etário, eu encorajaria os pais a tentar fazer um esforço de ajudar os filhos a constituir em uma previdência complementar desde cedo. Mesmo que isso implique um sacrifício para as famílias, para que esses filhos, na medida do possível, já possam formar um começo de poupança esmo antes de ter a possibilidade de começar a trabalhar. E, claro, associado a uma educação mais ampla para que o filho não aja como se sua vida estivesse ganha. 

E em termos de política pública?

Acho que temos que pensar em novos mecanismos de capitalização. A capitalização foi muitas vezes discutida no contexto da reforma de 2019 como um substituto ao INSS. Como especialista, nunca gostei dessa abordagem, porque se a pessoa deixa de contribuir para o INSS e passa a contribuir para um sistema próprio os problemas do INSS, que já são maiúsculos, em termos de déficit iriam se agravar. Mas temos que pensar uma política que possa trazer novos mecanismos de poupança além daqueles que já existem com o Programa Gerador de Benefício Livre (PGBL) ou Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL).

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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