“Se bem-administrada, Eletrobras pode ir além-fronteiras”

Joisa Dutra, diretora do FGV Ceri

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

O governo apresentou a MP 1031/2021, de privatização da Eletrobras, após intervir na direção da Petrobras, buscando amenizar as reações de mercado à interferência e sinalizar que o caminho das desestatizações está mantido. Em que essa MP se diferencia das propostas anteriores?

A MP tem alguns avanços, mas não muda as bases da proposta anterior, de capitalização da companhia para torná-la uma corporation, no contexto da transição energética. Em geral, empresas desse perfil que se tornaram corporation estão performando bem nos mercados acionários ao redor do mundo, comparativamente às empresas de petróleo e gás. Há muitos exemplos de sucesso nesse campo, entre os quais posso citar o da italiana Enel, que nos últimos 20 anos passou por um processo semelhante e hoje singra novos mares, com atuação relevante aqui no Brasil. Diante do contexto da transição energética que vivemos, a Eletrobras tem grande potencial. É uma plataforma renovável, que é o que o mundo está buscando. Se bem-administrada, pode ir além-fronteiras.

Voltando à MP, em relação à proposta anterior, temos algumas inclusões quanto à distribuição dos ganhos. Além dos recursos que seriam alocados para a revitalização da Bacia do Rio São Francisco, o texto prevê o direcionamento de recursos para reduzir a geração por combustíveis fósseis na região amazônica e na bacia do Sudeste, com Furnas. Esse é um processo meritório, mas demanda cuidados, porque precisamos entender como esses recursos serão alocados, já que os desafios que temos com segurança hídrica são crescentes. Historicamente, víamos a questão de estresse hídrico concentrada na região Nordeste, mas esse quadro já começa a abranger a região Sudeste. Já tivemos crise no estado de São Paulo, temos o Paraná sendo afetado, bem como o Rio de Janeiro. O caso da geosmina (composto orgânico que altera cheiro e sabor da água), derivado de problemas de qualidade da água que aparecem no Rio no verão, fala desse estresse hídrico, da necessidade de investimentos para assegurar condições mais adequadas ao fornecimento de água. Consumo humano e dessedentação animal são prioridades, e esse arcabouço da alocação dos recursos hídricos ainda está para ser definido. A MP toca nisso, mas não faz o enfrentamento. Traz uma oportunidade, que precisa ser mais bem-compreendida.

E como isso deve acontecer?

A MP coloca um comando para o BNDES começar a modelagem. Isso implica que, no cenário em que ela fosse aprovada no seu prazo, de 120 dias, ninguém teria uma privatização no mês seguinte. O que a MP está dando é um comando para o BNDES estudar o tema em nove meses. Então, 2021 não será ano de privatização. E o de 2022 terá uma janela de seis meses, pois o resto é eleição.

Gosto de analisar esse tema sob o seguinte arcabouço. Há uma oportunidade, que é a agenda de descarbonização que mencionei, uma policy e uma politics. No caso da Eletrobras, quando começou o governo Bolsonaro, havia uma agenda clara de desestatização, que se inicia na gestão de Michel Temer. Wilson Ferreira, que era o CEO da companhia, permanece, na crença de que ela seria privatizada. As coisas arrefeceram, um dos motivos pelos quais Ferreira renuncia ao cargo, e agora o governo acena com uma possibilidade de resgatar esse processo. Quando diz para o BNDES modelar e aponta essas possibilidades de redistribuição, ele cria uma oportunidade de pensar o processo adequadamente. Quanto conseguiremos fazê-lo, e quanto vamos efetivamente conseguir implementá-lo, foge ao escopo da análise de um economista. As cartas estão dadas. É muito importante que o BNDES faça bom uso desse mandato. Os desafios que estão colocados para a Eletrobras nos próximos 30 anos são diferentes, pois essas regiões que mencionei conviverão crescentemente com estresse hídrico. Então, tem uma agenda de usos múltiplos da água que precisa se conectar a essa questão. Não basta fazer transferências de recursos para a Bacia do São Francisco, para a região amazônica e Furnas. É importante que, no processo de modelagem, o BNDES pense como esses recursos poderão ser usados para enfrentar os problemas que já estão mapeados. As soluções não estão na mesa. É um desafio pensar isso.

Em artigo publicado na edição de março da revista Conjuntura Econômica, você aponta a importância da reforma do setor elétrico para estruturar sua expansão. Considera que, sem isso, teremos problema de abastecimento em caso de crescimento econômico elevado nos próximos anos?

O cenário de crescimento da capacidade instalada do setor nas projeções da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) é compatível com crescimento anual de 3,9% do PIB nos próximos 10 anos. Diria que o principal desafio que está colocado para o setor é o de competitividade e capacidade de pagamento, e isso tem consequências muito importantes para a atividade econômica. Temos nas commodities uma parte importante da atividade brasileira, algumas são eletro intensivas, e os preços e tarifas de eletricidade no Brasil são elevados, como a própria Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace) aponta. Seja para padrões internacionais, para na comparação entre economias comparáveis à nossa.

Uma parte importante dessa história é explicada pela alta incidência de tributos dentro do setor, mas não só. Os custos de produção de eletricidade não são baixos no Brasil, considerando todo esse potencial de geração renovável que envolve tecnologias de custo variável, ou custo marginal baixo. Se temos uma participação tão importante dessas tecnologias em nossa geração, o custo médio traduzido em preços e tarifas não deveria ser tão alto. Mas convivemos com níveis muito elevados de perdas. E se temos vinte e tantos anos de regulação, por que não estamos conseguindo reduzir perdas? Está certo que temos casos muito críticos, como o do Rio de Janeiro, que tem sido diagnosticado crescentemente com áreas de difícil acesso para companhias entrarem para regularizar os consumidores. Mas isso não explica tudo, e continuamos com parte importante de perdas que não estamos conseguindo debelar, e pelas quais pagamos. Perdas e preços e tarifa hoje são os principais desafios, mais do que segurança de suprimento. 

O movimento do presidente em direção à Petrobras foi impulsionado pelo aumento de preço e seu reflexo na inflação. Há risco de haver intervenção semelhante nos preços de eletricidade?

Fazer um enfrentamento do nível de preço e tarifas de eletricidade está na agenda do setor como um todo. Basta lembrar o esforço de aprovação da MP 998/20 (que destina recursos à Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) para promover a redução da tarifa de energia elétrica para consumidores), que foi popularizada como “MP do consumidor”. Não sei há risco de intervenção, mas é preciso considerar que é uma realidade diferente, posto que o setor de óleo e gás é mais concentrado do que a indústria de eletricidade, e que não é de hoje que convivemos com o debate sobre como se poderia estabelecer algum tipo de mecanismo para amortecer o impacto da variação internacional do preço do petróleo. Quando o preço dispara, colocamos o tema no topo do debate. Gastamos 10, 15 dias falando disso na imprensa, mas depois o tema desaparece, até ressurgir na próxima alta de preços.

Então, o problema no setor elétrico existe, mas o setor é menos concentrado e menos exposto ao eventual impacto dos preços internacionais e/ou do dólar do que o de óleo e gás. Além disso, o setor elétrico tem muito fresco na memória que a MP 579, de 2012, começou com uma boa intenção, de querer reduzir preços e tarifas, mas teve que ser revertida. Então, a tentação de usar soluções que não sejam sustentáveis no setor elétrico em geral é mitigada por essa memória recente.

Outro elemento que entra nessa equação é o fato de que as distribuidoras têm sido incentivadas a contratar mais que a demanda – o nível de subcontratação passível de repasse para o mercado saiu de 3% para 10%. E o mercado livre está investindo, porque como o BNDES retraiu os investimentos a partir de 2016, criou-se espaço para novos financiadores comerciais, domésticos ou de fora. O setor tem se expandido.

Considera que o episódio da Petrobras pode contaminar esse ambiente de investimento?

Não tenho visto esse interesse cair. E agora deveremos ver o surgimento de uma nova onda, que pode ser menor em termos de escala, mas que será impulsionada com a reforma saneamento, que levará à preocupação com resíduos sólidos que, por sua vez, pode incentivar   projetos waste-to-energy (uso de resíduos para produção de energia). A gente já estava com eólica crescendo, seguida pela energia solar e o aumento da liberalização e incentivo à geração distribuída. E a pressão da reforma da legislação do gás natural vai se traduzir em geração termelétrica a gás. Ou seja, as tecnologias estão dadas. As distribuidoras estão recebendo uma taxa de retorno regulatória ok e, do lado das transmissoras, os leilões de transmissão estão sendo muito bem-sucedidos. Então, não tenho visto ainda preocupações nesse campo. Há incertezas, mas existe uma engrenagem que já foi colocada em movimento e garante remuneração dos investimentos. Se não fizermos muita bobagem, o capital irá buscá-la.

Qual deve ser o foco para se buscar uma redução do preço de energia que seja sustentável?

No setor como um todo, tenho visto excessivamente pouca mobilização para tentar entender qual o impacto potencial das diferentes propostas de reforma tributária. Tributo é um tema sensível, e era preciso participação ativa do setor. Veja a voracidade dos estados através da cobrança de ICMS. Em nível federal, temos o recente exemplo da proposta da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) em devolver ao menos R$ 50 bilhões em impostos cobrados por inclusão do ICMS na base de cálculo do Pis/Pasep e da Cofins nas tarifas (o STF julgou essa inclusão como indevida em 2017). Hoje vivemos um quadro de pressão fiscal, e sabemos que, frente a restrições na receita, não há mágica: a solução em geral vem de inflação ou aumento de impostos.

Outra questão é a de encargos. A MP criou algum espaço para a redução de subsídios para fontes renováveis. Mas essa indústria é muito mobilizada, e não faltam pressões para impedir a revisão de uma regulação que hoje está criando ônus excessivo para o consumidor. Artifícios como alegar que estão querendo taxar o sol são perversos. É obvio que queremos muita energia solar. Queremos que os consumidores tenham painéis solares em seus telhados, mas não que a conta seja paga por quem não pode instalar um painel em casa.

Veja, esses temas podem parecer menores, de segunda ordem, mas no fim do dia são eles que fazem uma indústria perder competitividade. Veja o caso da tramitação da Lei do Gás Natural, que também sofreu diversos entraves à proposta do governo. Nos últimos 10 anos, os Estados Unidos viraram o jogo com relação ao custo do gás natural em função do shale gas, mudando seu status de importador para exportador e o jogo geopolítico internacional. O Brasil conta com muito gás natural, que pode ajudar a tornar a economia mais competitiva.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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