“Resta saber se a carta de Bolsonaro a Biden foi apenas uma concessão retórica da ala radical”

Mauricio Santoro, Chefe do Departamento de Relações Internacionais da Uerj

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro 

Frente à quantidade desafios que terá no campo doméstico, qual considera que será a prioridade de Biden no campo externo – além das primeiras medidas tomadas pelo presidente em relação à OMS e ao Acordo do Clima?

O principal desafio de política externa de Biden é lidar com as consequências da ascensão da China. Um dos poucos consensos entre republicanos e democratas é que o crescimento da influência internacional chinesa é um problema para os Estados Unidos. Biden compartilha com Trump essa preocupação, mas lidará com ela usando ferramentas diferentes, procurando restaurar a posição americana em organizações multilaterais (OMS, OTAN, OMC) e restaurar o diálogo com os aliados na União Europeia, enfraquecido pelas divergências do governo Trump.

Questões de direitos humanos também ganharão mais destaques nos conflitos com a China, em particular a repressão política à minoria étnica em Xinjiang e o cerceamento de liberdades cívicas em Hong Kong. Vale notar que um dos últimos atos do secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo, foi declarar que a situação em Xinjiang é um genocídio. O novo titular da pasta, Anthony Blinken, confirmou em sua sabatina no Senado que está de acordo com a definição.

Em entrevista recente à Conjuntura Econômica, o ex-embaixador Marcos Caramuru afirmou considerar que o governo Biden dará mais trabalho à China do que Trump. Ele acha que, voltando a buscar liderança no debate do multilateralismo, os Estados Unidos tornarão o cenário mais complexo para a China. Além disso, também aponta a possibilidade de Biden – tal como Obama – querer marcar presença no Leste Asiático. Concorda com esse ponto de vista?

Sim. Houve um debate interessante sobre quem o governo chinês preferia que ganhasse as eleições americanas. Trump teve uma retórica contra a China mais agressiva do que seus antecessores, mas seu estilo errático e sua dificuldade em trabalhar em parceria com aliados internacionais dos Estados Unidos criaram um cenário que favoreceu a expansão global da influência chinesa, em particular na Ásia. A assinatura do acordo comercial RCEP em 2020, juntando China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e os países do Sudeste Asiático - mas deixando de fora os Estados Unidos, que com Trump abandonaram a negociação de um tratado semelhante, a Parceria Transpacífica - é um bom exemplo disso.

A equipe de Biden para política externa e defesa é uma compilação de veteranos de administrações democratas anteriores, e podemos esperar grande continuidade nos temas principais e práticas da gestão Obama. Ou seja: a contenção da China por meio de parcerias políticas, econômicas e militares, em contraste com a visão de Trump, centrada em uma guerra comercial, de aumento unilateral de tarifas e restrições a empresas chinesas

Qual sua avaliação da carta de Bolsonaro a Biden?

A carta é um documento bem escrito, que traz as marcas da diplomacia profissional do Itamaraty, em contraste com a forte carga ideológica dos assessores presidenciais que têm ditado o rumo das relações com os Estados Unidos. Reflete um esforço do governo brasileiro em se adequar à nova realidade da derrota de Trump e da vitória de Biden, mas está em contradição com o que foram as ações anteriores do Brasil, em particular na área ambiental, de preservação da Amazônia e de enfrentamento das mudanças climáticas. A questão é saber se o documento marca uma mudança real de política externa, com a ascensão de um grupo moderado, ou se foi apenas uma concessão retórica da ala radical.

Como espera que seja a relação inicial de Biden com o Brasil?

Em seus primeiros dois anos de governo, Bolsonaro buscou uma relação preferencial com Trump, mais do que com os Estados Unidos. A diplomacia brasileira frequentemente antagonizou o Partido Democrata, que então já controlava a Câmara dos Deputados. Agora os democratas estão de volta à Casa Branca e reforçaram sua influência no Congresso, inclusive no Senado. Desde a campanha presidencial, Biden tem mencionado a necessidade de pressionar o Brasil para controlar o desmatamento da Amazônia. Seu principal assessor diplomático para a América Latina, Juan Gonzalez, é crítico do governo Bolsonaro, questionando sua sintonia com a visão regional proposta por Biden.

O novo cenário político nos Estados Unidos privou Bolsonaro de seu principal aliado internacional. Até mais do que isso. Trump tem sido sua principal referência ideológica estrangeira, alguém a quem o presidente considera um exemplo a ser seguido, que com frequência copia em seus pronunciamentos e atos. Inclusive no discurso de questionar a legitimidade de eleições, alegando fraudes na votação.

A política externa brasileira terá que se adequar a essa nova realidade e se preparar para enfrentar cobranças rigorosas do governo Biden em temas de meio ambiente, direitos humanos e combate à pandemia.Contudo, Brasil e Estados Unidos são importantes mutuamente em qualquer governo. Há uma série de temas nos quais a cooperação continuará a ser possível e relevante: comércio, investimentos, crises regionais como a da Venezuela.

Levando em conta esse primeiro aceno à nova administração americana, e os problemas de relacionamento com China e Índia que o Brasil terá de mitigar para garantir acesso a insumos farmacêuticos e vacinas contra a Covid-19, considera possível um giro real da diplomacia brasileira? De que dependeria isso?

No dois primeiros anos de governo Bolsonaro, o Ministério das Relações Exteriores foi um instrumento das guerras culturais da ala mais radical do governo, com a política externa com frequência sendo tratada como uma extensão das disputas domésticas entre direita e esquerda. Esse modelo criou problemas para o Brasil com todos os seus principais parceiros comerciais: China, União Europeia, Argentina e agora com os Estados Unidos, dada a vitória de Biden.

Para resolver esses problemas, seria necessária uma mudança de rumo expressiva, colocando o Itamaraty sob o controle de grupos da ala moderada e pragmática do governo, como a que está à frente de ministérios como Agricultura e Infraestrutura. Não faltam diplomatas capazes ao Brasil para a função, a questão é se o presidente e seus filhos estão dispostos a abrir mão de usar o Ministério das Relações Exteriores como extensão de suas redes de apoio eleitoral.

Essa mudança significaria também reconhecer que foi um erro buscar uma relação preferencial com os Estados Unidos. A realidade global é muito diferente hoje do que era na primeira metade do século XX, quando o Brasil era alinhado com Washington. Hoje a China compra mais de 1/3 das exportações brasileiras. Em 2020, a Ásia foi o destino de cerca de metade de nossas vendas externas. Os principais parceiros do Brasil na região são China, Japão, Índia, Coreia do Sul e as nações do Sudeste Asiático. A diplomacia brasileira tem que refletir esse cenário e se adequar à uma economia global mais aberta, competitiva e diversa, em particular no que toca ao dinamismo e importância da Ásia.

Uma moderação de discurso seria crível mantendo o atual ministro, Ernesto Araújo, no timão?

O atual ministro das Relações Exteriores se tornou um obstáculo para o diálogo do Brasil com seus principais parceiros comerciais, com um desgaste internacional muito grande em razão de suas declarações, que fogem à regra do que é usual para um chanceler. Para que uma mudança de rumo na diplomacia tenha credibilidade, ele teria que ser substituído por outra pessoa.

O presidente Bolsonaro se espelhou em Trump não só em seu posicionamento externo quanto em questões domésticas, da postura negacionista à defesa da liberação do porte de armas entre civis e da volta do voto em papel. Como a saída de Trump afetará esse comportamento de Bolsonaro?

Trump deixou a presidência, mas teve 74 milhões de votos em 2020 - contra 63 milhões em 2016. Ele seguirá como uma força política importante nos Estados Unidos, com capacidade de ser um cabo eleitoral para lideranças populistas, incluindo seus filhos. Seguirá sendo uma referência também para políticos de orientação ideológica em outros países, como Brasil, Filipinas ou Hungria. É provável que Bolsonaro tente manter algum tipo de diálogo com ele, quem sabe até convidá-lo para vir ao Brasil. O limite desse tipo de relação é o desgaste que ela provocaria com o governo Biden.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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