“A resposta para a Covid é mais globalização, e não menos”

Lucas Ferraz, secretário de Comércio Exterior – Ministério da Economia

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Em uma ampla conversa com a Conjuntura Econômica para a edição de agosto, Lucas Ferraz, secretário de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Economia, fez um balanço dos avanços da Secretaria para a facilitação do comércio. Confira um adianto dessa entrevista, para a qual a Conjuntura contou com a participação de Lia Valls, pesquisadora associada do FGV IBRE 

Como a pandemia tem influenciado a agenda de trabalho da Secex?

A pandemia causou uma crise sem precedentes na economia global, com choques negativos de oferta e demanda no mundo inteiro. Em um primeiro momento, houve escassez de vários produtos básicos, especialmente para a saúde, como máscaras, luvas, respiradores, e tivemos que tomar medidas de aumento de oferta desses produtos no mercado doméstico. Para isso, reduzimos a zero tarifas de importação para mais de 600 produtos relacionados à Covid-19. 

Em âmbito global, formou-se um debate, que olho com muita cautela, de que a pandemia teria deixado claro a importância de uma volta do adensamento das cadeias domésticas de produção, de que os países deveriam reavaliar sua estratégia de inserção internacional e reduzir a dependência do mercado externo em favor da produção doméstica. Não compro esse argumento, mas acho que a abordagem do risco faz algum sentido. Ou seja, de concentrar demasiadamente a oferta, ou o suprimento, em um único parceiro comercial, ou em um número pequeno de parceiros, como foi o caso específico dos produtos relacionados à Covid. A dependência excessiva de um parceiro realmente pode não ser a estratégia comercial mais interessante. Mas isso está longe de significar que fazer o contrário, de ter dependência do mercado doméstico, vai resolver o seu problema. Acho que o remédio ideal é não centralizar fornecimento, e diversificar as origens de suprimento. Então, a resposta para a Covid é mais globalização, e não menos. É buscar um número maior de fornecedores, mais inserção em cadeias globais, com mais diversificação. Essa me parece a resposta mais sensata. 

No campo doméstico, tivemos como lição o diagnóstico de que as tarifas de importação dos produtos que precisávamos estavam em nível elevado. E não só estavam altas, como alguns produtos tinham medidas antidumping aplicadas que basicamente bloqueavam sua importação. Com isso, reforçamos a necessidade de o Brasil reformar sua Tarifa Externa Comum (TEC), o que estamos negociando junto aos demais sócios do Mercosul. Evidentemente, não sou contra termos um mercado de saúde doméstico, mas este precisa ser competitivo, capaz de oferecer produtos modernos a preços baixos. Senão, não serve. Nossas tarifas de importação estão muito além da média internacional, e chama a atenção nosso número ainda reduzido de acordos comerciais. Se queremos diversificar comércio, nada mais interessante que ampliar nossa rede de acordos comerciais. Apenas 13% do comércio internacional brasileiro flui por acordos comerciais, enquanto a média mundial está entre 60% e 70%, dependendo dos países que você considera.

O governo tem como objetivo ampliar a facilitação do comércio. Que avaliação fazem até agora?

Temos feito bastante no campo regulatório e não-tarifário (confira o balanço completo na Conjuntura Econômica de agosto). Em geral, as avaliações sobre avanços nessa área ficam presas ao paradigma antigo dos acordos tarifários, e com isso algumas iniciativas são pouco valorizadas. Um exemplo é o protocolo não-tarifário entre Brasil e Estados Unidos – adicional ao Acordo de Comércio e Cooperação Econômica bilateral (Atec), criado em 2011 – e que eu diria que é um dos mais importantes firmados pelo país. Ele envolve três anexos: o de facilitação de comércio, o de melhores práticas regulatórias, e o anexo anticorrupção. O anexo com compromissos de melhores práticas regulatórias está entre os mais modernos negociados no mundo, segundo palavras do próprio governo americano.

E qual a importância disso? Se estamos falando de barreiras não-tarifárias, a importância é óbvia. Grande parte dos compromissos é vinculante. Quase todas as provisões deverão estar implementadas no intervalo de dois anos a partir da aprovação do acordo no Congresso. Em termos de facilitação de comércio, destacaria o avanço trazido pela vinculação do Brasil para a modernização de seus certificados sanitários, sua digitalização, e a facilitação do comércio com uso de inteligência artificial, reduzindo a burocracia portuária com tecnologias menos intrusivas em cargas, sobretudo agrícolas. E a importância da formalização do acordo de reconhecimento mútuo dos programas de operador econômico autorizado brasileiro e americano. Veja, as principais barreiras para as exportações brasileiras no mercado americano não são de natureza tarifária. A média tarifária que o Brasil paga para nossas exportações no mercado americano é da ordem de 2,5%. Se pegarmos o equivalente tarifário só das barreiras portuárias que enfrentamos naquele país, estamos falando de um ad valorem da ordem de 12% a 13%. Ou seja, cerca de dez vezes mais do que o próprio valor da tarifa de importação média. Então, a consecução de um acordo de reconhecimento mútuo vai facilitar em muito nosso comércio bilateral.

Há também o anexo que propõe mais transparência na regulação, na burocracia nos dois comércios. É importantíssimo, pois se hoje o ministro Paulo Guedes chama o país de manicômio tributário, eu diria que também temos um manicômio regulatório. São regulações que não conversam entre si, são as agências emitindo atos normativos sem nenhuma preocupação com o impacto disso no conjunto da economia nacional. Nesse anexo de melhores práticas regulatórias, há ao menos três elementos que gostaria de destacar. O primeiro é a obrigação da chamada análise de impacto regulatório. Ou seja, para cada ato normativo que venha a ser emitido, existe a obrigação de realização de consulta pública e revisão de análise de impacto para o conjunto da economia, sobre a expectativa de que esse ato cumpra o objetivo sem prejudicar outros setores. Também existe previsão de análise do resultado regulatório – depois de implementar a medida, de fato ela cumpriu o objetivo pretendido? – e do estoque regulatório, ver se as regras ainda continuam cumprindo o papel para as quais foram criadas. E o terceiro elemento é a criação de um órgão central de coordenação do arcabouço regulatório nacional, que vai garantir a coerência regulatória, a aplicação de melhores práticas em termos de emissão de regulamento do país.

Veja tudo isso está em um acordo bilateral feito com os americanos, mas com consequências totalmente horizontais. A melhoria da facilitação de comércio com os Estados Unidos, as provisões contidas no acordo, vão melhorar o ambiente de negócios e repercutirão para todo o comércio brasileiro, com qualquer país.

É um acordo com temas complexos de serem negociados – facilitação de comércio, regulação, anticorrupção –, mas conseguimos fazê-lo junto ao USTR (representante de comércio dos Estados Unidos) em 11 meses, em plena pandemia. Havia determinação grande de ambas as partes, de ter algo significativo para o estreitamento dos laços comerciais. E, mesmo com a mudança de governo, não temos tido dificuldades. Pelo contrário. As relações diplomáticas estão fluidas no governo do presidente Joe Biden. Hoje a prioridade dos Estados Unidos são Covid-19, meio ambiente, mas ainda assim nosso diálogo se mantém. Temos, inclusive, a expectativa de ampliar esse protocolo. Uma das possibilidades é ter um anexo de comércio digital.

Que ações com a temática ambiental estão no radar da Secex? Como avaliam a iniciativa da União Europeia, com a criação de uma taxa de carbono para importações, dentro do plano de redução de pelo menos 55% dos gases de efeito estufa da região até 2030?

A questão ambiental tem cada vez mais chamado nossa atenção. Sendo sincero, a área de impacto ambiental no comércio internacional não recebeu, até agora, a atenção necessária dos governos brasileiros. Tampouco há muitos artigos acadêmicos de pesquisadores brasileiros sobre a relação entre meio ambiente e comércio internacional, emissão de gás carbônico e seu impacto nas estruturas produtivas e no comércio global.

Estamos debatendo uma agenda de sustentabilidade, temos algumas ideias que pretendemos levar a discussão no âmbito do Mercosul. Uma delas é a redução de tarifas de importação de bens com claras externalidades positivas ambientais. Também estamos estudando atrelar o funcionamento do sistema de crédito a exportações a padrões de sustentabilidade das empresas. 

No caso da carbon tax, acho que esse debate ainda carece de melhor compreensão sobre o que vai acontecer. A União Europeia já emitiu um documento deixando claro seu objetivo de implementar mecanismos a partir de 2023. Sob o ponto de vista jurídico, entretanto, ainda estamos fazendo um esforço de entendimento para saber se essa taxação não fere acordos da OMC, sobretudo princípios do GATT de não discriminação e tratamento nacional. É um debate que ainda está acontecendo no governo e pretendemos, nos próximos meses, dar uma resposta mais clara de como nos posicionaremos nesse debate.

Ainda sobre essa agenda, este mês colocamos em consulta pública a possibilidade de o Brasil passar a importar bens remanufaturados, o que hoje é proibido. A ideia é não só abrir para a importação, como possibilitar a criação de um parque de bens remanufaturados. Veja, se for a uma loja da Apple nos Estados Unidos com um celular com defeito, por exemplo, poderá dá-lo de entrada para comprar um novo, e esse aparelho será remanufaturado, revendido, basicamente com a mesma garantia de um novo. Aqui não temos isso, e estamos estudando essa possibilidade. É uma medida inserida no contexto de sustentabilidade e comércio internacional. 

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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