Recuperação desigual da pandemia e desafios estruturais de produtividade demandam estratégia e reformas, dizem pesquisadores

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

A marca de 500 mil mortos por Covid-19 alcançada pelo Brasil neste fim de semana, acompanhada de um aumento na média de novos casos da doença em um nível não visto desde o início de abril, acentua as dúvidas sobre quando a reação da economia poderá se disseminar pelos diversos setores de maneira mais uniforme do que a vista até agora. Apesar de a expectativa de crescimento do PIB para 2021 ter subido acima dos 5%, após o bom resultado registrado no primeiro trimestre, até agora esse movimento ainda traz muita heterogeneidade embutida, como apontou Silvia Matos no último Seminário de Análise Conjuntural. E sem uma retomada mais vigorosa do setor de serviços, grande empregador da economia e o mais afetado pelas restrições impostas pela conjuntura, a tendência do Brasil é manter uma dinâmica problemática para o crescimento, como apontaram pesquisadores do FGV IBRE no webinar Os Caminhos para o Crescimento, promovido em parceria com O Estado de S. Paulo, moderado pela repórter especial e colunista do jornal Adriana Fernandes.  

No evento, Samuel Pessôa, pesquisador associado do FGV IBRE, ressaltou que para países como a China, mais bem-sucedida na contenção do contágio pelo novo coronavírus, é mais fácil se valer do lado menos ruim desta crise, que é o de permitir à economia “religar” tão logo cessam as restrições de circulação. Situação bem diferente de outras crises geradas dentro do próprio sistema econômico, destacou Pessôa, que cita como exemplo a crise financeira global de 2008/09, fruto de distorções provocadas pelos critérios frouxos de concessão de crédito hipotecário nos Estados Unidos, envolvendo instituições financeiras de diversos países. “Depois dessa falência generalizada do setor bancário, a reconstrução é algo muito difícil. E como a economia se encontrava anabolizada, a taxa de crescimento na volta em geral é menor.” 

Por enquanto, aponta Pessôa, a recuperação mais forte do PIB brasileiro reflete apenas o tamanho do tombo anterior, mas pouco ainda de uma volta à tendência pré-crise, como acontecerá mais rapidamente nos países que já abrem a economia de forma mais consistente. “No caso brasileiro, tendo a achar que a volta à tendência anterior à pandemia acontecerá mais para o início de 2023, fechando toda a ociosidade. Mas a minha avaliação é de que, no médio prazo, essa crise não deixará marcas mais profundas”, afirmou no webinar, citando como exceção, mais a longo prazo, do efeito do impacto a educação provocado pela crise sanitária na geração de alunos que tiveram de ficar longe da escola, especialmente àqueles sem acesso a um ensino remoto de qualidade.

Por sua vez, Fernando Veloso, pesquisador do FGV IBRE, ressaltou que ainda é pouco claro como os efeitos da atual crise se combinarão a um contexto pré-pandemia que já era de atividade fraca, ainda em lenta recuperação da recessão de 2014-16, com sequelas tanto fiscais quanto no mercado de trabalho. “Vínhamos de um processo de recuperação do emprego concentrado na informalidade, com aumento de desigualdade, e a produtividade estava em queda”, destacou, indicando que o fato de a produtividade estar em queda mesmo antes do choque sanitário já indicava uma recuperação da atividade pouco sustentável. Durante a fase mais aguda das restrições à circulação no primeiro trimestre do ano passado, a produtividade medida por horas efetivamente trabalhadas chegou a dar um salto pouco comum, mas de fôlego curto. “Devido à pandemia atingir especialmente setores pouco produtivos – de serviços prestados às famílias como de hotelaria, restaurantes, serviços domésticos –, que tiveram menos facilidade de se adaptar ao trabalho remoto, observou-se um aumento da produtividade média em função do efeito composição, pois os trabalhadores que se mantiveram ativos eram mais produtivos. É possível que alguma aceleração tecnológica tenha acontecido, mas o fato é que esse resultado foi predominantemente um efeito setorial”, disse. De acordo ao indicador de produtividade  do Observatório da Produtividade Regis Bonelli, essa produtividade do trabalho calculada por horas efetivas passou a cair a partir do terceiro trimestre, com a volta gradual  desses setores mencionados. Mesmo assim, no primeiro tri deste ano essa produtividade ainda se encontrava 8,9% acima do nível pré-pandemia.

Evolução da produtividade do trabalho
(4º trimestre de 2019+100)


Fonte: Observatório da produtividade Regis Bonelli – FGV IBRE.

No evento online, o ex-ministro do Planejamento e da Fazenda Nelson Barbosa, pesquisador associado do FGV IBRE, foi o mais enfático em ressaltar que a recuperação econômica da atual crise não é apenas cíclica, mas de composição setorial, e por isso defendeu a necessidade de uma postura mais ativa do governo central. “Se deixar por si só, a economia não vai crescer. Ou melhor, ela crescerá se especializando nas atividades em que já têm grandes vantagens, como na produção de commodities. Mas isso não gera emprego suficiente para um país de 210 milhões de habitantes”, defendeu. “Então, a questão fiscal também tem de ser vista como instrumento de direcionamento da alocação de recursos para desenvolver novas vantagens produtivas: mais investimento em inovação, em qualificação”, afirmou, lembrando o exemplo dos Estados Unidos, em que o governo do presidente Joe Biden optou por uma atuação mais ativa do governo na recuperação econômica. “O governo tem que estar aí, seja coordenando, através de regulação, seja dando apoio financeiro, de forma transparente. No Brasil ainda estamos presos numa agenda ideológica de Estado mínimo, e isso trava nossa recuperação”, afirmou, defendendo que, se no caso brasileiro o espaço fiscal é bem mais restrito que o dos EUA, mas tampouco é zero. “Neste momento, vale a pena pensar em um plano de reconstrução, mesmo que seja com emissão de dívida. Apesar da elevação do juro no Brasil, ele ainda está historicamente em patamar baixo. Se recursos forem canalizados para projetos e iniciativas com grande potencial de aumentar a capacidade de produção e a produtividade do Brasil, e isso pode gerar um aumento de crescimento que pagará o endividamento necessário”, afirmou. A outra parte dessa estratégia, para Barbosa, é o encaminhamento da agenda de reformas que ajude a dominar a trajetória da dívida pública. “Do lado da despesa, a principal é a administrativa; do lado da receita, é a reforma tributária. Mas é preciso que ambas as estratégias caminhem juntas. Não basta ter só a reforma sem expectativa de crescimento e geração de emprego”, disse, indicando, entretanto, que neste momento tal estratégia não está desenhada pelo Executivo – e que, na ausência de um plano do governo, alguns temas importantes da agenda de recuperação podem ser capturados pelo Legislativo de forma inapropriada, comprometendo ainda mais o horizonte de recuperação econômica.

Pessôa, que não concorda com uma política de aumento de gastos, por considerar que o atual desequilíbrio fiscal do país não comportaria tal estratégia sem levar a aumento do risco – e de todos os efeitos colaterais advindos deste, como impacto no câmbio – também demonstrou preocupação com o atual encaminhamento das reformas no Congresso. “A impressão que tenho é a de que governo Bolsonaro tem um vazio de decisão não por uma questão fiscal, mas porque tem outras agendas. E sem a liderança do Executivo, esse espaço pode ser ocupado da pior maneira possível” reiterou, citando o caso da MP da Eletrobras, que deve ser votada hoje (21/6) na Câmara dos Deputados, sobre a qual o Blog da Conjuntura Econômica conversou com especialistas antes de sua passagem pelo Senado. “São políticos defendendo o seu quintal e o resultado agregado disso é redução de produtividade, de eficiência, de capacidade de crescimento a longo prazo.”

Veloso, por sua vez, somou outros pontos à lista de preocupação quanto à agenda de reformas. “Hoje, o que vemos é um alto risco sobre os resultados. Por exemplo, no caso da reforma tributária, não ficou claro por que tanto governo quanto Câmara abriram mão da proposta que estava sendo discutida numa comissão mista desde o ano passado(PEC 45), qual o benefício de uma estratégia de fatiamento (com a unificação unicamente dos impostos indiretos no nível federal), porque a própria CBS (contribuição que substituiria o PIS e a Cofins) esbarra em dificuldades semelhantes, pois no setor de serviços, que provavelmente terá tributação mais elevada, já se iniciou uma discussão sobre diferenciação de alíquotas”, descreve. No caso da reforma administrativa, Veloso lembra que, além de não incluir os servidores atuais, a proposta defendida pelo governo até agora não toca nos supersalários. “Além disso, fazer reforma administrativa não deve ser só para reduzir despesa, mas melhorar a provisão da prestação de serviço. Um ambiente de negócios ruim não sai do nada, e também tem a ver com a forma como governo regula”, diz.

Previsão para a dívida bruta do governo geral em 2021
(mediana – % do PIB)


Fonte: Prisma Fiscal - SPE Ministério da Economia.

Para Veloso, a melhora das estimativas para nível da dívida pública este ano, entre outras razões, pela aceleração da inflação, ainda não alivia a gravidade da situação brasileira, e a expectativa de uma volta mais rápida do superávit primário – estimada pela Instituição Fiscal Independente, em seu cenário base, para 2025 – tampouco é uma notícia que permita um otimismo desenfreado sobre o futuro de médio prazo. Para ele, o país ainda não conta com uma boa calibragem de seus instrumentos para disciplinar o gasto público. “A PEC Emergencial aprovada este ano poderia ter garantido um aspecto mais estrutural, com o acionamento imediato de gatilhos no âmbito federal, mas isso não aconteceu. E o plano de redução de gastos tributários foi desenhado com inúmeras exceções, excepcionalizando medidas que implicam o maior gasto, como o Simples, a Zona Franca de Manaus, a cesta básica”, analisou. “Se hoje temos um alívio, não foi por grandes medidas que gerassem resultados de longo prazo”, disse.

E, para 2022, a expectativa dos analistas é de que a maior folga fiscal esperada dentro do teto de gastos – que é corrigido pelo IPCA até junho, que tenderá a ser mais alto que o IGP de dezembro, que reajusta o salário mínimo, indexador de vários benefícios – não seja uma notícia virtuosa para encaminhar políticas consistentes de recuperação, já que essas demandas disputarão o mesmo espaço que os interesses inerentes de anos eleitorais.  “O debate fiscal tenderá a se acirrar, com muita volatilidade, e a pressão de parlamentares pela execução de emendas já no primeiro semestre”, descreve Barbosa, lembrando que esse embate já deverá ser percebido no final do ano, na discussão do orçamento de 2022.  “Talvez o teto de gastos não seja debate para 2022. Mas esse espaço deveria ser preenchido por temas mais estruturantes como ações de qualificação de mão de obra para adequá-la às mudanças tecnológicas, entre outras medidas que facilitem a transição das pessoas que dependerão de políticas de proteção social para o mercado de trabalho”, afirma Veloso, citando também a importância da definição, prevista para este ano, da nova versão do Bolsa Família, que foi tema de capa da Conjuntura Econômica de junho . “Hoje temos o risco fiscal imediato afastado, mas pelo que vemos dificilmente esse alívio será aproveitado na construção do que precisamos para fortalecer o potencial de crescimento do Brasil”, afirmou Veloso. O pesquisador do IBRE também lembrou que a incerteza em relação à economia brasileira ainda não voltou ao patamar pré-pandemia e que, a depender do encaminhamento da política fiscal e da corrida eleitoral em 2022, esse indicador pode registrar nova piora, atuando contra a capacidade de recuperação da economia. “Será um risco desperdiçar a sorte da melhoria das condições fiscais para gastar mal no ano que vem”, concluiu.

Índice de Incerteza Econômica: ainda acima  do nível pré-pandemia


Fonte: FGV IBRE.

Reveja o webinar Os Caminhos para o Crescimento

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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