“Quando se trata do papel do Estado no desenvolvimento, é preciso fugir dos extremos”

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Seu capítulo no livro recém-lançado Reconstrução – o Brasil nos anos 20 trata da reavaliação do papel do Estado no desenvolvimento econômico e social dos países, observada desde a crise financeira de 2008/09 e acentuada com a pandemia. Qual mensagem quer deixar para leitor?

Ela não é muito diferente daquela que apresentei em uma obra anterior, um capítulo no livro Contas Públicas no Brasil, também coorganizada por Felipe Salto, da IFI/Senado. No fundo, desenvolvi um pouco mais a ideia de que, quando se trata do papel do Estado no desenvolvimento econômico e social, é preciso fugir dos extremos. Vemos uma polarização entre quem apregoa que temos que ter um Estado mínimo, basicamente garantindo o direito de propriedade e segurança – entre os quais ainda há os que eliminam a segurança provida pelo Estado, incentivando a posse de armas pelo cidadão na esteira daquilo que seria um “direito natural” –, e aqueles que defendem um Estado faz-tudo, com capacidade orçamentária infinita. Temos que buscar o meio termo, no qual Estado e mercado podem ser complementares na tarefa de buscar o desenvolvimento socioeconômico sustentável. Assim como há falhas de governo, incluindo sua captura por diversos agentes públicos e privados, que precisam ser explicitamente corrigidas através de mecanismos institucionais, obviamente há muitas falhas de mercado, de coordenação, que podem trazer externalidades negativas e precisam ser mitigadas. Na questão da competição, temos discutido cada vez mais o aumento excessivo do poder de grandes empresas como big techs e os impactos disso nas desigualdades de renda e riqueza. Mesmo que o Estado não haja diretamente produzindo bens e serviços, ele tem papel crucial para promover mercados competitivos - mas também precisa estar o tempo todo monitorando, agindo, por exemplo, por meio de políticas antitruste, regulações no mercado de trabalho que não permitam um jogo muito desequilibrado entre trabalhadores e empresas...  Se fosse resumir toda essa discussão numa frase-síntese, diria que tão ou mais importante que o tamanho do Estado é como ele arrecada os recursos e no que e como ele gasta. Precisamos abandonar a discussão pueril sobre se tem que ser menor ou maior.

O economista Fernando de Holanda Barbosa, em seu livro mais recente, faz comentários nessa mesma direção, ressaltando que em países bem-sucedidos na implementação de uma economia social de mercado a participação do Estado pode variar de 30% a 50% do total da economia…

Sim, nossa análise bem é semelhante nesse ponto. Para mim, o modelo a ser copiado – consciente das dificuldades de replicá-lo, por conta dos contextos sociais diferentes, tamanho da economia – é o dos países nórdicos. Pois estes conseguiram conciliar muito bem mercados e Estado, com uma produtividade altíssima, na fronteira, e elevada equidade. Lá, o Estado é grande, mas altamente efetivo em gerar bem-estar. Cito como contraponto aos nórdicos o exemplo dos Estados Unidos, que paradoxalmente usamos o tempo todo como referência na discussão de convergência econômica, mas onde metade da população está com a renda praticamente estagnada há 40 anos e a expectativa de vida já estava em queda antes mesmo da pandemia.

Acho que o caminho é buscar implementar instituições que emulem essa experiência bem-sucedida dos nórdicos. Já temos conhecimento acumulado suficiente para poder fazer isso. A Constituição de 1988 foi um avanço nessa direção, porque implementou diversas políticas de bem-estar social no Brasil, permitindo um desenvolvimento de forma mais inclusiva, com saúde e educação universais, aumento expressivo de expectativa de vida e dos anos de escolaridade. Mas é fato que ainda temos muitos problemas a resolver, inclusive políticas mal desenhadas introduzidas com a Carta cidadã ou depois dela. O que não podemos comprar é a ideia de que o Brasil não cresceu satisfatoriamente por termos adotado políticas de bem-estar. Há políticas de bem-estar boas e ruins. Associar nosso  desempenho macroeconômico frustrante ao Estado de bem-estar social me parece uma avaliação muito limitada. Essa dicotomia entre equidade e eficiência que muitas vezes é colocada no debate é misleading, pois ignora várias outras dimensões, e mesmo o avanço do conhecimento científico. Há como avançar tanto em termos de eficiência como de equidade, ao mesmo tempo.

Um ótimo exemplo prático disso são as propostas de reforma da tributação indireta, particularmente as consubstanciadas nas PECs 45 e 110/2019. Tais reformas, caso implementadas, poderiam elevar o PIB brasileiro em algo entre 5% e 20% ao final de 15 anos, via aumento da produtividade e dos investimentos, além de reduzir a regressividade da tributação sobre o consumo no Brasil, tanto pela tributação mais homogênea entre bens e serviços, como pela substituição de desonerações horizontais pouco focalizadas por políticas de devolução de tributos indiretos somente para a parcela mais pobre da população (na aquisição de itens da cesta básica, por exemplo).

Qual o caminho para mitigar nossos problemas de arrecadação e gasto que nos impedem de engrenar um círculo virtuoso no campo socioeconômico?

Ampliar a avaliação de políticas públicas. Já demos alguns passos, com a criação do Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas - CMAP (que desde 2020 trabalha na análise de 46 programas de governo, representando políticas que envolvem R$ 1,1 trilhão, 79% em gastos diretos e 21% em subsídios, como mostra matéria do Blog), mas precisamos caminhar muito mais. O ideal é a adoção de um sistema de revisão periódica de gastos públicos, como o de spending reviews, que é um arcabouço mais completo. Ele consiste não somente em avaliar regularmente políticas públicas, como também incorporar isso ao processo orçamentário, reconhecendo a necessidade de se modificar ou extinguir/substituir as menos eficazes.

Pegue o exemplo da Zona Franca de Manaus. A priori, não tenho nada contra, nem a favor desse regime aduaneiro. Mas é uma política instituída em 1967, com previsão de conceder incentivos fiscais por 30 anos, e vem sendo postergada. Em 2014, seu prazo foi estendido para 2073, sem que houvesse qualquer avaliação detalhada sobre seu impacto, sobre o que vale a pena, e o que poderia ser aperfeiçoado. Estamos cheios de exemplos assim nas políticas públicas brasileiras, com renúncias fiscais pouco transparentes.

Sabemos que não há soluções simples para problemas complexos, mas a adoção e consolidação de uma cultura de avaliação de políticas públicas nesse modelo seria crucial. Vários estudos apontam que perdemos em eficiência de gastos em relação a outros países com mesmo nível de PIB per capita, porque temos problemas que começam já na arrecadação, que fazemos mal e de forma distorcida. O gasto no Brasil é alto, e crescemos pouco. Mas a solução para isso não é diminuir o Estado, mas ampliar sua efetividade. Precisamos saber como fazer melhor com o que temos hoje, mudando tanto a estrutura de arrecadação, para torná-la mais progressiva e menos distorciva, como revisando o gasto público, para aumentar sua eficiência, efetividade e focalização. E, dessa forma, entregar mais crescimento e bem-estar para a sociedade.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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