“Precisamos garantir uma política de controle responsável de porte e posse de armas”

Carolina Ricardo – diretora executiva Instituto Sou da Paz

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Medidas que restringem o uso de armas no Brasil sempre acendem resistências, que nos últimos 17 anos se concentraram em iniciativas para revogar ou enfraquecer o Estatuto do Desarmamento, lei federal de 2003 que proíbe o porte de armas para civis, a exceção de alguns profissionais, e restringe a posse. Com a chegada de Jair Bolsonaro ao Executivo nacional – ele próprio, enquanto deputado federal, apoiador de pautas de segurança e da bancada da bala – essa pressão tem sido ainda maior. Apesar de nos dois primeiros anos de seu mandato nenhum projeto de lei contra o Estatuto ter ido a votação no Congresso – sendo o mais popular o PL 3722/2012 –, isso não impediu ao Executivo valer-se de ferramentas infralegais, como decretos e portarias, para fazer alterações significativas nas regras. “Hoje civis não só podem adquirir mais armas e munições, como têm acesso liberado a um arsenal mais potente”, diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.

Entre esse conjunto de mudanças estão, por exemplo, o aumento do limite de compra de armas por civis de duas para seis, que agora podem ser de igual ou maior poder que as da polícia, como carabinas e rifles semiautomáticos, até quatro vezes mais potentes que as anteriormente permitidas. No caso do grupo formado por caçadores, atiradores esportivos e colecionadores (Cacs), que diferentemente dos demais civis (que fazem seu registro junto à Polícia Federal) têm seu controle de armas feito pelo Exército, os limites se esgarçaram ainda mais. Competidores, mesmo iniciantes, podem ter até 60 armas e um limite anual de munições industriais de 180 mil, por exemplo. 

Com o afrouxamento das regras, nos dois últimos anos quase duplicou-se o número de armas legais em posse de civis, passando de 697 mil em 2018 para 1,15 milhão em 2020, de acordo a levantamento feito pelo Sou da Paz em parceria com o Instituto Igarapé para o jornal O Globo. Com o agravante, alerta Carolina, de não haver contrapartida na melhora da capacidade de controle desse material. Ao contrário. “Antes era preciso justificar a compra de uma arma; hoje há presunção de veracidade na declaração, e a polícia é quem tem que apresentar provas caso negue uma compra. E visitas de fiscalização têm de ser avisadas com no mínimo 24 horas de antecedência”, cita a advogada. “Outro exemplo grave: tirou-se da lista de produtos controlados pelo Exército o projétil, que é a ponta da munição, e a máquina de recarga. Para um Cac é bom, pois barateia sua prática. Já para a fiscalização, não.”

Acervo de armas em mãos de civis, em mil


Fonte: Sigma (Exército); Sinarm (Polícia Federal)

Para conseguir tal flexibilização, o Executivo lançou mão de mais de 30 normas, entre decretos, portarias, uma resolução e outra instrução normativa, invadindo as competências do Legislativo, diz Carolina, num jogo de gato e rato com o Congresso e a Justiça. “A estratégia do Executivo tem sido de, quando se vê seriamente questionado, revogar o decreto, para que as medidas de contenção percam o objetivo. Na sequência, ele edita um novo com objetivos similares, tornando o arcabouço pouco claro e dificultando o trabalho de quem busca entrar com ações”, explica. Desse conjunto de atos, 11 foram revogados pelo próprio Governo Federal, e 14 se mantêm válidos.

No Congresso, a reação é feita através de projetos de decreto legislativo (PDL), que se aprovados podem sustar os decretos do Executivo. Nos últimos dois anos, 77 PDLs foram apresentados contra as medidas de flexibilização de posse e porte de armas. Um deles foi votado no Senado, em 2019, sustando o decreto 9875 referente a regras para Cacs, que posteriormente ganhou nova versão. “Entendemos que deputados e senadores foram ativos na edição de PDLs, mas nenhum outro foi votado na gestão Alcolumbre/ Maia, ainda que nesse período não se tenha permitido votação de projeto de lei para revogar o Estatuto”, diz Carolina. Quanto aos novos líderes das mesas da Câmara e do Senado, a advogada diz que a avaliação inicial é de um risco maior, já que ambos tiveram apoio do presidente e essa pauta é muito cara a Bolsonaro – ponderando, entretanto, que o presidente do Senado Rodrigo Pacheco (DEM-MG) já se posicionou contrário à flexibilização do acesso a armas. “Na prática, o que precisamos é que ele paute a votação dos PDLs, para suspender especialmente os decretos de Carnaval”, diz Carolina, referindo-se à alteração de quatro decretos feita por Bolsonaro dia 12 de fevereiro, à véspera do feriado, que entre outras mudanças retira limite de horário e percursos para porte de arma de um Cac, quando antes a autorização para esse porte era restrita ao trajeto residência-clube de tiro. “São normas que aumentam a chance de desvio”, lembra.

A diretora do Sou da Paz defende que é preciso sair da lógica do medo para que haja uma melhor compreensão dos riscos envolvidos nesse processo de afrouxamento das regras de acesso às armas. “Em geral, os defensores da posse de arma por civis buscam convencer os demais acionando o direto à legítima defesa, argumento que parece razoável mesmo aos que não comprariam uma arma. Mas isso é um erro”, afirma. Carolina cita estudo da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de Harvard que aponta que armas em casa são frequentemente mais usadas para intimidar parceiros íntimos do que para se defender de situações de violência e crime, em uma situação de legítima defesa. “É preciso alertar as pessoas para não se banalizar o risco de se ter armas em casa. Falamos muito que o Estado não provê segurança, que é preciso resguardar uma família, e na arma como se fosse a solução. Quando, na verdade, ela traz uma série de riscos e problemas.”

Carolina ressalta que o objetivo do trabalho do Sou da Paz não é se opor a armas, mas defender uma política de controle responsável. “É limitar o acesso, com requisitos claros; ter estrutura no governo que seja capaz de mapear e monitorar as armas em circulação; fiscalizar se estão sendo usadas para a finalidade indicada; e, no caso de armas envolvidas em crime, poder rastreá-las e usar as informações para ajudar na investigação”, descreve. “Se não o fazemos, colaboramos para o aumento da insegurança, de desvios para atividade criminosa, de riscos de violência doméstica. É preciso controle”, reforça.

Iniciativas nesse sentido tampouco faltaram, ressalta, citando três portarias do Exército que reforçavam o sistema de rastreamento de armas e munição contemplando, entre outros, a criação do Sistema Nacional de Rastreamento de Produtos Controlados pelo Exército (SisNar), e o estabelecimento de lotes menores de munição. “Essa era uma medida importante. Tomando o exemplo do caso do assassinato da vereadora Marielle Franco, chegou-se a descobrir que a munição usada partiu da Polícia Federal, mas de um lote de mais de 1 milhão de unidades que tinham sido distribuídas pelo Brasil, inviabilizando a identificação de seu destino”, conta. Mas as medidas foram revogadas pelo presidente Bolsonaro, na avaliação de Carolina, "por interesses não técnicos que atendem às demandas individuais de atiradores que não gostariam de se ver envolvidos em denúncias caso tivessem sua munição desviada, por exemplo". Hoje essa revogação se encontra num limbo jurídico, sendo questionada não só no Supremo como no âmbito do Tribunal de Contas da União (TCU). “Se reduzimos a capacidade de controle, abrimos oportunidade para que esse material abasteça o crime.”

Tal dinâmica de afrouxamento, lembra Carolina, implica um ônus importante para a atividade policial, que não só perde instrumentos para investigar um crime como sofre o aumento de risco em sua atividade diária. “Por mais que o porte não tenha sido liberado para todos, há mais chance de desvios, mau uso. Ao equiparar o armamento do cidadão ao da polícia, as abordagens tendem a ser mais violentas porque ele não sabe a chance de ter alguém armado.”

Além dessa agenda de contenção da flexibilização da posse e porte de armas sem o devido controle, e subsidiar o debate com análises técnicas, o Instituto Sou da Paz também tem trabalhado em uma agenda voltada à melhora da capacidade de investigação de homicídios no Brasil. “Nosso objetivo é produzir um indicador nacional de esclarecimento de homicídios que permita comparar o nível de esclarecimento entre os estados. Para isso, é preciso fomentar uma rede de policiais civis e criar diretrizes que possam ser usadas em todo o país. Com isso, ao invés de ficar flexibilizando controle de armas, fortaleceremos a capacidade policial, de justiça, para mitigar e dar resposta aos homicídios”, afirma. Outro projeto do Instituto é o desenvolvimento de um modelo integrado de controle de armas, que inicialmente está sendo realizado em parceria com o governo do Espírito Santo. “Estamos ajudando a atualizar o sistema de registro das armas da Secretaria de Segurança, buscando gerar um banco de dados que ajude a produzir conhecimento a partir de informações de armas ilegais que são tiradas de circulação, por exemplo, para ter uma inteligência de investigação sobre o tráfico de armas”, descreve. “Essa é uma agenda positiva importante, que poderá ser exemplo no Brasil de como fazer um controle de armas responsável”, conclui.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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