“Pior que o tamanho da dívida é o governo passar a impressão de que perdeu o controle da agenda”

Manoel Pires, pesquisador associado do FGV IBRE

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

O governo pretende iniciar uma nova rodada de auxílio emergencial ainda em março. Como avalia a condução desse tema?

O auxílio emergencial foi um benefício importante, bem-sucedido, criado durante a pandemia para proteger a renda das pessoas que estavam mais vulneráveis e não podiam trabalhar. Evidentemente, um programa desse tamanho, estruturado sob o sentido de urgência da pandemia, não escapa da discussão sobre sua eficiência. Isso também aconteceu em países como Estados Unidos, Inglaterra, que fizeram programas semelhantes e sofreram os mesmos questionamentos.

Conforme as restrições de mobilidade foram sendo relaxadas, o governo passou a montar uma estratégia de saída, reduzindo o valor e o público beneficiado, e esse desenho também foi correto. Agora temos a segunda onda, mas a princípio sem a mesma proatividade dos governos locais em estabelecer a paralisação de atividades. Sob esse ponto de vista, o efeito da segunda onda parece ser menor que o da primeira. Um segundo elemento de análise tem a ver com a resposta da economia à retirada dos estímulos, que foi sempre um ponto de interrogação para os analistas. Hoje percebemos que a demanda privada ainda dependente dos programas de apoio.  O apelo para a volta do auxílio emergencial e de programas como o de manutenção do emprego (BEm) aparentemente tem a ver com a percepção de que a atividade econômica está piorando. Junto com a segunda onda de contágio, parece que esses fatores estão sendo responsáveis pela desaceleração da economia, e pelas estimativas de um primeiro trimestre de crescimento negativo.

Isso posto, acho correta a visão de que o auxílio deve voltar, continuando com o processo gradual de redução do programa. Primeiramente, porque do ponto de vista econômico ele deverá ser retirado depois da pandemia, e não é razoável que seja de uma hora para outra. E especialmente pelo fato de vivermos um aumento do contágio, com a economia sensível e as pessoas se preservando mais.

Escapar das regras fiscais para financiar a extensão do auxílio comprometerá a confiança na condução fiscal?

O governo parece escolher um caminho para fazer algo parecido ao que foi feito no ano passado. Sob um novo estado de calamidade, ele suspende as regras fiscais, evitando que entrem em conflito. Isso porque, se criar o benefício em situação normal, terá que encaixar essa despesa dentro do teto de gastos, o que é difícil frente a um orçamento apertado, que sequer foi aprovado. E, se usar crédito extraordinário, retirando essa despesa do limite do teto, além de incorrer em risco jurídico, ainda assim teria que cumprir a meta de resultado primário.

Mas, além da questão orçamentária, ainda tem a fiscal. O auxílio emergencial é catalisador da discussão de uma série de medidas – seja a do programa de manutenção de emprego e renda (BEm), seja de outro Refis. Todo o arcabouço do ano passado está voltando, mas a racionalidade sugere que ele tem que voltar com uma ordem de grandeza muito menor. A questão fiscal envolve um tema delicado que é o de administrar expectativas. Assim, é importante enviar os sinais corretos sobre o que é possível fazer. Se conseguirem convencer as pessoas de continuar nessa estratégia de redução gradual, será um sinal positivo, de que estão com o controle da agenda. O ideal é que se reveja valor, número de beneficiários, e também a duração. O ideal é que esta última tenha alguma correlação com a trajetória esperada de vacinação. Qual a parcela da população que estará vacinada no período de três ou quatro meses que pode durar essa nova rodada de auxílio? Isso tem que entrar no cálculo.

O segundo ponto importante é o que o governo ganhará como contrapartida. Então, se tiver uma abrangência razoável, mantendo a estratégia de redução do valor, e com prazo calibrado para uma estratégia de vacinação crível, será mais eficiente e custará menos. E se a isso se somar uma ou outra contrapartida, será um sinal de que agenda está andando. O problema é que a velocidade das aprovações nem sempre é a mesma. O ideal é que o auxílio comece a ser pago em março, senão será muito sofrido. A agenda de ajuste é um pouco mais antipática, pode demorar um pouco. Mas se for construído um cenário de aprovação para o primeiro semestre, fica tangível.

Quais contrapartidas considera que viáveis de aprovação?

Quando o governo fez transferência para estados e municípios conseguiu aprovar o controle do salário dos servidores até 2021. Essa lei (LC 173/2020) tem algumas brechas, pode se ajustar e eventualmente prolongar por mais seis meses, por exemplo. Há também o projeto de lei apresentado pelo deputado Mauro Benevides (PDT-CE) que desvincula recursos de fundos públicos, que é uma medida excelente, altamente justificável para a sociedade (o PLP 137/2020 prevê a liberação de R$ 177 bilhões com a desvinculação de recursos de 29 fundos setoriais públicos).

Também se pode otimizar a rede de proteção social com a LRF, desvinculando temporariamente algumas receitas, desobrigando gastos sociais não tão urgentes para destinar ao controle da pandemia. No caso das emendas parlamentares, não se pode pensar em zerá-las, mas é possível negociar uma redução, por exemplo, para 80% do gasto do ano anterior. E dessa forma se vai abrindo espaço fiscal minimamente. E mais o que isso: a questão do sinal é importante, ver que os temas estão avançando, criando perspectiva de uma agenda no Legislativo que pode ser produtiva mesmo na pandemia, para criar um cenário mais favorável na frente.

O oposto disso são ideias como a divulgada pelo governo de exigir do beneficiário de uma nova fase do auxílio que faça um curso de capacitação, em meio à pandemia. Essa perda de foco atrapalha a discussão. É preciso se concentrar nos elementos menos polêmicos das três PECS (dos Fundos, Emergencial e do Pacto Federativo) que geram ganho fiscal e colocar algo concreto na mesa, para se chegar a alguma contrapartida minimamente razoável.

Em webinar promovido pelo FGV IBRE em parceria com a Folha no ano passado, você defendeu que em algum momento seria preciso reverter o peso das medidas de apoio, reduzindo o foco nas transferências às pessoas para ajudar mais as empresas. A necessidade de extensão do auxílio emergencial poderá comprometer essa redistribuição de prioridades?

Continuou com essa tese. Parte da recuperação depende da recuperação das empresas. Até porque a forma mais eficiente de sair da crise requer que as empresas consigam se recuperar bem, senão ficaremos amarrados ao auxílio, porque não haverá emprego. Como disse, a forma de enfrentar essa nova fase da crise é manter de forma geral todos os programas que foram feitos. O que será preciso é controlar o efeito fiscal deles, tentar mantê-los em volumes menores, com custo fiscal subjacente a eles menor, para garantir uma estratégia de saída. Mas, depois da vacinação, as políticas voltadas às empresas deverão continuar mais tempo.

Veja, quando estávamos discutindo a crise, o pior cenário que tivemos para 2020 era de um panorama de endividamento que chegava próximo de 100% do PIB; esse percentual acabo fechando em 89%. Ou seja, o custo fiscal dessas medidas acabou sendo bem menor do que o incialmente imaginado, muito por causa do efeito dessas próprias medidas para uma recuperação mais rápida da economia, reduzindo o déficit fiscal. Do ponto de vista das expectativas, também é uma notícia excelente, pois o mercado financeiro estava esperando financiar um endividamento de 98%, 99% do PIB, e na verdade teve que financiar uma dívida 10 pontos percentuais menor. A impressão que tenho é de que essa notícia positiva cria algum espaço fiscal para coisas novas. Não quer dizer que a situação seja confortável, mas que é absorvível.

Acho que, muito pior que o tamanho da dívida é o governo passar a impressão de que perdeu o controle da agenda, do orçamento. Que está gastando estupidamente para combater a crise ou manter a aprovação do presidente. Essa crise é muito assimétrica. Chegará um momento em que será preciso decidir se daremos apoio específico a determinados setores e retirar o apoio de outros. Deixar os setores que se recuperaram andar com as próprias pernas sairá mais barato do que apostar em políticas horizontais. Até mesmo, porque geram distorções econômicas. A construção civil já chegou ao nível anterior ao da crise, comercio e indústria também se recuperaram, gerando gargalos na utilização da cadeia logística, e mesmo pressão inflacionaria. Assim, será preciso rever estímulos para mitigar efeitos pandemia, mas também para buscar um equilíbrio setorial um pouco melhor do que observamos no ano passado com um padrão de recuperação desigual.

Como avalia o debate do auxílio emergencial em relação ao de uma política social permanente mais fortalecida?

Na saída da crise, o que devemos ver é a tentativa de desmontar o auxílio emergencial, convergindo para um Bolsa Família mais ampliado, para atender o aumento da pobreza que ficará mais nítido no fim da pandemia. Esse é um fenômeno que todos os especialistas do mercado de trabalho estão concluindo que vai acontecer. A mesma coisa acontecerá com o setor produtivo. Será preciso fazer coisas mais específicas para que setores mais atingidos tenham menos sequelas. Tenho impressão de que, quando a taxa de vacinação for mais elevada, a demanda por serviços que hoje está reprimida crescerá, e aos poucos esses setores mais atingidos consigam normalizar suas atividades.

O esforço na aprovação de uma nova rodada de auxílio emergencial poderá custar uma postergação do debate sobre a revisão e ampliação do Bolsa Família?

É difícil dizer. Em geral, o Congresso reage em cima de casos concretos. Muita gente esperava que o auxílio voltasse, porque este começo de ano será difícil. E como o governo tem a função de proteger as finanças, não quis antecipar essa discussão. O debate sobre o Bolsa Família tem que estar relacionado com o tamanho da pobreza depois da pandemia. Isso é o que vai gerar fato político, para criar a correlação de forças necessárias para se discutir o Bolsa Família. A impressão que tenho, entretanto, é que o governo não faz isso sozinho. Ele já tentou colocar a discussão no ano passado, o mercado reagiu mal. Politicamente, a forma como o tema foi apresentado sequer foi aprovada pelo próprio presidente. Acho que esse debate ainda está embolado, é difícil projetar o que virá pela frente.

Mesmo a ideia de se criar um imposto, que no ano passado estava atrelada à reformulação do Bolsa Família, com uma nova CPMF, agora foi cogitada para financiar a nova rodada do auxílio...

Isso está confuso. Toda hora entre um tema novo, um novo combo, e a gente não sabe se as novas ideias surgem porque as anteriores foram reprovadas. É preciso esperar um pouco a poeira baixar e ver como o governo pretender equacionar esse tema com o Congresso, aí será possível analisa-lo melhor.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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