“A PEC Emergencial pode ser usada para se fugir do teto de gastos no futuro”

Gabriel Leal de Barros, sócio e economista-chefe da RPS Capital

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Qual sua avaliação da PEC Emergencial, convertida em EC 109?

Os economistas têm se dividido entre dizer que ela é muito boa ou muito ruim. Acho que ela poderia ser mais bem desenhada, mas não é horrível. Para estados e municípios ela é ótima, para o governo federal deixou a desejar. O limite de 95% (para despesas obrigatórias sujeitas ao teto, a partir do qual se acionam gatilhos como vedação a aumento de salário ao funcionalismo e concessão de benefícios tributários) foi claramente mal calibrado. O uso do referencial de despesa obrigatória para acionar os gatilhos eu também não gostei, pois a definição não foi bem-feita. Cada um tem um conceito, e entramos numa discussão de taxonomia.  Por exemplo, o Bolsa Família é despesa obrigatória ou não? Hoje o Tesouro o classifica como despesa discricionária com controle de fluxo, ficando de fora. Com isso, quando se vai fazer a conta para saber se vai chegar no limite de 95%, são menos R$ 35 bilhões na base de gasto. Isso é ruim. Na prática, é uma despesa obrigatória. Outros dois exemplos: gasto mínimo constitucional com saúde e educação. É obrigatório ou discricionário? A Constituição diz que é um gasto mínimo obrigatório, mas classificamos no resultado do Tesouro dentro do orçamento do Ministério da Saúde e Educação, o que a torna discricionária, tirando-a da contagem dos 95%. Isso enfraqueceu o acionamento dos gatilhos.

Em entrevista ao Blog da Conjuntura Econômica, o analista do Senado Leonardo Ribeiro afirmou que as regras referentes a estados e municípios são prato cheio para judicializações. Concorda com essa análise?

Estou convicto que, para estados e municípios, a proposta é muito boa. Para começar, porque a base de cálculo para se chegar ao limite é a de despesa corrente sobre receita corrente líquida. Há outras coisas positivas. Depois de 20 anos de promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), finalmente conseguimos definir o critério de gasto com pessoal na Constituição, e por estar na Constituição, acho que o enforcement será maior. Vivemos todo esse tempo dando margem a contabilidade criativa na hora de reportar esse gasto, e agora isso vai acabar. Não se poderá mais tirar aposentado e pensionista da conta, como o Rio de Janeiro tem feito, mostrando um comprometimento de 45% quando na verdade a relação despesa/receita está em 75%. Poder contingenciar recursos dos outros poderes, como o Judiciário, também é muito bom, pois isso sempre foi tema de resistência.

Considera que a PEC Emergencial, agora EC 109, pode mudar a ancoragem fiscal, conforme debatido em recente webinar?

Acho que tem esse carimbo, sim. A PEC Emergencial tem uma porta que será aberta em algum momento, de ancorar o fiscal no limite de endividamento para garantir a sustentabilidade da dívida pública. Acho que vai ser usada no futuro para fugir do teto. Não está conseguindo cumprir? Tudo bem, tem outra âncora aqui, outro limite que o governo tem que cumprir.

Por que acho que isso acontecerá no futuro? Porque hoje as críticas ao teto são muitas. E como governo e Congresso não estão fazendo reformas para reduzir as despesas obrigatórias, a tendência é de que o teto seja revisto e, provavelmente, seja extinto.

Acho isso muito ruim. Primeiro, porque temos o hábito de criar regras se espelhando no que outros países fizeram. É meio um ranço de vira-lata. É claro que é importante estudar outros exemplos de regras, mas não achar que sempre são modelo. Quando vamos falar de regras fiscal, muita gente trata as regras fiscais europeias como estado da arte. Por que o que eles fazem tem que ser bom? Não posso concordar com isso, pois há um monte de problema no conjunto de regras fiscais da Europa. O superávit primário estrutural não funcionou, deu errado. Também tem uma regra de que, quando a dívida ultrapassa 60% do PIB, tem que se acionar uma regra que imprime a velocidade de redução desse excedente que precisa ser obedecida. Também não funcionou. Veja o que aconteceu com Portugal, Itália, Espanha Irlanda e Grécia, países que seguem as regras fiscais europeias. Não evitaram a crise fiscal, tampouco conseguiram sair bem dela no âmbito da crise financeira internacional. Precisamos olhar para fora para saber o que deu certo ou deu errado, mas não apenas copiar achando que isso resolverá nossos problemas. É preciso avaliar o que de fato funcionou, sermos intelectualmente honestos.

Dou outro exemplo. É muito comum ver dentro das regras fiscais, na que monitora o gasto, que despesas com seguro desemprego ficam de fora. O motivo de muitos países fazerem isso é porque esse é um gasto contracíclico. Quando a economia colapsa, esse gasto aumenta, e você cria um colchão. Por isso, faz todo o sentido deixa-lo de fora. No Brasil, até 2014 o seguro desemprego era pró-cíclico. Era péssimo. Quando a economia crescia, esse gasto também crescia (havia um problema grande em termos de elevada rotatividade da mão -de-obra, que ampliava o componente pró-cíclico desse gasto). Revimos as regras e partir de 2015, com Joaquim Levy e Nelson Barbosa, o desenho mudou e melhorou em relação ao que se tinha até então. Mas se aplicássemos esse modelo de seguro desemprego fora do teto no Brasil de 2014, ia dar errado. Por isso que não dá para simplesmente copiar e aplicar.

Voltando à pergunta, há sim uma porta que pode ser aberta no futuro, o que seria um erro. O teto e nenhuma outra regra fiscal é ou será perfeita – o bom é inimigo do ótimo – , de modo que o mais interessante é termos consistência do arcabouço fiscal e manutenção de regra de gasto. Abandonar a regra de despesa, muito adotada internacionalmente, não é bom.

Como considera que o teto deveria ser tratado?

É um tema difícil, pois hoje no debate mistura-se análise técnica com política. O meu papel, como economista, é mostrar o custo-benefício da escolha A ou B, sem politizar, sem paixão. Se for ouvir a opinião de economistas de diferentes espectros, todos defendem um teto de gastos e a divergência está no desenho: com ou sem investimento público, se o escreve na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), para revisão de quatro em quatro anos, ou na Constituição. Para alguns, a avaliação de que o teto atual representa o Estado mínimo se baseia no fato de haver recuo do gasto do governo como percentual do PIB, pois afirmam que com isso se reduz o tamanho do Estado. Mas essa ideia é equivocada. O que é o gasto como percentual do PIB? É o gasto sobre o PIB nominal, que é calculado pelo crescimento real da economia mais a inflação do PIB (deflator).  O deflator do PIB é muito acima do IPCA – em média, roda a mais de 1 ponto percentual acima do IPCA. Isso é importante neste debate porque, quando se faz a conta do gasto do governo sobre o PIB nominal, como se tem o deflator do PIB rodando muito acima da inflação, pode-se ter uma queda brutal do gasto como percentual do PIB. Isso acontece não porque se está necessariamente reduzindo o tamanho do Estado, mas simplesmente porque o deflator do PIB está correndo acima do IPCA. É efeito meramente contábil. Então, mesmo que houvesse reajustes reais, mesmo o gasto crescendo em termos reais, em percentual do PIB ele pode cair porque o deflator é maior que o IPCA.

Há pontos positivos em várias análises, de analistas que se colocam de ambos os lados do espectro político. Se tirássemos um pouco do excesso de paixão e vaidade da análise econômica, haveria maior espaço para concordância e consenso mínimo.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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