“Pandemia pode ampliar iniciativas de inovação aberta na gestão pública, mas é preciso preparo”

Fernando do Amaral Nogueira, professor da FGV Eaesp

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Governos que buscam realizar coisas novas, ou encontrar novas formas de realizar suas atividades, podem fazer isso buscando ajuda de empresas e indivíduos através da inovação aberta. Em vários países, esse conceito de inovação, que privilegia soluções tecnológicas que não são de prateleira e usam códigos fechados, têm sido estimulada há pelo menos uma década. No Brasil, levantamento do professor da FGV Eaesp Fernando do Amaral Nogueira e da pesquisadora da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) Andreia Pereira demonstrou que a Covid-19 intensificou essa procura. Eles identificaram e analisaram a promoção de dez desafios, com 66 projetos premiados, com temas que foram de soluções tecnológicas para prevenção, diagnóstico e combate à pandemia, ao uso de data science para enfrentar os impactos econômicos e sociais causados pelas medidas de isolamento. 

Para Nogueira, que até fevereiro atuou como coordenador no MobiLab+, laboratório de inovação aberta da Prefeitura de São Paulo, a demanda por maior digitalização de processos e serviços gerada pela pandemia poderá manter a busca por esse tipo de solução em alta. Mas aponta que, para ter projetos bem-sucedidos, é preciso muito planejamento prévio, especialmente na preparação de equipes e na estruturação de arranjos jurídicos que possibilitem contratações nessa área. Esse é um dos temas que Nogueira irá abordar nesta quinta-feira (19/11) na Semana de Inovação 2020 promovida pela Enap - Escola Nacional de Administração Pública, e que antecipou em conversa com o Blog da Conjuntura Econômica:


Como a inovação aberta tem sido usada nas administrações públicas no Brasil?

É um grande desafio usar inovação aberta no setor público brasileiro, e por isso há diferentes abordagens. Tem gente que faz concurso só para obter ideias, e daí busca desenvolvê-las através dos processos internos do estado. Tem gente que tenta de fato contratar, e aí precisa amarrar isso muito bem internamente. E tem outras experiências interessantes, como algumas desenvolvidas pelo governo de Pernambuco, através do Porto Digital. No concurso que promoveram, em busca de soluções para o combate à Covid-19, o foco não era necessariamente o poder público, mas toda a sociedade. 

Quais os principais desafios para interessados em atrair soluções novas para dentro da gestão pública através da inovação aberta?

Ao trabalhar inovação, dois aspectos são fundamentais. O primeiro é a gestão de pessoas, e de mudanças. Nesse campo, é importante saber incorporar os servidores nos projetos, especialmente o corpo fixo e mais estável da área pública. Se optar por fazer tudo por fora, com comissionados, consultores, a chance de um projeto deixar de acontecer depois de um tempo é grande. O segundo ponto importante é trabalhar muito bem com a questão jurídica. Inovar no setor público depende de se achar soluções jurídicas criativas e consistentes. Temos um direito administrativo confuso por um lado, e muito rígido de outro, que acaba levando os gestores a só fazer o que está estritamente na lei. Então, no geral, muitas áreas no fundo têm receio de inovar, porque isso pode acarretar consequências administrativas ou até criminais para os gestores, se tentar um tipo novo de licitação e dar errado. Então, é preciso envolver as áreas jurídicas, dialogar com os órgãos de controle. Senão, a base da inovação ficará frágil.

Acho que um caso emblemático desse desafio jurídico é do governo estadual paulista, com o Poupinha, atendente virtual do Poupatempo (implementado em 1997, faz cerca de 700 mil atendimentos por mês em todo o estado). Ele realiza agendamentos a uma fração do custo normal. Mas teve um problema complicado, porque as áreas jurídicas não encontraram um jeito de contratar. Se fizessem uma licitação, com o protótipo já selecionado, seriam acusados de direcionamento. Então a empresa desenvolvedora do Poupinha, a Nema, teve que prestar serviço como parceira do governo. 

Como o Moblab+ lidou com essa dificuldade jurídica?

Um processo que o Mobilab+ desenvolveu foi usar a modalidade de concursos prevista na Lei 8666, de licitações. Em geral, quem costuma usar essa modalidade é a área cultural e urbanística - por exemplo, promovendo ações em busca de soluções para um espaço urbano, ou em um edital de teatro. A ideia foi buscar uma interpretação inovadora da lei, voltada à inovação.

Isso demandou bastante estudo, defesa jurídica, mas foi importante porque mudou a abordagem da contratação. Em geral, numa compra pública, você precisa especificar ao máximo, no detalhe, o que precisa ser comprado, e a partir daí você compara preços. Através do concurso, o foco fica muito mais voltado ao problema e em parâmetros de solução. Permite pensar: dado este problema, o que a gente pode fazer para resolver? Há mais flexibilidade, e se investe na criatividade das pessoas, empresas, programadores, selecionando um projeto muito mais com base na qualidade, originalidade, do que só preço. 

Poderia dar exemplos?

Processos semelhantes a esse foram responsáveis pela abertura dos dados de GPS dos ônibus de linha que servem a capital paulista. Quando hoje olhamos no Google para ver se o ônibus está chegando ou não, isso é possível devido ao resultado de uma Hackatona - concurso que envolve maratonas de trabalho de profissionais de software. Daí saiu uma API (interface web) que permite que qualquer pessoa ou empresa, consulte os dados em tempo real, e a qualquer aplicativo usar esses dados. 

No ano passado, promovemos um concurso para abertura dados dos mais de 900 radares do município em que tentamos avançar nessa questão. Hoje, são equipamentos de uso exclusivo para fiscalização do trânsito, mas têm um grande potencial para gerar estudos de gestão da mobilidade. Ao lançar o concurso, definiu-se um prêmio era em valor suficiente para que se entregasse o produto pronto, que foi internalizado pelos técnicos da prefeitura. Isso resolveu o problema parcialmente, pois é quase como uma venda. Mas não resolveria se precisássemos ter uma prestação de serviço contínua.  

Outra forma de realizar essa contratação sem tanta barreira jurídica é fazer em parcerias com organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips), para que eles toquem programas de inovação aberta com mais flexibilidade. Esse é o arranjo que o governo do estado de Pernambuco tem feito com o Porto Digital. 

Considera que com a pandemia haverá demanda para mais soluções abertas nas gestões públicas?

Acho que sim. Mas promover concursos sem preparo prévio e sem pensar o pós é receita para dar errado, ou gerar muita expectativa e colher pouco resultado. Hackatons, por exemplo, podem se transformar em eventos muito hype, mas sem resultados concretos porque não se soube definir bem o problema que se queria solucionar. E para isso tem método: juntar o servidor que trabalha com aquilo, os públicos afetados, especialistas. É um processo colaborativo que é super rico, mas não é fácil de fazer. Como mencionei anteriormente, é preciso ter a parte jurídica bem resolvida. Também é necessário verificar se o município tem capacidade técnica e de tecnologia mínima. Às vezes é difícil ter boa capacidade institucional para incorporar e manter soluções, fazer seu desenvolvimento contínuo. E, finalmente, é  preciso apoio da liderança pública, seja do secretário ou do prefeito. Sem isso, não se vai pra frente, pois inovação aberta é algo fora do dia a dia, as pessoas têm dificuldade de entender e podem ficar ressentidas, achar que perderão importância. Sem recurso financeiro e político adequados, é difícil dar certo. 

 


Links de interesse:

Nos Estados Unidos, o site www.challenge.gov reúne chamadas de prêmios e desafios lançados a resolver demandas do governo. 

No Brasil, uma iniciativa similar é a do https://desafios.enap.gov.br/, do laboratório de inovação em governo GNova, da Escola Nacional de Administração Pública (Enap).

Guia de contratação de inovação na administração pública elaborado pelo Mobilab+: https://assets.website-files.com/5e1cc24cda2c730499aca440/5e1f5cf40626148f3c52298c_0_concurso_de_projetos.pdf

Para acompanhar a Semana de Inovação da Enap: https://semanadeinovacao.enap.gov.br/ 

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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