O brasileiro e a pandemia

As entrevistas da edição da Conjuntura Econômica de março retratam dois pontos de vista bem particulares do atual quadro do país na pandemia. O primeiro é o da empresária Luiza Helena Trajano, que a partir do movimento Unidos pela Vacina defende transformar o sentimento de impotência diante do novo coronavírus em uma rede de apoio para acelerar a imunização e, consequentemente, a retomada da economia. O cientista social Marcos Nobre, por sua vez, faz um mergulho na política nacional para analisar como o presidente Jair Bolsonaro tem conseguido manter um nível de aprovação popular constante, mesmo sendo continuamente criticado por sua posição negacionista frente à pandemia. O apelo de Nobre é para que as forças políticas organizadas repactuem suas regras de convivência e, com isso, fortaleçam a democracia para imunizá-la contra outra doença: o autoritarismo.

Leia, aqui, os principais trechos destas duas entrevistas.

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Luiza Helena Trajano, presidente do Conselho de Administração do Magazine Luiza e do Grupo Mulheres do Brasil

No início de fevereiro, a senhora anunciou a criação do movimento Unidos pela Vacina, que reúne empresários interessados em ajudar na agilização do processo de imunização no Brasil. Como pretendem atuar?

Vacina é a única alternativa para acertar tanto a saúde quanto a economia. Junto com o Grupo Mulheres do Brasil, convidamos o Instituto para o Desenvolvimento do Varejo (IDV, do qual é fundadora) e a sociedade civil para desenvolver essa iniciativa. Era proibido diagnóstico, fazer acusação e pensar no passado. Tinha que pensar dali para frente. Estamos impressionados com a mobilização que conseguimos, e temos trabalhado 360 graus, divididos em vários grupos. Um grupo de empresários liderado por Marcelo Silva, presidente do IDV, está trabalhando a interlocução com o governo federal, com o Ministério da Saúde, e buscando ouvir os laboratórios. Também estamos trabalhando com os municípios, através de uma pesquisa coordenada pelo Instituto Locomotiva, onde os representantes das prefeituras respondem pelo celular, em 10 minutos, o que estão precisando para vacinar. Outro grupo está trabalhando logística, para entender o que é preciso fazer para a vacina chegar em cada lugar, para o qual já temos apoio de empresas com avião, refrigeração. E assim por diante.

Quais as principais demandas das prefeituras que já responderam?

Há de tudo. Por exemplo, em Serrana (SP) – cidade de 48 mil habitantes escolhida pelo Instituto Butantan para um estudo de avaliação do impacto da vacinação com a Coronavac, onde se espera imunizar toda a população maior de 18 anos em dois meses –, eles indicaram a necessidade de 12 aparelhos de ar condicionado para instalar em escolas que são ponto de vacinação. Se abrirem concorrência para comprá-los, levará três meses. Mas as demandas são bem variadas. Temos uma área que está sendo dirigida pelo (João Carlos) Brega, presidente da Whirlpool Latin America, que coordena a conexão entre esses pedidos e as empresas. Em primeiro lugar, como gestores que somos, nosso foco está em levantar o que cada município precisa, pois em cada lugar as necessidades são diferentes. Foi isso inclusive que conversei com os governadores, apontando que os estados teriam dificuldade em fazer esse levantamento e atender situações específicas. Pedimos a colaboração deles para incentivar que os prefeitos respondam à nossa pesquisa, e assim estaremos ajudando o próprio estado. Se conseguirmos dar a cada município o que ele precisa, vocês têm dúvidas de que, na hora que tiver vacina, e com a experiência do SUS, iremos rápido?

Seu protagonismo em causas importantes como a da vacina tem despertado o interesse de partidos em ter seu nome como membro de uma chapa à disputa presidencial de 2022, até mesmo como candidata...

Nem uma coisa, nem outra. Lidero um movimento de 75 mil mulheres em que a primeira coisa é ser apartidária. Nunca me filiei a partido; sou muito política do Brasil. Para isso, não preciso ter cargo político, preciso lutar pelo meu país. Todos os partidos estão sabendo minha posição, tanto a esquerda quanto a direita.

No ano passado, a senhora participou do Movimento Convergência Brasil, que defendia a reforma administrativa e privatizações, e que 30% dos ganhos obtidos com essas duas agendas fossem destinados a um programa de renda. A senhora continua defendendo a necessidade de se ampliar o financiamento da política social?

Neste momento, estou focada na vacinação. Mas gostaria de colocar minha perspectiva sobre isso. Sempre fui a favor do Bolsa Família, porque um país não sai da pobreza sem criar um degrau, principalmente para combater a fome. Acho que a gente deve muito ao Eduardo Suplicy (atualmente vereador de São Paulo pelo PT), que defendeu muito a ideia de uma renda básica, mas foi pouco ouvido. Independentemente de partido, esse é um tema importante, que graças a Deus hoje está sendo debatido de forma ampla, pela esquerda e pela direita. No caso da Covid-19, o governo reagiu rápido com medidas emergenciais. Se algo demorou a sair, foi muito mais por um problema de burocracia.

Mas, quando tirarmos a pandemia de jogo, será preciso planejamento, e no Grupo Mulheres do Brasil temos pensado nisso. A ideia é montar um grupo da sociedade civil, fazer um planejamento estratégico para o período 2022-2032 e colocá-lo numa linguagem que a população possa entender. Acho que precisa nascer de nós, sociedade civil, um plano estratégico. Não tenho competência para fazê-lo sozinha, mas posso juntar pessoas e conduzir esse processo.

A senhora já disse em algumas ocasiões que é uma CEO de crises, referindo-se a tantas turbulências econômicas pelas quais o país passou nas últimas décadas. O que a senhora pretende levar de experiência da pandemia – além do aprimoramento do Magazine Luiza como um negócio digital, o que incluiu uma série de aquisições durante 2020, de empresas em áreas que vão da logística ao ambiente de pagamentos?

São várias coisas. Muitas passam pela experiência de conviver com sua total impotência diante da realidade. Isso levou a um aumento do nível de consciência dos empresários. Em segundo lugar, acho que no Brasil havia uma grande dificuldade de se pensar “o país é meu”. Sob esse contexto, é difícil tomar-se o papel de responsável pelo país. Mas esse nível de cidadania começou a brotar com a epidemia.

Acho que o aumento do nível de consciência é algo que vai ficar deste momento muito sério pelo qual estamos passando. Porque a impotência faz a gente ver isso. E não tem que ficar pondo culpa no empresário, de que deveria ter visto isso antes, porque empresário tem muitos desafios neste país, desde ter convivido com hiperinflação, juro alto, e por isso digo que a empresa brasileira tem valor. E também temos que defender o investimento que gera emprego. Veja, parece que o ministro de Infraestrutura (Tarcísio Freitas) está trabalhando bem, mas o país não tem um plano de infraestrutura. E precisamos disso, pois a logística para a economia digital é muito importante. Temos que ter plano de educação. Temos que construir 20 milhões de casas em dez anos para ter um nível de igualdade. O Brasil precisa criar um plano em quatro, cinco pilares, e trabalhar junto, largar de ser a favor ou contra. Porque as pessoas estão cansadas. Tem fanático de um lado e de outro, mas a maioria está pedindo para respirar, para convergir para uma situação melhor para todo mundo.

 

Marcos Nobre, professor da Unicamp, presidente do Cebrap

A que atribui a capacidade do presidente em manter um nível de popularidade acima de 25% mesmo com a polêmica atuação do governo federal frente à pandemia?

Inicialmente, temos que afastar teses que atrapalham nosso entendimento sobre a eleição de Bolsonaro. A primeira é a de que a população brasileira seria essencialmente conservadora. “Essencializar” as pessoas não faz o menor sentido para mim. As pessoas mudam, a política muda, o voto das pessoas muda. Como as pessoas são conservadoras em uma década e na outra não? A segunda tese que acho que não ajuda a entender essa questão é a de que Bolsonaro foi eleito pelo antipetismo. Isso pode explicar parcela dos votos, mas não é capaz de explicar a eleição de Bolsonaro. E tem uma consequência política, que é a de reforçar a ideia de que o PT é o outro polo do sistema. Então, essas duas teses atrapalham o entendimento da situação de maneira mais complexa.

Há dois fatores muito importantes que muitas vezes são sobrepostos, têm intersecções. Em primeiro lugar, o fato de que existem grupos eleitorais, parcelas do eleitorado que se sentiam excluídas da participação política desde a redemocratização, que não achavam que havia a representação que mereciam. Não estou discutindo aqui se isso é verdade. A questão é o que o eleitorado acha, e essas pessoas agora estão se sentindo representadas por Bolsonaro. No meu livro Ponto Final (Editora Todavia, 2020), dou o exemplo de três desses grupos: as forças de segurança e as Forças Armadas; as denominações evangélicas e o lavajatismo. Aí vocês podem dizer: “o lavajatismo não está mais com Bolsonaro”. É fato. Mas ao mesmo tempo Bolsonaro, com o auxílio emergencial, por exemplo, consegue repor parcela do apoio de base social que ele tinha. De qualquer forma, é o exemplo de três grupos que se sentiam politicamente excluídos e que numa coalizão de conveniência resolvem apoiar o Bolsonaro.

A interseção que mencionei, que considero importante, é a de uma parcela desse eleitorado que é antissistema. Não se pode dizer que essa parcela é simplesmente conservadora, e Bolsonaro consegue representá-la também. Ele consegue convencer esse grupo antissistema de que, por exemplo, tentar responsabilizá-lo pelas mortes da pandemia é típico do sistema, da velha política, como ele diz. Que a pandemia é uma fatalidade sobre a qual ninguém tem controle, muito menos ele. E que o Brasil estava quebrado antes dele, que o serviço de saúde era ruim, e ninguém do sistema poderia ter feito melhor do que ele está fazendo. E o que é esse sistema? Para o Bolsonaro, o sistema é a democracia como tal. Porque ele identifica todos os males do país na redemocratização e na Constituição de 1988. Ele canaliza esse sentimento antissistema para um projeto autoritário.

Então são eleitores que defendem o autoritarismo?

Não necessariamente esse um terço que apoia Bolsonaro é autoritário. Pelo contrário. Acho que é politicamente importante a gente entender que existe, sim, algo como 12% a 15% do eleitorado que é autoritário, que forma o núcleo duro do bolsonarismo. O restante não o é necessariamente, mas pode ser levado a posições autoritárias se Bolsonaro for reeleito, se continuar na implantação de seu projeto. 

Veja, o autoritarismo demora para morrer. Você não tem 21 anos de ditadura e de repente todo mundo vira democrata. O que é característico de Bolsonaro, a meu ver, é que ele conseguiu convergir para uma única figura, uma única candidatura, uma posição autoritária que estava dispersa. Isso é uma questão importante: é a primeira vez que o autoritarismo se organiza no país em termos político-eleitorais desde o final da ditadura militar. Uma parcela de 12% a 15% do eleitorado não é desprezível, mas é preciso pensar nos outros 15% a 18% para chegar a um terço. Estudos mais finos sobre bolsonarismo costumam mostrar que existem três camadas de apoiadores, que na linguagem das pesquisas de opinião são classificados de bolsonarismo heavy, que é o núcleo duro de apoio; depois teríamos os simpatizantes mais próximos do núcleo duro, e os simpatizantes mais afastados. Essa coalizão é que foi importante para a eleição e Bolsonaro. Daí dizer que foi um acaso é no sentido de que todo populista autoritário eleito, é eleito dessa maneira, com uma coalizão de conveniência.

O problema é que, a partir do momento que esse populista autoritário é reeleito, já não é mais acaso. E ele pode argumentar que as pessoas votaram nesse projeto. Essa é a estratégia de implantação de todo populismo autoritário que estamos vendo no mundo inteiro. Com Bolsonaro não é diferente, pelo contrário. Quando ele chegou, em 2018, já tinha 8 anos de experiência internacional, se contarmos pela primeira eleição de Viktor Orbán a primeiro-ministro da Hungria como marco desse novo ciclo do populismo autoritário. Então, ele tem como olhar para essas outras experiências e ir afirmando sua tática.

Em seus artigos, você foi um dos primeiros a apontar, no final de 2019, a necessidade da formação de uma frente ampla de centro para se ter um candidato de oposição competitivo em 2022. Como avalia o atual cenário?

A característica da discussão política desde 2018 é subestimar a capacidade de Bolsonaro de superar obstáculos e manter sua base de apoio em circunstâncias desfavoráveis e cambiantes. A cada situação, forças do campo democrático dizem: “Agora não tem mais jeito”; “Agora ele está acabado”; “Agora Bolsonaro vai perder apoio”, e isso não aconteceu. Ou seja, existe muita torcida e pouca articulação política. As forças não-bolsonaristas, vamos dizer assim, ficam esperando que Bolsonaro erre, ao invés de tentarem articular para elas acertarem.

Mantendo-se com 25% de apoio, Bolsonaro garante duas coisas importantes: afastar a possibilidade de um impeachment, e ganhar uma vaga ao segundo turno nas eleições de 2022. Até agora, isso está sendo bem conduzido. Há o outro lado, dividido entre esquerda e uma direita não-bolsonarista, com desafios diferentes. No campo da esquerda, o que temos é um travamento e uma divisão, pois a esquerda resolveu adotar como tática o recall da eleição de 2018. As candidaturas já estão postas – me refiro à de Ciro Gomes (PDT) e a de Lula/Haddad (PT) – e são inconciliáveis por várias razões. Uma delas é que, para o PT manter sua base de partida, ele precisa manter o Nordeste, que foi sua grande força em 2018, o que significa isolar o Ciro. Por sua vez, do lado do Ciro, como uma parte do eleitorado que vota à esquerda já está tomada pelo PT, ele tem que fazer acenos para a centro-direita, inclusive para o antipetismo. Então, o campo da esquerda, até agora, está dividido de forma inconciliável.

No campo da direita não-bolsonarista, a dificuldade é oposta. Não haverá recall de candidaturas, então é preciso inventar novas, o que implica construir um campo que seja alternativo à extrema-direita bolsonarista. E a eleição da Câmara mostrou a enorme dificuldade disso. Em geral, subestima-se o que significa ser presidente da República. Isso tem uma capacidade de atração muito forte, e a direita-não bolsonarista tem esse desafio enorme de se colocar como existente.

É possível que um outsider possa trazer uma narrativa forte e competitiva para fazer frente a Bolsonaro em 2022?

Só para enfatizar: quando falo em frente ampla, não estou falando de candidatura única no campo democrático. O Brasil não é Estados Unidos, não vai surgir um Joe Biden. Isso posto, essa hipótese é a mais delirante de todas. Por quê? Em 2018, não houve presidente não concorrendo à reeleição. Essa foi uma eleição propícia a outsider, porque não houve uma organização em termos de presidente versus oposição. Agora temos. E mais ainda: o incumbente é antissistema. Então, não será apenas um candidato antissistema, mas um presidente antissistema. Ele se virou contra o funcionamento do Estado que ele próprio deveria estar dirigindo. Então, como vai aparecer um outsider? Isso é um delírio completo. A eleição estará organizada entre incumbente e oposição ao incumbente. É completamente diferente em termos estruturais à anterior. Quem queria ser outsider, que tivesse sido candidato em 2018.

 


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